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Mayra Goulart

Professora do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro

6 artigos

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Entre a nacionalização e a interiorização: emendas, território e a eleição do Rio de Janeiro de 2026

Interiorização não se limita a ampliar presença partidária fora da capital; ela envolve costurar alianças com as lideranças que estruturam a política local

Cidade do Rio de Janeiro (RJ) (Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)

* Com Victor Escobar David

1- O novo momento das relações institucionais: emendas parlamentares e a formação das redes locais

O sistema político brasileiro atravessa um processo de redistribuição interna de poder que altera a lógica construída ao longo da Nova República. A retração do protagonismo do Poder Executivo — consequência da expansão das emendas impositivas, das transferências especiais e do controle progressivo do orçamento pelo Parlamento — desloca o eixo de governança para o Legislativo e para arenas territoriais com alto grau de autonomia.

Esse deslocamento produz efeitos ambíguos. Por um lado, fragiliza a capacidade de coordenação nacional do Executivo, que passa a depender de negociações constantes com atores locais e regionais. Por outro, reduz a vulnerabilidade do sistema a tentativas de centralização autoritária, uma vez que o orçamento e a capacidade de entrega passam a ser compartilhados por redes parlamentares e elites territoriais que não respondem automaticamente ao comando de um líder nacional.

Nesse ambiente, a extrema direita encontra um campo de disputa mais complexo do que em 2018. Seu desempenho deixa de depender exclusivamente da retórica nacional e passa a ser condicionado pelo acesso a pactos territoriais que controlam cargos, estruturas e recursos. Embora muitos desses atores locais possam expressar afinidade pessoal com elementos centrais da agenda da extrema direita, sua performance pública se orienta por uma racionalidade pragmática: maximizar recursos, conservar domínio sobre seus redutos e manter influência nas redes administrativas que controlam a vida política nos municípios.

As emendas parlamentares se tornaram o principal instrumento de articulação política no plano municipal. Nessa arena, a prioridade das elites fisiológicas não é a adesão programática a um projeto de país, mas o fortalecimento das máquinas locais. A taxa recorde de reeleição de prefeitos em 2024 — cerca de 82% entre os que tentaram novo mandato — evidencia a força dessas máquinas e mostra como a circulação territorializada de recursos tende a se sobrepor às disputas ideológicas nacionais.

Esse ambiente favorece lideranças que estruturam suas carreiras pela mediação cotidiana dos serviços públicos, pela distribuição de benefícios e pela gestão de redes locais. Trata-se de um campo em que a extrema direita não tem entrada automática e, muitas vezes, precisa negociar com elites que, embora conservadoras, priorizam estabilidade local e controle administrativo sobre alinhamentos ideológicos rígidos.

2. Os caminhos da interiorização: a disputa eleitoral pelo interior do Rio de Janeiro

No Rio de Janeiro, esse rearranjo nacional se conecta a um processo específico. Eduardo Paes, fortalecido pela reeleição na capital e pela posição estratégica do PSD, busca construir um arco estadual capaz de reduzir a margem da extrema direita em um de seus territórios históricos. O componente central dessa estratégia é a interiorização da coalizão.

A interiorização não se limita a ampliar presença partidária fora da capital; ela envolve costurar alianças com as lideranças que estruturam o funcionamento da política local. Nesse movimento, Paes opera dentro do campo das elites fisiológicas — redes que controlam municípios, distribuem recursos e organizam a vida política de regiões inteiras, inclusive quanto a um componente histórico. É nesse terreno que se definem as condições de viabilidade eleitoral para 2026.

A necessidade perene de Eduardo Paes, então candidato com maior visibilidade e popularidade, de interiorizar a coalizão se dá, em primeiro lugar, por conta da forte rede de apoio desenvolvida por Cláudio Castro na campanha à reeleição em 2022, em que obteve vitória em 91 dos 92 municípios do Estado, contando com apoio dos prefeitos. Em segundo lugar, trazendo uma divisão histórica do território, há uma possível divisão entre capital e interior que remonta aos antigos estados do Rio de Janeiro e da Guanabara.

Observa-se que a liderança de partidos com relevância nacional e estadual não necessariamente se encontra com os correligionários da capital, mas sim de municípios da região metropolitana. Como exemplo, o MDB tem como presidente estadual Washington Reis, cujo reduto eleitoral é Duque de Caxias. Também do mesmo município é o presidente do Solidariedade fluminense, o deputado federal Áureo Ribeiro. O próprio Partido Liberal (PL) atualmente é comandado pelo deputado federal Altineu Côrtes, cujo domicílio eleitoral é no município de São Gonçalo.

Para além do controle partidário, o estado possui figuras cuja atuação ilustra esse padrão de interiorização, em que pelo menos três personagens de política local, em algum momento nessa trajetória pré-eleitoral, colocaram-se como ativos eleitorais nessa tentativa de Eduardo Paes ampliar o espectro político-geográfico das suas redes de apoio.

Wladimir Garotinho (PP / União Progressista), prefeito reeleito de Campos dos Goytacazes, combina laços políticos históricos com a capacidade de manejar uma máquina municipal complexa e de articular redes evangélicas influentes. Washington Reis (MDB), figura central da Baixada Fluminense, com histórico como prefeito de Duque de Caxias e vínculos diretos com deputados de sua família, articula poder territorial por meio do controle de estruturas administrativas e pela mediação de demandas locais. Ambos podem vocalizar pautas conservadoras, mas sua atuação se ancora no manejo cotidiano das redes que garantem estabilidade municipal.

Player importante no cenário estadual, o deputado federal Dr. Luizinho (PP / União Progressista) constitui outro exemplo dessa dinâmica. Deputado federal com forte base em Nova Iguaçu e influência significativa em setores estratégicos como a saúde, viu seu alcance político reduzido após o escândalo envolvendo falhas graves de biossegurança no estado. O episódio mostra que escândalos podem reordenar o equilíbrio entre lideranças locais, evidenciando a sensibilidade dessas redes às condições práticas de governabilidade e não ao alinhamento ideológico nacional.

A estratégia de Paes busca operar nesse campo: ampliar vínculos com essas lideranças, estabilizar alianças regionais e reduzir a possibilidade de que a extrema direita venha a contar com um palanque robusto no estado em 2026. Cabe ressaltar que a interiorização não é apenas um movimento geográfico, mas uma tentativa de reorganizar o tabuleiro estadual em torno de pactos territoriais que limitem o espaço oposicionista, o que tem consequências em termos ideológicos .

Isto porque, nesse movimento, Paes adota um discurso pendular, alternando acenos à direita e à esquerda conforme o público, a agenda e o território. Essa oscilação não expressa indefinição programática, mas uma estratégia para ampliar seu raio de negociação em um estado no qual diferentes segmentos do eleitorado são estruturados por demandas territoriais, redes locais e clivagens profundas de segurança pública. O discurso pendular funciona como mecanismo de aproximação simultânea de setores conservadores — especialmente na Baixada e no interior — e de redes progressistas que compõem sua base na capital.

A oscilação estratégica de Paes torna-se ainda mais evidente quando observamos sua movimentação em torno da pauta da segurança pública. A visita a Nayib Bukele, presidente de El Salvador, em abril deste ano, insere-se justamente nesse esforço de modular seu discurso de acordo com o ambiente político local. O gesto foi dirigido sobretudo ao eleitorado da Baixada e de regiões fortemente afetadas por milícias e grupos armados, onde propostas de endurecimento penal possuem apelo imediato. Ao mesmo tempo, ao se manifestar publicamente sobre o tema, evita declarações que indiquem a adesão explícita ao modelo salvadorenho, preservando a conexão com segmentos progressistas da capital e com o campo democrático. Esse ambiguidade foi mantida no mais importante fato político de 2025 para os eleitores do Rio de Janeiro, cuja magnitude provocou impactos relevantes no plano nacional, oferecendo ao até então desconhecido governador Cláudio Castro (PP) os seus momentos de fama, ao custo de mais de cem vidas e de uma cidade paralisada por pelo menos um dia.

A partir do tema da segurança pública, que ganha cada vez mais centralidade para as próximas eleições, parece surgir um novo candidato do campo da direita fluminense: o atual prefeito de Belford Roxo, Marcio Canella (União Brasil). O então deputado estadual mais votado nas eleições de 2022, Canella se tornou prefeito em 2024 de uma cidade que, no Rio de Janeiro, possui um histórico de violência, adotando desde logo a campanha “Barricada Zero” e atuando de maneira direta no tema. A estratégia política foi reconhecida, aumentando seus níveis de popularidade, sendo replicada pelo governador do estado e o consolidando como virtual candidato, haja vista o enfraquecimento da candidatura do presidente da ALERJ, Rodrigo Bacellar (União Brasil).

3. O palanque fluminense: a relevância do Rio de Janeiro no tabuleiro nacional

A pauta da segurança pública permanece como o eixo determinante para a orientação política no estado do Rio de Janeiro, mas seu peso hoje ultrapassa a escala estadual. Embora a segurança sempre tenha tido implicações nacionais, o tema adquiriu centralidade inédita à medida que o crime organizado passou a operar de forma integrada em redes que atravessam fronteiras municipais e estaduais. Facções, milícias e grupos armados estruturaram cadeias de atuação cada vez mais conectadas, com capacidade de produzir efeitos simultâneos em diferentes regiões do país. Esse processo redefiniu a segurança como clivagem nacional, capaz de organizar identidades políticas, estruturar expectativas eleitorais e moldar coalizões institucionais em múltiplos níveis. A capilaridade territorial da violência — distribuída entre milícias, facções e redes interestaduais de proteção armada — cria um ambiente no qual a demanda por respostas rápidas tende a deslocar o debate para soluções de curto prazo e ações de impacto imediato.

Nesse terreno, o campo progressista enfrenta limites evidentes. Seu repertório tradicional — ancorado em políticas sociais, urbanização, prevenção e presença estatal — não encontra tradução imediata em contextos onde o medo, a sensação de abandono e o controle territorial de grupos armados condicionam a experiência cotidiana dos eleitores. Em regiões como a Baixada Fluminense, parte da Zona Oeste e municípios do interior, a promessa de “restauração da ordem” funciona legitimamente como um elemento determinante da mobilização de sentimentos e angústias que precipitam as identidades políticas, uma vez que conecta segurança à dignidade, cotidiano e acesso a serviços.

Esse cenário favorece candidaturas de direita, inclusive aquelas que não apresentam coerência programática consistente na área, mas que recorrem a uma narrativa punitivista unificada: aumentar penas, ampliar recursos para as forças de segurança, autorizar o uso mais intenso da força policial e restabelecer a autoridade estatal diante da percepção de desordem. A eficácia eleitoral desse discurso não depende da viabilidade técnica das propostas, mas de sua capacidade de sintetizar estes sentimentos e angústias especialmente em regiões marcadas pela presença limitada do Estado e pela demanda por respostas imediatas diante da violência.

Por outro lado, a fragmentação do sistema de segurança — entre polícias, guardas municipais, grupos armados e arranjos locais informais (as milícias)— produz incentivos para a atuação de elites territoriais que se colocam como mediadoras entre o Estado e os moradores. Esse sistema abastece a política local e sustenta lideranças que combinam influência comunitária, relações com corporações de segurança, com as milícias e o acesso a recursos federais via emendas parlamentares.

O argumento apresentado por Antonio Lavareda em artigo publicado na Folha de S.Paulo em 22 de novembro de 2025 — segundo o qual “a segurança não decide eleições presidenciais no Brasil” — precisa ser relativizado diante do momento de transformação que atravessa o sistema político. Paradigmas considerados estáveis, como a centralidade da economia nas escolhas eleitorais e a expectativa de moderação discursiva por parte de incumbentes, vêm sendo tensionados pela ascensão de uma extrema direita que nacionalizou o punitivismo e passou a adotar um discurso de radicalização contra inimigos internos e externos. O que antes era um repertório restrito à direita subnacional tornou-se bandeira de alcance nacional, mobilizada por lideranças que exploram abertamente o medo, apresentam-se como barreiras contra ameaças difusas e defendem maior truculência estatal diante da percepção de desordem. Nesse contexto, a segurança pública já não opera como tema periférico, mas como clivagem capaz de estruturar identidades políticas, reorganizar coalizões e moldar escolhas eleitorais — inclusive na disputa presidencial.

Assim, segurança pública, interiorização das alianças e redistribuição de poder via emendas convergem para reposicionar algumas forças políticas do Rio de Janeiro como peças centrais no tabuleiro das eleições nacionais de 2026. Nessa chave, acredito que o resultado do pleito não será definido exclusivamente pela circulação de narrativas nacionais — sejam elas favoráveis à direita, como segurança pública e temas morais, ou à esquerda, como economia, políticas sociais e meio ambiente. Ele dependerá, sobretudo, da capacidade das candidaturas presidenciais e estaduais de operar nas arenas territoriais onde hoje se concentram poder político, recursos públicos e mecanismos efetivos de mobilização.

A força eleitoral da extrema direita se sustenta no acesso a esses pactos locais, enquanto a movimentação de Eduardo Paes — ao articular elites fisiológicas, ajustar o discurso de segurança e estreitar o espaço para um palanque oposicionista — altera o arranjo estadual com impactos imediatos sobre a disputa presidencial. A articulação entre território, emendas e segurança pública torna o Rio de Janeiro decisivo para desenhar as estratégias do campo progressista para 2026. A disputa exigirá a atração das franjas não extremistas da direita e a composição de arranjos pragmáticos com este propósito. O país ainda tenta recuperar instituições, políticas públicas e proteção socioambiental; não sobreviverá a outro ciclo de degradação como o vivido no governo Bolsonaro.

A prisão de Jair Bolsonaro — em um episódio marcado pelo uso de ferro quente para burlar a tornozeleira eletrônica e pela convocação de uma vigília em frente à sua casa — pode oferecer um alento ao governo ao deslocar, ainda que temporariamente, o eixo do debate público da segurança para a polarização com o bolsonarismo, justamente a dinâmica que permitiu a formação da frente ampla vitoriosa em 2022 e que segue sendo a aposta mais consistente para repetir esse resultado em 2026.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.