CONTINUA APÓS O ANÚNCIO
Taciano Valério avatar

Taciano Valério

Professor UFPE/Caruaru

7 artigos

blog

Entre Dudas, Lauras, Joelenas e médicos “cloroquiners”

Enquanto há médicos cloroquiners no atacado e no varejo, existe uma minoria que tem nos ensinado sobre qual saúde devemos seguir

(Foto: Arquivo pessoal)
CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no canal do Brasil 247 e na comunidade 247 no WhatsApp.

A medicina tem como objetivo a cura de doenças, e o médico é um instrumento de aplicação desse saber que tanto pode curar como provocar iatrogenias. Tal conhecimento foi construído a partir de um solo epistemológico das ciências empírico formais baseadas numa racionalidade médica, que recobra funções da física mecanicista e da matemática cartesiana, aplicando-as sobre o corpo biológico.

Em suas bases a formação médica é tangenciada pela Anatomia, Histologia, Fisiologia, Patologia e Bioquímica, utilizando-se desses saberes para construir o seu modus operandi. Ao aportar em solo fértil das doenças que pululam na dimensão pública o doente não quer saber quais as bases epistemológicas da medicina do seu médico, ou seja, o paciente busca o médico para debelar a sua dor, doença e mal-estar. Então, o médico busca no seu modelo de medicina resolver o problema do doente. Já o paciente busca no médico a resolução do seu conflito. Uma embolada cerne de muitas questões que se arrastam nas cercanias territoriais do saber e da prática médica.

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Nesse contexto, o paciente traz a premissa de que o médico é um doutor detentor de conhecimento inexpugnável, semideus. O médico - a partir do seu suposto saber - se relaciona com uma parte do paciente e não com a pessoa do paciente. Assim, o paciente busca conversar sobre a sua dor numa quase crença de que o médico vai resolver num passe (receita mágica) - a problemática em torno do doente.

Logo, nesse encontro desalinhado entre médico e paciente há uma variação afetiva. O paciente se apresenta diante da sua fragilidade exposta pelo sofrimento capaz das mais diversas peripécias afetivas, transitando entre o apego ao médico e à desilusão e vice-versa. O médico, por sua vez, desloca-se entre a tarefa de receber a demanda do doente e o dever de dar uma resposta ao fenômeno do adoecimento. Nesse deslocamento, o humor do médico parece variar entre afetos inclinados à boa vizinhança, acomodando o hóspede e dando-lhe um olhar atento, escuta e encaminhamentos necessários, para afetos próximos da indiferença e alheamento do processo. Diante do olhar frágil, medroso, cheio de detalhes que marejam entre a expectativa, esperança e sofrimento do paciente, o médico se põe na sensível posição de lidar com as demandas do encontro numa tarefa nada fácil exigindo-lhe muitas vezes algo para além das tratativas racionais. Logo, o médico sofre e o doente também, mas o médico tem a opção de voltar para casa, tomar um banho, comer, dormir e sonhar, já o paciente não.

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

O pensador Michel Foucault nos dizia que as ciências médicas são herdeiras de um saber cujo maior signo é o cadáver, ou seja, o cadáver é um corpo ideal para ser estudado porque não fala, não geme, não sente dor e principalmente não transmite os seus afetos e emoções. Nesse sentido, a questão não é se o modelo de medicina vigente está errado, mas que a tal medicina do cadáver - ou da simulação - enquanto paradigma hegemônico, não dá conta da realidade do doente e das questões de saúde em nossa sociedade. Precisamos de outros paradigmas que atravessem o saber médico e possam construir pontes entre o saber médico organicista e outros saberes/fazeres, bem como de esforços institucionais esclarecidos pelas visões da ciência, comunidades, povos e relações.

Alguns cursos de medicina são muito sensíveis a isso e buscam apresentar em sua grade e práticas curriculares elementos para dar passagem aos fluxos de uma medicina que nem sempre pode ser sistematizada, daí a necessidade da arte e da contribuição de saberes como a psicanálise, filosofias existencialistas, antropologia, sociologia, saberes ancestrais, espiritualidades, e saberes decoloniais. Destaco nesse sentido o curso de Medicina da UFPE em Caruaru, que teve sua primeira turma iniciada no ano de 2014.

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

No referido ano, o professor e médico Rodrigo Cariri desembarcou na principal cidade do Agreste Pernambucano trazendo em sua nau o desvio como possibilidade de uma educação médica não subserviente ao mercado, mas em comunicação com a comunidade e com o SUS. Podemos pensar que ele trouxe uma peste, no sentido da contaminação do saber médico por uma via fora dos ditames exclusivos da hegemonia do saber/fazer ensino médico, baseado numa medicina cuja evidência é pautada pela racionalidade médica instrumental e o desinteresse por questões da terra, dos saberes nômades e territoriais.

Muitos profissionais, professores, funcionários e técnicos tiveram que pensar numa medicina construída junto à comunidade, utilizando metodologias ativas em sala de aula, saberes sensíveis e artístico culturais e discussões decoloniais, não subjugando o paradigma biomédico, mas tentando estabelecer diálogo entre a medicina baseada em evidências e o paradigma ético/estético/político, apresentando um desvio para uma medicina do século XXI, mesmo que haja ventos contrários na atualidade.

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Recentemente tive uma conversa com a ex-estudante Duda Spencer egressa do curso. Ela trabalha em Palmeiras dos Índios no interior do estado de Alagoas como médica assistente do povo Xucuru Kariri em sete aldeias. Ela vive seu cotidiano de trabalho junto aos povos originários e me disse sobre as potencialidades de exercer uma intermedicalidade - considerando sua experiência intercultural - junto às comunidades, agregando saberes diversos do seu substrato para desconstruir a norma médica pautada na ideia de Saúde como ausência de doença. Segundo Duda, que também se graduou em filosofia e questiona os conceitos normatizados, a Saúde não pode ser vista como a ausência de doença, mas com um olhar mais profundo, ético, envolvendo as relações humanas com o meio ambiente, os direitos e as condições das pessoas lutarem contra as formas de opressão… é, inclusive, o que os povos originários da América Latina defendem na ética do Bem Viver e onde Duda se ampara para atuar enquanto profissional do cuidado, do SUS, nos seus encontros clínicos pelos territórios.

Outra egressa do curso, Laura Canejo, atua em aldeias indígenas em Sergipe e Alagoas: povo Xokó no sertão e povo Tingui Botó no agreste alagoano. Laura se põe diante da experiência do curso de Medicina na UFPE/Caruaru e dos seus trabalhos nas aldeias nos seguintes termos:

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

“O campus Caruaru me proporcionou desejar um cuidar que não carece de birô, jaleco branco e bem passado, palavras difíceis. Me proporcionou um encontro clínico que conta histórias, que territorializa, que tem cheiro, lágrimas, indignação, apelidos, evidências, que respeita o gestar, que preza pelas práticas de saberes tradicionais, e que se ampara em Rede, que acredita e vive o SUS! Estou certa de que ter estado inserida desde o primeiro período da faculdade no território das unidades básicas de saúde, ter tido a oportunidade de vivenciar o contato com os povos indígenas na graduação, ouvir a fala de resistência do MST… ouvir meu próprio corpo no laboratório de sensibilidades da UFPE. O contato com um corpo docente que contempla entre médicos de família e comunidade, artistas, antropólogos, psicólogos ampliou minhas perspectivas do ser médica, do cuidar. Acredito na definição de saúde do MST, que me tomou desde que ouvi: Saúde é a capacidade de lutar contra tudo aquilo que nos oprime”.

A aluna Joelena Brito, do oitavo período do curso de Medicina, é enfática ao falar da relação médico paciente numa visão crítica buscando uma aproximação maior com minorias e grupos negligenciados.

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

O médico, hoje, objetifica o paciente, e enxerga apenas seu corpo, se apoderando dele, de sua queixa principal e história da doença atual, tocando e sentindo com o único objetivo de praticar uma semiologia puramente diagnóstica e resolutiva do que dói no momento, esquecendo ou querendo esquecer que o que dói agora é resultado de uma vida, que somente uma boa relação entre médico e paciente é capaz de revelar, trazer à tona, e permitir, portanto, a resolução do problema, e não do que dói. Ferramentas não faltam para que esse vínculo se forme, mesmo em cenários de urgência e emergência. O que sobra em demasia, é a vontade e necessidade do médico de se afastar, de não saber, de ignorar, para se proteger e se manter invulnerável às aflições dos outros e também às suas. Nessa medicina que se pratica baseada em queixa-conduta, as doenças se repetem, os pacientes se tornam a doença, o retorno às unidades de atendimento, básico ou não, se tornam recorrentes, e o problema não é sanado, apesar de que a dor sim. O que precisa ser feito é ouvir, respeitar, se guiar pelo Código de Ética Médica e também por um código ético, e conhecer, entender, dar espaço para que o corpo vire gente, e não paciente. Só assim a medicina atinge o sucesso que tanto almeja, a resolução da queixa. Só assim a medicina consegue, também, exercer proteção à criança e ao adolescente, às mulheres, aos idosos, à população LGBTQIA+, aos indígenas, atributos que muitos médicos pensam não serem seus, mas que também são. O direito e o gozo à saúde plena faz parte de uma cidadania plena, como então o médico não está incluído em questões sociais, que envolvem populações negligenciadas?! O que não se tem mais é tempo, e sobra medo de se expor à dor do outro, à dor da alma. E por isso não da-se o mínimo e básico, o tempo, o sentar e ouvir, ao paciente. Por isso também não da-se respeito, já que acolher é respeitar. E assim a medicina segue, na queixa-conduta, sem resolutividade, sem relação médico paciente, sem o básico, que é ouvir, respeitar e entender...”

Ora, a formação das médicas acima e da aluna em formação não as tornam melhores que outros profissionais e alunos de outras instituições alojados em formações menos orientadas às práticas humanísticas e mais relacionados a medicina biomédica e gerencial. O que problematizamos é que o nosso modelo médico vigente baseado em paradigmas científicos e delineados nas práticas médicas orientadas por esse viés, nos põe um alerta diante de um acontecimento recente:  o que fez alguns profissionais médicos tomarem o caminho obscurantista da cloroquina?

Basicamente a noção de doxa pode nos ser útil. É uma palavra grega que significa opinião. Logo, a doxa enquanto opinião se mostra contrária aos conhecimentos epistêmicos e muitas vezes são baseados em premissas eivadas de passionalidades e crenças surgindo uma complicação quanto aos médicos “cloroquiners”: Qual tipo de medicina eles praticavam receitando cloroquina e ivermectina para os pacientes?

Medicina baseada em evidências não era, mesmo que muitos desses médicos a usem no seu cotidiano para outros fins. Uma medicina narrativa atravessada pela antropologia, sociologia médica e outros saberes também não. Ao refletir sobre esses fatos, leva-me a pensar numa “medicina doutrinária”, medicina baseada na paixão que cobre esses corpos debaixo dos jalecos brancos, quase sacerdotal e comum com a retórica neofacista do capitão. Uma paixão para com o ocupante da cadeira presidencial, num amor consagrador como dos apóstolos para com o messias, no entanto, acredito que está mais para a música de Bruno e Marrone, Amor Bandido: tanta paixão, loucura que não passa;amor bandido e solidão é uma ressaca.

Assim, quando um médico tomou o caminho da cloroquina e da ivermectina ele aproximou-se da medicina do gado sendo capitaneado pelo pensar torto. No momento, sobra-lhe o quinhão da ressaca e do medo, já que depois de milhares de mortos, a vacina tem pautado a cena e a cloroquina virando assunto jurídico e de cadeia.

Assim, qual formação queremos para nossos futuros médicos? Não se trata da discussão em torno do melhor ou pior paradigma, mas de antever que nossa sociedade recobra posicionamentos em que a formação médica impõe elementos éticos e o reconhecimento da saúde como algo para além do hospital ou aquém do hospital, a exemplo da rua, do campo, das relações como fenômenos circunscritos nos modos de existir das minorias, etc. Talvez a saúde esteja hoje mais relacionada a modos de existência em que a máxima seria: consumir menos para melhor existir.  Duda, Laura e Joelena não reproduzem simplesmente o conhecimento médico, elas produzem diante de outros saberes da sociedade um saber a mais, pois não repetem a ideia de que a doença tem que acontecer para existir. Um saber a mais porque não reproduzem a ideia de que o médico deve existir entre quatro paredes. Um saber a mais porque não disseminam a falácia de que os melhores cursos de medicina estão nas capitais.

Elas pensam um saber a mais porque tiveram uma formação no curso de Medicina da UFPE/Caruaru que pensava e pensa diferente, o que obviamente uma formação diferente não constitui seres superiores e distintos, sendo mais uma questão de empatia e de saberes sensíveis, éticos, estéticos e micropolíticos. Ademais, uma experiência afetiva e não mercadológica. 

Assim como há médicos que querem ser únicos para se criarem hegemônicos (poder), há os médicos que querem ser outros para se criarem vários (diversidade).

Enfim, enquanto há médicos cloroquiners no atacado e no varejo, existe uma minoria de Dudas, Lauras e Joelenas que tem nos ensinado sobre qual saúde devemos seguir...

iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popular

Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista:

Carregando os comentários...
CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Cortes 247

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO
CONTINUA APÓS O ANÚNCIO