Entre o perdão e a arrogância togada, o STM revelou o quanto teme a própria consciência
Maria Elizabeth Rocha falou em nome da História; o ministro respondeu em nome da hierarquia — confundindo arrependimento com afronta e empatia com heresia
A presidente do STM, Maria Elizabeth Rocha, rebateu críticas misóginas do ministro Carlos Augusto Amaral Oliveira em sessão nesta terça-feira (4). Ela rejeitou o “tom misógino, travestido de conselho paternalista” de Oliveira, que sugeriu que ela “estudasse um pouco mais da história do tribunal”.
Elizabeth, primeira mulher no cargo em 217 anos, havia pedido perdão por erros e omissões judiciais cometidos durante a ditadura militar — em ato realizado na Catedral da Sé, em São Paulo, no último 25 de outubro, pelos 50 anos do assassinato do jornalista Vladimir Herzog. No mesmo discurso, citou vítimas como Rubens Paiva e Miriam Leitão, evocando a memória dos que sofreram nas mãos de uma Justiça que, à época, serviu mais ao poder do que à lei. (Curiosamente, o que deve ter dado nos nervos do ministro foi que a televisão captou José Dirceu, emocionado, aplaudindo a presidente do STM).
O embate com o ministro gerou bate-boca e até a sugestão de uma reunião fechada, como se o eco da História ainda precisasse ser abafado entre paredes de cimento e cal.
A reação do ministro veio dias depois, na sessão seguinte do tribunal, transformando o que poderia ter sido um gesto interno de cortesia institucional em um ato público de ressentimento histórico. Em tom ríspido, Carlos Augusto Amaral Oliveira fez um pronunciamento que se estendeu por longos minutos, lido entre hesitações, pausas e contradições, no qual buscou se dissociar da fala da presidente e da ideia de arrependimento que ela representava.
O discurso, proferido sob o manto da formalidade judicial, tornou-se rapidamente um espelho do que o próprio STM ainda reluta em reconhecer: sua dificuldade de lidar com o passado e de encarar o papel que desempenhou durante os anos de exceção.
Mais do que uma divergência jurídica, tratou-se de uma colisão simbólica. De um lado, a coragem da reparação; do outro, o constrangimento de quem confunde arrependimento com fraqueza. A presidente falou em nome da consciência; o ministro, em nome da tradição. O resultado foi o retrato de uma instituição dividida entre o passado e o possível futuro — entre a Justiça que julga e a Justiça que finalmente se julga.
O tom burocrático da intervenção do ministro — “peço registro em ata”, “não lhe outorguei mandato”, “nego essa delegação” — é o vocabulário da autopreservação. Ele se diz defensor da liberdade de opinião, mas o que reivindica é o direito de não ser confundido com o perdão. Sua fala é uma tentativa de salvar-se da história, travestida de zelo institucional. E, ironicamente, ao tentar negar o gesto da presidente, ele o eterniza.
O ministro fala para o arquivo, não para o presente. Deseja que sua recusa fique registrada “para os arqueólogos da História”. É o medo de quem sabe que o futuro julgará não só o silêncio, mas também o barulho feito para impedir que outros falem. A menção aos “arqueólogos” revela uma consciência atormentada: ele sabe que o perdão — gesto de lucidez e humildade — transformou a paisagem simbólica do tribunal, abrindo uma fissura na muralha de solenidades onde há décadas se escondem as culpas não ditas.
Talvez o ministro tenha se inspirado — sem saber — em Chico Buarque, aquele que cantou os “arqueólogos do futuro” desenterrando versos e vestígios de amor. Só que, neste caso, não encontrarão poesia alguma — apenas atas frias, carimbos e o pó de uma consciência pesada.
Voltemos, então, ao discurso do ministro e ao seu conteúdo, onde a forma revela tanto quanto as palavras. O que se quis defender como ato de lucidez institucional se expõe, linha por linha, como demonstração de arrogância togada — a convicção de que a toga confere superioridade moral, mesmo quando a História já decretou o contrário. É o velho reflexo de um poder que não pede desculpas porque nunca aprendeu a duvidar de si.
A oralidade truncada — “é, bom, é, eu, eu, é…” — expõe o desconforto. A gramática hesita onde a consciência fraqueja. A cada pausa, uma tentativa de recalcular a rota moral. Não é apenas nervosismo; é a dificuldade de nomear o que sempre se preferiu ocultar. Sua irritação é o sintoma daquilo que tenta negar: o reconhecimento de que houve erros, e que a Justiça Militar foi parte deles.
Ao insinuar que a presidente deveria “estudar mais a história do tribunal”, o ministro deixa escapar o viés paternalista que ela denunciou. O “conselho” vem carregado de um machismo cerimonioso, o tipo que ainda sobrevive sob o disfarce do protocolo. Ele fala como quem repreende uma aluna ousada, não como quem dialoga com uma colega de toga. É a língua do patriarcado institucional, fantasiada de cortesia.
O que o ministro pretendeu apresentar como defesa da neutralidade revela-se, no fundo, um discurso de poder. Ele não defende a história — defende a versão. Ao negar o perdão, reafirma a lógica de sempre: a Justiça Militar não erra, apenas “cumpre seu dever”. Mas o ato de Maria Elizabeth Rocha expôs a fissura dessa narrativa. Pela primeira vez, uma voz do próprio tribunal admitiu o que o país sempre soube: que a toga, quando cega, pode ser cúmplice da violência.
A insistência do ministro em dizer “não falo em nome do tribunal, falo por mim” é uma estratégia de sobrevivência discursiva. É a tentativa de salvar-se individualmente de uma culpa coletiva. Mas todo esforço de isolamento termina revelando o que pretende esconder: há culpa compartilhada. E há também medo — o medo de que a palavra “perdão” abra um precedente moral dentro das paredes da caserna.
No fundo, o ministro quis preservar o próprio nome. Conseguiu apenas preservar o sintoma. Sua fala pertence à galeria dos discursos que tentam apagar a sombra lançando mais escuridão. Ele quis que seu nome ficasse em ata — e ficará. Mas não como imaginava: não como o guardião da tradição, e sim como o símbolo do desconforto de uma geração que ainda acredita que pedir perdão é fraquejar.
Enquanto ele pedia “registro”, a História, sem pedir licença, já o registrava.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.



