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Gustavo Guerreiro

Indigenista na Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas). Pesquisador do Observatório das Nacionalidades, editor da Revista Tensões Mundiais. Doutor em Políticas Públicas. Especialista em questões militares. Diretor de Pesquisas do Cebrapaz (Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz).

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Espasmos autoritários: misoginia e a negação da história no STM

O ataque misógino à presidente do STM é mais do que uma grosseria regimental

Maria Elizabeth Rocha (Foto: José Cruz/Agência Brasi)

Há palcos em Brasília que parecem cenários esquecidos de uma peça que teima em não acabar. O Superior Tribunal Militar (STM) é um deles. Um híbrido institucional, parte toga, parte coturno, onde o tempo parece correr numa cadência diferente da urgência democrática que (supostamente) rege a Esplanada. É um daqueles edifícios onde a liturgia pesa mais que o fato, e a história é um monumento a ser lustrado, jamais questionado.

Pois foi lá, nesse ambiente rarefeito, que a Ministra Maria Elizabeth Rocha fez o impensável.

Ela pediu perdão.

Não foi um pedido de desculpas protocolar, desses que se faz por um atraso na sessão. Foi um gesto de dimensão histórica, talvez o mais importante daquela corte em décadas. Como a primeira mulher a presidir o STM em seus mais de 200 anos de história (um dado que, por si só, já é um tratado de sociologia), a ministra, que é civil, olhou para o passado e reconheceu o que tantos insistem em negar: os “erros e omissões judiciais” da corte durante a ditadura militar.

Silêncio.

Imaginemos a cena. O ar deve ter ficado pesado. Reconhecer “erros” da Justiça Militar no período 1964-1985 não é pouca coisa. É admitir, nas entrelinhas, que a tortura foi ignorada, que os processos eram farsas, que o habeas corpus era letra morta e que a instituição serviu como braço de legitimação de um regime de terror. Foi um ato de coragem cívica. Um aceno tardio, sim, mas um aceno vital às vítimas e à própria democracia.

A democracia, afinal, alimenta-se de verdade. Ela precisa nomear seus demônios para exorcizá-los. Sem isso, eles retornam, como vimos há não muito tempo, em quartéis e em praças.

A reação, no entanto, não tardou. E ela foi tão reveladora quanto o próprio pedido de perdão. Dou-lhes uma pista: a Caserna é filha dileta do período colonial.

Segundo o noticiário, um colega de corte, ministro militar, não apenas discordou. Ele atacou. A reação foi hostil, destemperada. O argumento de fundo, o de sempre: a negação. A velha cantilena de que a história não foi bem assim, de que o contexto era outro, de que as Forças Armadas salvaram o país. O revisionismo em estado puro, não o acadêmico, mas o ideológico.

O que se seguiu, porém, foi o ponto nevrálgico da questão. A Ministra Rocha não se calou. Ela não apenas rebateu a tentativa de reescrever a história; ela nomeou o método do ataque. Acusou o colega de usar um “tom misógino”.

Aqui, o drama institucional sai da esfera da disputa de narrativas sobre 1964 e entra na dimensão crua das nossas estruturas de poder.

Por que “misógino”?

Tendemos a crer, talvez por ingenuidade ou por conforto intelectual, que o debate em altas cortes se dá no plano das ideias. Tese e antítese. Fatos e jurisprudência. Mas o que o episódio no STM escancara é que, quando os fatos são incontornáveis (e os crimes da ditadura o são, basta ler os autos do projeto “Brasil: Nunca Mais”, que nem foi o Estado quem fez, mas a sociedade civil acuada), o argumento do negacionista não ataca o fato. Ele ataca o portador do fato.

A ministra, por ser mulher e por ser civil, é duplamente “outra” naquele ambiente. Ela é a intrusa. A civil que ousa julgar os militares. A mulher que ousa presidir os homens.

O “tom misógino” não é apenas a voz alta, o dedo em riste ou a interrupção grosseira. Isso é só a superfície, a falta de decoro. A misoginia estrutural, neste contexto, é a violência simbólica. É a tentativa de desqualificar a fala da ministra não pelo seu conteúdo (o perdão necessário), mas pela sua condição (a mulher que fala o que não deve).

É o velho mecanismo patriarcal, que conhecemos dos jantares de família aos conselhos de administração: a mulher que se posiciona com firmeza é “histérica”; o homem, “assertivo”. A mulher que traz à tona um erro do passado é “revanchista”; o homem, “guardião da tradição”.

O ataque no STM foi uma tentativa de restauração da ordem. Não da ordem democrática, mas da ordem da caserna. A ordem onde a hierarquia precede a verdade, e onde a mulher — mesmo sendo a presidente da corte — deve, em última instância, saber o seu lugar. O lugar do silêncio. O lugar da omissão.

O que o ministro-general (ou brigadeiro, ou almirante, tanto faz a farda) parece não ter entendido é que, ao reagir com misoginia, ele apenas validou a tese da Ministra Rocha. Ele provou, cabalmente, por que o pedido de perdão era tão urgente.

A recusa em aceitar os “erros e omissões” do passado é feita do mesmo material tóxico que permite o ataque misógino no presente. É a mesma lógica autoritária. A lógica da força sobre a razão. A lógica que nega a humanidade do outro: ontem, a do “subversivo” torturado; hoje, a da mulher que preside.

Este episódio é uma radiografia da nossa dificuldade crônica em lidar com o legado autoritário. O Brasil, ao contrário da Alemanha pós-guerra ou da África do Sul pós-apartheid, optou por uma transição “lenta, gradual e segura” que, na prática, significou uma anistia ampla, geral e, principalmente, recíproca.

Nós nunca tivemos nossos Julgamentos de Nuremberg. A nossa Comissão da Verdade, instalada com décadas de atraso, produziu um relatório monumental, que dorme em gavetas e sofre ataques constantes. O resultado é que as instituições que sustentaram o regime de exceção nunca foram, de fato, reformadas. Elas nunca fizeram seu mea culpa.

O Judiciário comum tem sua dívida. O Ministério Público, idem. A imprensa tem esqueletos no armário (basta lembrar de editoriais infames apoiando o golpe). Mas o STM é um caso à parte. Ele é o próprio legado.

Enquanto as outras instituições, aos trancos e barrancos, tentam (ou fingem tentar) se adequar aos ventos do Artigo 5º da Constituição de 1988, o STM permanece como um bolsão ideológico. Um enclave.

A sua própria composição é uma anomalia democrática: uma maioria de ministros militares, que julgam seus pares, e uma minoria de civis. Como esperar que uma instituição desenhada para manter a ordem militar (baseada em hierarquia e disciplina) tenha a sensibilidade para julgar crimes contra os Direitos Humanos (baseados em dignidade e igualdade)?

A fala da Ministra Rocha foi uma tentativa de oxigenar esse porão. De abrir uma fresta para que a luz da Constituição de 1988 finalmente entrasse ali. A reação hostil e misógina foi o sistema imunológico da caserna reagindo ao “corpo estranho” da democracia.

O custo desse silêncio institucional, que a ministra tentou quebrar, é altíssimo. Ele não vive apenas no passado. Ele corrói o presente.

Quando o STM se recusa a reconhecer seu papel sombrio na ditadura, ele envia uma mensagem ao presente. A mensagem é que a impunidade compensa. A mensagem é que, sob certas “circunstâncias”, a violência de Estado é justificável.

Não é coincidência que, em 2024, ainda tenhamos que discutir a participação de militares em atos golpistas, como os de 8 de Janeiro. Se a geração anterior, que comprovadamente torturou e matou, nunca foi punida pela justiça (militar ou civil), por que a geração atual, que “apenas” conspirou contra a urna eletrônica, temeria alguma consequência?

A impunidade do passado é o adubo da sedição do presente.

O ataque misógino à presidente do STM é, portanto, mais do que uma grosseria regimental. É o sintoma da fragilidade argumentativa do negacionismo. Quem não tem fatos, grita. Quem não tem razão, ataca a pessoa. E, no Brasil de hoje, o ataque preferencial contra mulheres que ousam é a misoginia.

O que fazer? A indignação é necessária, mas insuficiente.

O gesto da Ministra Maria Elizabeth Rocha precisa ter consequências institucionais. O primeiro passo seria a instalação de uma “Comissão da Verdade” interna no próprio STM, para auditar seus arquivos e publicar, oficialmente, o reconhecimento dos “erros e omissões” que ela corajosamente denunciou. Seria uma vacina.

Mas a longo prazo, a solução é mais profunda. Precisamos discutir a própria existência de uma corte superior militar em tempos de paz, ou, no mínimo, sua composição. Aliás, que outro país tem uma corte dessa natureza em tempos de paz?

A proposta de inverter a lógica, com uma maioria de ministros civis — juristas de notório saber democrático, e não apenas notório saber jurídico — é o mínimo que se espera. É preciso desmilitarizar o entendimento da corte sobre Direitos Humanos e sobre a própria História.

Enquanto o STM for um tribunal de militares para militares, com alguns civis de enfeite, ele continuará sendo o que vimos na reação ao discurso da ministra: o último suspiro de um autoritarismo que se recusa a morrer.

A coragem de Maria Elizabeth Rocha foi tentar ressuscitar a verdade. A reação misógina foi o espasmo do cadáver da ditadura, que ainda teima em feder nos corredores do poder.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.