Empreendedorismo - dois mundos e uma só definição
O futuro do empreendedorismo só fará sentido se construído sobre redes de proteção concretas
Na mesma semana em que uma startup de tecnologia levanta milhões e estampa capas de revistas especializadas, José Brasil e sua MEI finalmente conseguem comprar o segundo freezer para a sorveteria. Para ele, isso significa dois anos de economia, noites mal dormidas fazendo contas e a chance de não precisar correr até o atacado todas as manhãs.
Ambas as iniciativas são empreendedoras. Fato.
Ambas aparecem nas estatísticas oficiais.
Mas será que vivem no mesmo universo?
No mundo dos pitch decks e das conferências, empreender é sinônimo de inovação disruptiva. Ali, geeks, yuppies e herdeiros arrojados falam sobre “escala”, “tração” e “mercado endereçável total”. Recebem mentoria de executivos, contam com aceleradoras e podem dedicar meses apenas a pensar na dor que querem resolver. Quando falham — e a maioria falha —, chamam isso de aprendizado. Pivotam, recomeçam, transformam o fracasso em credencial.
É um mundo em que o capital circula, as conexões se fazem em happy hours caros e onde o networking é moeda de troca. Um ecossistema de muito trabalho, mas também de luzes e holofotes.
Do outro lado da cidade (aqui uso uma expressão simbólica), Maria Silva acorda às 5h para preparar o hortifruti. São 15 famílias que dependem da renda gerada vendendo verduras de porta em porta. O “escritório” é a sua Kombi. O “planejamento estratégico” acontece na mesa da cozinha, depois que as crianças dormem. Maria não pivota. Ajusta, adapta, insiste. Empreende por propósito ou paixão? Usando a linguagem deste meio, eu digo que não. Mas há sim um propósito menos grandioso mas certamente maior e mais urgente: garantir que os filhos tenham uma vida melhor.
É aqui que entra a complexidade invisível: a vida de José e de Maria não é apenas de esforço, é de vulnerabilidade. Como retratado nos filmes de Ken Loach (Eu, Daniel Blake e Você Não Estava Aqui), há um abismo entre a narrativa heroica do empreendedorismo e a realidade de quem empreende por necessidade. Esses personagens não são exceções cinematográficas: são o retrato nu e cru de milhões.
Pode parecer exagero, maniqueísmo, enviezamento proposital, mas criei exemplos com leve tom caricato, pintados com cores fortes, propositalmente, para que, o que é importante e discrepante não se torne falsas nuances a serem minimizadas pela sociedade global.
Guy Standing chama o que vem acontecendo com o dito empreendedorismo de necessidade (ou roots) de precariado: uma nova classe que vive sob instabilidade crônica, sem garantias trabalhistas ou redes sólidas de apoio. Empreender, para essa camada, não é uma opção inspirada fundamentalmente por valores e crenças, mas a única estratégia de sobrevivência possível em um mercado que já não oferece empregos formais com proteção mínima.
E se falamos em proteção, precisamos ir além do econômico. Judith Butler lembra que todos os corpos são frágeis e dependentes de redes coletivas para existir. O empreendedorismo não pode continuar sendo narrado como façanha individual.
Quando a mídia enaltece casos pontuais de mérito extremo e de self-made people, ela acaba fazendo crer que empreender é ser extraordinário o tempo todo até se chegar no pódio do sucesso. E as pessoas coletivamente não são todas extraordinárias da mesma maneira. E está tudo bem. Ainda assim, elas precisam e merecem viver bem, com dignidade e o mínimo de conforto.
Sem saúde física, sem saúde mental, sem apoio institucional, não há freezer novo nem aplicativo disruptivo que se sustente. José não tem plano de saúde corporativo; Maria não recebe coaching sobre burnout. Ambos não tiveram capacitação adequada, não tem dinheiro para tanto e nem veem o valor que poderiam ver nesse tipo de investimento pessoal.
Quando adoecem, fecham as portas — e com elas, a renda da família.
Enquanto uns falam em “disrupção”, outros falam em “tradição”. Enquanto uns buscam “investidores-anjo”, outros torcem para que o banco libere crédito. Enquanto uns podem errar repetidas vezes, outros precisam acertar todos os dias. A diferença não é apenas de capital, mas de tempo: os empreendedores premium podem parar, estudar, contratar consultores; os roots decidem no intervalo entre descarregar mercadoria e atender o próximo cliente.
Enquanto os primeiros negociam os melhores meios de pagamento com as taxas mais vantajosas para seus negócios, os empreendedores “raízes” apostam no pix.
Não se trata de negar a importância da inovação de ponta, mas de reconhecer que há dois mundos sob a mesma palavra. O risco é criarmos políticas públicas unificadas que servem mais a um dos lados e aprofundam a exclusão do outro. O empreendedorismo premium precisa de capital de risco e regulação para inovar; o empreendedorismo popular precisa de crédito justo, desburocratização, apoio psicológico, SUS fortalecido e programas que reconheçam sua centralidade na economia real.
Mas não se trata apenas de políticas públicas: é preciso pensar em ecossistemas completos. O Estado deve garantir crédito acessível, desburocratização e saúde para os pequenos, ao mesmo tempo em que regula e fomenta o ambiente de inovação para startups de ponta — desde marcos legais claros para tecnologia até fundos públicos de investimento em P&D. Já o terceiro setor, expressão da força da sociedade civil, tem papel vital em criar pontes entre esses mundos: programas como os do Sebrae, cooperativas de microcrédito, incubadoras sociais, aceleradoras de impacto e ONGs de formação empreendedora atuam onde o governo não chega, oferecendo capacitação, redes de apoio e até conexões internacionais. Para o empreendedorismo premium, essas parcerias podem significar acesso a comunidades reais e validação social; para o empreendedorismo popular, podem significar dignidade, fôlego e chances concretas de crescimento.
O futuro do empreendedorismo só fará sentido se construído sobre redes de proteção concretas. Não basta falar em “mindset empreendedor” sem falar de saúde mental, não adianta celebrar unicórnios sem enxergar as Kombis. Talvez o luxo verdadeiro esteja em conseguir empreender com dignidade e paz de espírito, sem que o corpo e a mente sejam o preço da sobrevivência.
A história de José e Maria pode nunca virar case em Harvard. Mas é nela que está a espinha dorsal da economia que funciona todos os dias. E talvez seja hora de admitir: sem esse empreendedorismo invisível, não há país que se sustente.
Penso que diferenciar a nomenclatura de ambos enquanto torna o olhar para dois mundos mais equânime e equilibrado, pode ser um bom começo.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

