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Rogério Puerta

Engenheiro agrônomo, atuou por doze anos na Amazônia brasileira em projetos socioambientais. Atuou em assentamentos da reforma agrária no Distrito Federal por dez anos e atualmente vive em São Paulo imerso em paixões inadiáveis: música e literatura. Escreveu diversos livros

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Esgoto da sociedade: seu ganha-pão

A sociedade produz escórias, materiais, e também comportamentais

(Foto: WILSON DIAS/ABR)
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Garis, faxineiras, varredores, coletores. São chamados lixeiros. Toda a vida no planeta gera e acumula detritos, as palhadas ao redor dos bananais, o guano de aves valoroso que se acumula em rochedos no litoral do Chile, as escórias da sociedade humana. Excrementos, membros amputados nos prontos-socorros, frações tóxicas da industrialização.

Ao redor do mundo há os empregos e ocupações que a maioria das pessoas evita. Sujo, pesado ou perigoso. Bem possível a combinação dos três, aí um grande repúdio adicional. Não necessariamente esta combinação se refere ao esgoto da sociedade, mas não está nada longe disto.

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Os atletas coletores em caminhões de lixo: ambiente sujo, insalubre, trabalho corporal intenso e ímpeto de energia, o perigo de um motociclista na via pública passar tresloucado, em zigue-zague, a centímetros dos garis em ação.

A perguntar-nos com sinceridade se sempre embalamos apropriadamente o que vai ao lixo de rua. Um caco de vidro, soquete de lâmpada quebrada, metal cortante de latas de conserva, uma agulha. Separar ao lixo comum ou reciclagem. Nossa responsabilidade separar ou apenas agir tal qual o garoto mimado que deixa tudo o que come em casa espalhado pelos cantos, migalhas de pão e facas com manteiga, pois a doméstica preta e engraçada tudo recolherá até de bom humor.

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Uma das leis do capitalismo rege: oferta e demanda. Traduz-se em: havendo quem pague, será pago. Vários estudos bem acurados atestam que as economias de sociedades tais quais a estadunidense entrariam em colapso caso, abruptamente, cessasse a mão de obra clandestina mais barata, ilegal, explorada, discriminada, vilipendiada e ainda ridicularizada.

O trabalho árduo de hondurenhos, salvadorenhos, mexicanos, ambos os sexos, todos e todas ilegais nos EUA. Meter uma muralha que os impeça de entrar tão somente após deixar que entre o suficiente para abastecer uma nova demanda por serviços indesejados. Pragmatismo ultracapitalista.

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No ponto de ônibus um sujeito brada taxativo sobre os garis brasileiros: "Mas eles ganham bem, têm plano de saúde". Complementa: "Conheço moça que trabalha de faxineira nos Estados Unidos, ganha lá o que aqui ganha uma gerente". Sempre as justificativas, o focar aquilo que é ruim, mas poderia ser ainda pior. Pimenta nos olhos dos outros é refresco. Consta uma provável origem escravocrata desta estranha expressão popular.

Lixo, aí sim, o lixo mesmo, hoje muitos já diferenciam, crianças nas escolas aprendem com as socioeducadoras que há os três erres: reciclável, reaproveitável, reutilizável. E o composto orgânico para as minhocas de estimação criadas em caixinha plástica acima da pia da cozinha, uma diversão.

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A faxineira sua vizinha, hoje diarista por não aceitarem contrato em carteira, teve de mudar de regime de trabalho tão logo foi aprovado o justo reconhecimento pela profissão das empregadas domésticas. Ela se esgota, sacrifica o corpo e o tempo de vida, as costas já com hérnia de disco. Boa parte de sua existência na Terra passa dentro de transportes públicos, em pé, para ir e vir de casas da classe média em bairros distantes.

A irmã dela trabalha como caixa de supermercado, sempre está com uma aparência cansada, triste, desanimada. Diz ela que não pode nem ir direito ao banheiro do supermercado, que lá não há faxineira, onde os funcionários de lá mesmo limpam, para economizar.

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Não pode sequer passar um tempo pouco maior ao banheiro, uma indisposição alimentar qualquer. O patrão conservador e machão sempre de olho, sedento por reprimir em público, expor a funcionária aos clientes que ficaram esperando passar as suas compras, na fila do caixa, esperando a funcionária que se demorou ao banheiro, lá de onde não pagam faxineira.

Lixo. Aí sim o lixo mesmo. No Rio de Janeiro um deslizamento de terra matou muita gente, casas sobre um antigo aterro sanitário. Nas Filipinas uma montanha de lixo desaba e sepulta dezenas de pessoas. Orgulho nacional, Brasil varonil, o maior lixão a céu aberto da América Latina de onde se vê o Congresso Nacional nem tão distante no horizonte.

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Vez ou outra lá em Brasília um infeliz morria atropelado pelo caminhão de despejo, a perna ficava presa em meio à imundície ainda fofa e inconstante. Adolescentes entre os adultos, escondidos, seus pais para sobreviverem trabalhavam de sol a sol em meio a um odor infernal e aos detritos da sociedade brasiliense.

Todo tipo de detrito, clandestinos fetos humanos inclusos. Faz de conta. A sociedade brasileira não pratica abortos considerados ilegais, não é uma questão de saúde pública, mas sim de falta de evangelho e caráter, assim vários dizem.

Maria da Dores, sua vizinha: "Ontem foi bem pior, hoje até que deu pra resolver, mas ontem o jeito do entupimento na privada da rodoviária quase não deu solução. Lá a paga é melhor, mas o trabalho é o mais difícil de todos. O gerente da empresa diz que banheiro de rodoviária não basta estar limpo, precisa parecer limpo, pra que os outros respeitem, mas não dá, é tanta gente, e todo mundo faz muita sujeira, como pode?".

"Ninguém faz estas coisas na própria casa. Uma amiga minha faz piada, diz que só eu vejo cocô de cor e tamanho diferente junto na privada. Ela é rica, nem sabe, em casa de pobre é a mesma coisa, um banheiro e cinco pessoas usando, às vezes entope o vaso sanitário, alguém usa o banheiro logo depois de outro, sem dar tempo de encher a caixinha de água acoplada".

"Tenho receita infalível pra entupimento de privada: meter o braço na podridão toda, sem medo e de uma vez, sem olhar e com o nariz fechado. O cabo do escovão não dá conta, não passa na curva toda do vaso. Arrumei uma luva bem comprida no braço, meto água sanitária depois, o patrão me elogia, diz que só eu mesmo consigo desentupir coisa que ninguém consegue, entupimento que junta uns dois macho tentando e não consegue nada. Acostumei, ou isto ou não consigo levar o pão morno e o leite fresco pra mesa de casa, a carne moída de segunda cheia de sebo pra janta".

Em bairro carioca periférico um ex-policial expulso da corporação acaba de dar um tiro de ponto quarenta na cabeça de um preto de vinte anos. O negro, só mais um morador da comunidade onde o ex-policial atua em conluio com sua milícia local. Um lixo. O preto jovem é tal qual um lixo fedorento pra ele.

Segurança. Todos respeitam a milícia da comunidade, o grupo de justiceiros. O moleque preto, feio que só e meio metido a besta, apareceu querendo dar uma de bandido, apareceu na comunidade com uma camiseta ilustrando uma AK47, brincou de querer passar fumo e pó na viela. Levou bala mesmo, antes teve os dentes da boca quebrados na coronhada, os globos oculares explodidos também no cabo da ponto quarenta.

O miliciano carioca depois da tortura e execução voltou a sua casa satisfeito, missão cumprida, um voto no PT a menos, CPF cancelado, tiro na cabecinha. Chegou a casa e fez festa com a filhinha de cinco anos, também com o guri mais novo de três, que vai ser delegado da PF, se Deus assim permitir, glória pai abençoado.

Sem remorso, mácula ou sentimento qualquer de culpa, sem comiseração. Manejou e praticou o profundo esgoto da psique humana, o sadismo, mas não é um psicopata não, assim se julga. No entanto alegará algum distúrbio caso um dia for pego. Acha que nunca ocorrerá, impunidade, mas se um dia o pegarem já tem os álibis e as justificativas ensaiadas, a estória toda montada e combinada com comparsas. Estaria ele sob o efeito de remédios controlados, sob forte emoção, tem vários atestados médicos e receitas confiáveis bem guardadas na gaveta de casa.

O texto do excludente de ilicitude, uma Bíblia de cabeceira, lindo texto a louvar e propagar. Percorrer a comunidade comandada por sua milícia é o seu ganha-pão, o útil unido ao agradável, só mês passado faturou uns 20 mil limpos. Ele, o esgoto da sociedade.

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