Espasmos autoritários: misoginia e a negação da história no STM
O ataque misógino à presidente do STM é mais do que uma grosseria regimental
Há palcos em Brasília que parecem cenários esquecidos de uma peça que teima em não acabar. O Superior Tribunal Militar (STM) é um deles. Um híbrido institucional, parte toga, parte coturno, onde o tempo parece correr numa cadência diferente da urgência democrática que (supostamente) rege a Esplanada. É um daqueles edifícios onde a liturgia pesa mais que o fato, e a história é um monumento a ser lustrado, jamais questionado.
Pois foi lá, nesse ambiente rarefeito, que a Ministra Maria Elizabeth Rocha fez o impensável.
Ela pediu perdão.
Não foi um pedido de desculpas protocolar, desses que se faz por um atraso na sessão. Foi um gesto de dimensão histórica, talvez o mais importante daquela corte em décadas. Como a primeira mulher a presidir o STM em seus mais de 200 anos de história (um dado que, por si só, já é um tratado de sociologia), a ministra, que é civil, olhou para o passado e reconheceu o que tantos insistem em negar: os “erros e omissões judiciais” da corte durante a ditadura militar.
Silêncio.
Imaginemos a cena. O ar deve ter ficado pesado. Reconhecer “erros” da Justiça Militar no período 1964-1985 não é pouca coisa. É admitir, nas entrelinhas, que a tortura foi ignorada, que os processos eram farsas, que o habeas corpus era letra morta e que a instituição serviu como braço de legitimação de um regime de terror. Foi um ato de coragem cívica. Um aceno tardio, sim, mas um aceno vital às vítimas e à própria democracia.
A democracia, afinal, alimenta-se de verdade. Ela precisa nomear seus demônios para exorcizá-los. Sem isso, eles retornam, como vimos há não muito tempo, em quartéis e em praças.
A reação, no entanto, não tardou. E ela foi tão reveladora quanto o próprio pedido de perdão. Dou-lhes uma pista: a Caserna é filha dileta do período colonial.
Segundo o noticiário, um colega de corte, ministro militar, não apenas discordou. Ele atacou. A reação foi hostil, destemperada. O argumento de fundo, o de sempre: a negação. A velha cantilena de que a história não foi bem assim, de que o contexto era outro, de que as Forças Armadas salvaram o país. O revisionismo em estado puro, não o acadêmico, mas o ideológico.
O que se seguiu, porém, foi o ponto nevrálgico da questão. A Ministra Rocha não se calou. Ela não apenas rebateu a tentativa de reescrever a história; ela nomeou o método do ataque. Acusou o colega de usar um “tom misógino”.
Aqui, o drama institucional sai da esfera da disputa de narrativas sobre 1964 e entra na dimensão crua das nossas estruturas de poder.
Por que “misógino”?
Tendemos a crer, talvez por ingenuidade ou por conforto intelectual, que o debate em altas cortes se dá no plano das ideias. Tese e antítese. Fatos e jurisprudência. Mas o que o episódio no STM escancara é que, quando os fatos são incontornáveis (e os crimes da ditadura o são, basta ler os autos do projeto “Brasil: Nunca Mais”, que nem foi o Estado quem fez, mas a sociedade civil acuada), o argumento do negacionista não ataca o fato. Ele ataca o portador do fato.
A ministra, por ser mulher e por ser civil, é duplamente “outra” naquele ambiente. Ela é a intrusa. A civil que ousa julgar os militares. A mulher que ousa presidir os homens.
O “tom misógino” não é apenas a voz alta, o dedo em riste ou a interrupção grosseira. Isso é só a superfície, a falta de decoro. A misoginia estrutural, neste contexto, é a violência simbólica. É a tentativa de desqualificar a fala da ministra não pelo seu conteúdo (o perdão necessário), mas pela sua condição (a mulher que fala o que não deve).
É o velho mecanismo patriarcal, que conhecemos dos jantares de família aos conselhos de administração: a mulher que se posiciona com firmeza é “histérica”; o homem, “assertivo”. A mulher que traz à tona um erro do passado é “revanchista”; o homem, “guardião da tradição”.
O ataque no STM foi uma tentativa de restauração da ordem. Não da ordem democrática, mas da ordem da caserna. A ordem onde a hierarquia precede a verdade, e onde a mulher — mesmo sendo a presidente da corte — deve, em última instância, saber o seu lugar. O lugar do silêncio. O lugar da omissão.
O que o ministro-general (ou brigadeiro, ou almirante, tanto faz a farda) parece não ter entendido é que, ao reagir com misoginia, ele apenas validou a tese da Ministra Rocha. Ele provou, cabalmente, por que o pedido de perdão era tão urgente.
A recusa em aceitar os “erros e omissões” do passado é feita do mesmo material tóxico que permite o ataque misógino no presente. É a mesma lógica autoritária. A lógica da força sobre a razão. A lógica que nega a humanidade do outro: ontem, a do “subversivo” torturado; hoje, a da mulher que preside.
Este episódio é uma radiografia da nossa dificuldade crônica em lidar com o legado autoritário. O Brasil, ao contrário da Alemanha pós-guerra ou da África do Sul pós-apartheid, optou por uma transição “lenta, gradual e segura” que, na prática, significou uma anistia ampla, geral e, principalmente, recíproca.
Nós nunca tivemos nossos Julgamentos de Nuremberg. A nossa Comissão da Verdade, instalada com décadas de atraso, produziu um relatório monumental, que dorme em gavetas e sofre ataques constantes. O resultado é que as instituições que sustentaram o regime de exceção nunca foram, de fato, reformadas. Elas nunca fizeram seu mea culpa.
O Judiciário comum tem sua dívida. O Ministério Público, idem. A imprensa tem esqueletos no armário (basta lembrar de editoriais infames apoiando o golpe). Mas o STM é um caso à parte. Ele é o próprio legado.
Enquanto as outras instituições, aos trancos e barrancos, tentam (ou fingem tentar) se adequar aos ventos do Artigo 5º da Constituição de 1988, o STM permanece como um bolsão ideológico. Um enclave.
A sua própria composição é uma anomalia democrática: uma maioria de ministros militares, que julgam seus pares, e uma minoria de civis. Como esperar que uma instituição desenhada para manter a ordem militar (baseada em hierarquia e disciplina) tenha a sensibilidade para julgar crimes contra os Direitos Humanos (baseados em dignidade e igualdade)?
A fala da Ministra Rocha foi uma tentativa de oxigenar esse porão. De abrir uma fresta para que a luz da Constituição de 1988 finalmente entrasse ali. A reação hostil e misógina foi o sistema imunológico da caserna reagindo ao “corpo estranho” da democracia.
O custo desse silêncio institucional, que a ministra tentou quebrar, é altíssimo. Ele não vive apenas no passado. Ele corrói o presente.
Quando o STM se recusa a reconhecer seu papel sombrio na ditadura, ele envia uma mensagem ao presente. A mensagem é que a impunidade compensa. A mensagem é que, sob certas “circunstâncias”, a violência de Estado é justificável.
Não é coincidência que, em 2024, ainda tenhamos que discutir a participação de militares em atos golpistas, como os de 8 de Janeiro. Se a geração anterior, que comprovadamente torturou e matou, nunca foi punida pela justiça (militar ou civil), por que a geração atual, que “apenas” conspirou contra a urna eletrônica, temeria alguma consequência?
A impunidade do passado é o adubo da sedição do presente.
O ataque misógino à presidente do STM é, portanto, mais do que uma grosseria regimental. É o sintoma da fragilidade argumentativa do negacionismo. Quem não tem fatos, grita. Quem não tem razão, ataca a pessoa. E, no Brasil de hoje, o ataque preferencial contra mulheres que ousam é a misoginia.
O que fazer? A indignação é necessária, mas insuficiente.
O gesto da Ministra Maria Elizabeth Rocha precisa ter consequências institucionais. O primeiro passo seria a instalação de uma “Comissão da Verdade” interna no próprio STM, para auditar seus arquivos e publicar, oficialmente, o reconhecimento dos “erros e omissões” que ela corajosamente denunciou. Seria uma vacina.
Mas a longo prazo, a solução é mais profunda. Precisamos discutir a própria existência de uma corte superior militar em tempos de paz, ou, no mínimo, sua composição. Aliás, que outro país tem uma corte dessa natureza em tempos de paz?
A proposta de inverter a lógica, com uma maioria de ministros civis — juristas de notório saber democrático, e não apenas notório saber jurídico — é o mínimo que se espera. É preciso desmilitarizar o entendimento da corte sobre Direitos Humanos e sobre a própria História.
Enquanto o STM for um tribunal de militares para militares, com alguns civis de enfeite, ele continuará sendo o que vimos na reação ao discurso da ministra: o último suspiro de um autoritarismo que se recusa a morrer.
A coragem de Maria Elizabeth Rocha foi tentar ressuscitar a verdade. A reação misógina foi o espasmo do cadáver da ditadura, que ainda teima em feder nos corredores do poder.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
