Entre cotas cosméticas e o racismo estrutural da caserna
As Forças Armadas continuarão sendo o que sempre foram: um Estado dentro do Estado, uma casta privilegiada que consome bilhões enquanto prega austeridade
É com uma mistura de ceticismo e indignação renovada que observamos a mais recente tentativa de maquiar a face racista das Forças Armadas brasileiras. A Lei nº 15.142, sancionada por Lula em 3 de junho último, que reserva 30% das vagas em concursos militares para pretos, pardos, indígenas e quilombolas, mais parece um curativo institucional sobre uma ferida gangrenada que se arrasta desde os tempos coloniais.
Que não nos enganemos: esta medida, celebrada com pompa pela ministra Anielle Franco como fruto de um “governo humanizado” (não estou dizendo que este governo não seja, mas nesse caso é irônico), é antes de tudo o reconhecimento tácito de que as Forças Armadas brasileiras, essas mesmas que se arrogam guardiãs da pátria, são um bastião do apartheid social. Afinal, se não houvesse racismo estrutural entranhado na caserna, por que seria necessária uma lei para forçar a entrada daqueles que compõem a maioria da população brasileira?
A base dessa estrutura perversa permanece intocada. O fosso abissal entre oficiais e praças é herança maldita do Império que persiste com vigor renovado e não será resolvido com percentuais. Enquanto o corpo de oficiais continua sendo recrutado entre os próprios militares (perceba que grande parte dos generais é filho de um outro grande oficial), favorecendo a perpetuação endógena do poder, os praças seguem sendo o depósito dos “descartáveis” da sociedade: pretos, pobres, nordestinos, aqueles para quem o quartel é muitas vezes a única alternativa à miséria ou ao crime.
As mesmas Forças Armadas que agora devem destinar 30% das vagas são as herdeiras diretas daquelas que massacraram indígenas, caçaram quilombolas e chicotearam negros escravizados. O cinismo histórico é evidente: a instituição que foi instrumento de genocídio agora se vê obrigada a abrir suas portas, ainda que parcialmente, aos descendentes de suas vítimas históricas.
Não surpreende que essa distinção de origem social tenha gerado, ao longo da história, revoltas sangrentas. João Cândido e a Revolta da Chibata ainda incomodam a Caserna. São símbolos de uma resistência que a instituição prefere silenciar. O “espírito de corpo” tão valorizado entre oficiais nunca incluiu os corpos negros que eram açoitados nos conveses ou humilhados nos quartéis.
A narrativa oficial de um Exército nascido da união das “três raças” em Guararapes – mitologia barata que parece ter capturado até mesmo a ministra Sônia Guajajara, que celebra inocentemente essa Lei como “mudança concreta” – soa como escárnio diante da realidade. Como pode haver união onde há hierarquia racial? Como falar em democracia racial em uma instituição onde, até ontem, negros eram sistematicamente barrados das academias militares?
O serviço militar obrigatório – esse resquício colonial que transforma jovens pobres em bucha de canhão – continuará intocado. A elite seguirá encontrando seus jeitinhos para livrar seus filhos da humilhação do quartel, enquanto os filhos do povo serão arrastados para dentro de uma máquina de moer gente que agora promete ser 30% mais “inclusiva”.
Nem a homofobia institucionalizada, nem o machismo estrutural, nem o classismo entranhado, nada disso será resolvido por cotas. A própria necessidade de “procedimentos de verificação da autodeclaração racial” revela o quão profundo é o problema: numa sociedade verdadeiramente igualitária, não seria necessário criar bancas para verificar se alguém é “negro o suficiente” para merecer uma vaga.
O que temos, portanto, não é uma reforma, mas uma operação cosmética. As Forças Armadas continuarão sendo o que sempre foram: um Estado dentro do Estado, uma casta privilegiada que consome bilhões em mordomias enquanto prega austeridade para o povo, uma instituição que se julga acima da lei e tutora da República.
A verdadeira reforma exigiria muito mais do que cotas. Exigiria o fim do serviço militar obrigatório, a extinção dos tribunais militares para crimes comuns, a subordinação real e efetiva do poder militar ao poder civil, a abertura dos arquivos da ditadura, o julgamento dos torturadores, a desmilitarização das polícias. Exigiria, sobretudo, que as Forças Armadas abandonassem sua obsessão paranóica com o “inimigo interno”, que invariavelmente tem cor, classe e endereço.
Enquanto isso não acontece, celebremos cinicamente os 30%. Afinal, é melhor ter alguns negros e indígenas participando do orçamento militar do que deixá-lo exclusivamente nas mãos da branquitude fardada. Mas não nos iludamos: incluir oprimidos em uma estrutura de opressão não a torna menos opressora. Apenas distribui mais “democraticamente” o direito de oprimir.
Que João Cândido, do seu túmulo esquecido, contemple esta farsa. E que os jovens negros, indígenas e quilombolas que agora entrarão pelas cotas saibam: vocês não estão entrando numa instituição republicana e democrática. Estão entrando no ventre da besta que devorou seus ancestrais. A diferença é que agora ela promete mastigá-los com 30% mais de “diversidade”.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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