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Urariano Mota

Autor de “Soledad no Recife”, recriação dos últimos dias de Soledad Barrett, mulher do Cabo Anselmo, entregue pelo traidor à ditadura. Escreveu ainda “O filho renegado de Deus”, Prêmio Guavira de Literatura 2014, e “A mais longa duração da juventude”, romance da geração rebelde do Brasil

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Eu sou subversiva!

Um testemunho literário sobre militância, desejo contido e a memória ferida da luta revolucionária no Brasil dos anos 1960

Soledad Barrett Viedma (Foto: Reprodução)

Recebi notícias nesta semana tão intensas que perdi a necessária serenidade para escrever uma nova coluna. Então, sinto que é mais sensato divulgar um trecho do próximo romance “O que mantém um homem vivo”, ainda inédito:

“E assim voltava a razão daquelas chagas, que eram marcas da batalha da Rua Maria Antônia, em 1968, quando a militante foi atingida por garrafas de ácido sulfúrico nas pernas. Então, sem erotismo pela origem, as suas coxas avultavam da batalha. A bravura voltava a ser eloquente, com um discurso que animava para a luta, candente nos corações.

— O que são as dificuldades para a vitória do socialismo, companheiro?

— O que são nossas dificuldades frente ao heroísmo do vietcongue?...

— Eu sou subversiva! Eu quero virar este mundo de cabeça para baixo.

Quando ela falava assim, pelo eco em nossa consciência, mais que falava palavras. Falava imagens que carregávamos em nós mesmos, e não falávamos tão eloquentemente. ‘O que você quiser de nós, fale, mulher. Fale, jovem que não é mais criança. O que deseja deste servo da causa?’.

Tantas paixões e amores ela fez despertar. Mas não a este narrador, que foi tragado pelo amor a Soledad Barrett no livro “Soledad no Recife”. E por que, em um coração sem abrigo, ela não despertou a ambição de amá-la? Havia nela os cabelos ruivos, a pele branca, uma altura mignon. Isso queria dizer que a sua beleza não era morena, à luz da lua, quando caminhava pela relva do Parque 13 de Maio, no Recife. No parque, ela vai à nossa frente, baixinha, magra, de minissaia. E nós, marmanjões de 19 ou 20 anos, a segui-la como operários que defendem a sua rainha. A sua altura não produzia em mim uma paixão entre iguais, como se ela fosse uma criança ou filha rebelde, embora tivéssemos quase a mesma idade. E, falando mais claro, na sua beleza externa, exterior talvez, não encontrava palavras poéticas de ternura. Pelo contrário, o seu discurso era de ação, de cobranças, lembro.

— O trabalho aqui, como vai? Não, não falemos em dificuldade. A luta é difícil em toda parte. É preciso chamar os setores progressistas. Organizá-los.

Eram palavras de fome, pelo estado de necessidade material precária em que vivia.

— Me pague uma sopa. Sem sopa não há revolução.

É claro, todos os pensamentos alheios à poesia seriam derrubados a um toque de dedos da sua mão. Mas, como se soubesse, o choque elétrico dos dedos da sua mão ela o evitava. Era louca tocar de modo carinhoso jovens carentes? Disso ela já estava experiente, apesar dos seus 19 anos de idade. Ela sabia o que despertava em toques voluntários ou não. Pois assim era a carência do tempo. Sem toques, ela evitava nossos problemas. Bastavam-lhe os da repressão, que não a intimidava. É sintomático que, em nossa memória, ela não volte com o bem da sua feminilidade. Devo dizer: ela não volta com a graça e atração da sua feminilidade. Seria como se ela, de repente, retornasse somente com o seu rosto, com a sua cabeça até o pescoço. Mas como tal absurdo é possível? É que ela retorna a partir de uma página imortal do escritor Marco Albertim:

‘Ela apareceu na porta, quando os outros conversavam nos fundos do quintal. Enrolada num lençol branco, cabelos soltos, fadiga nos olhos. Fala-lhes baixo, com autoridade. Apreciam-lhe o discurso; bebem, como um unguento noturno, seu juízo sem tropeços.

— A dona do sítio me disse que não é comum, por aqui, reunião de madrugada. A luz pode chamar atenção. Vocês devem entrar para dormir...

Mais tarde, na cama, sente pruridos nas pernas, dá-se conta do incômodo na bexiga. Levanta-se. Empurra a porta do banheiro nos fundos, sem ruído. Está sem os chinelos, no chão frio. Não acendeu nenhuma luz; a do quintal permanece acesa. Não senta para mijar, fica de frente à latrina, olhando para baixo. Os cabelos cobrem-lhe os lados do rosto.

No banheiro, um dos nossos depara-se com ela nua, parada, com gestos vagos nas mãos. Dá meia-volta e estranha-a por não tê-lo visto ou sentido sua presença. Ela anda em seu rumo, com os olhos fechados, movendo os beiços...’.

Ela, naquela hora, é rosto, pescoço, a cabeleira assanhada, o olhar que não vê o espanto em torno. Ela está nua e coberta a um só tempo. É desejável, mas de um desejo tabu, pecaminoso, porque não se devia querer uma liderança do movimento clandestino. E como podiam sonhar com a musa de pernas em chagas? “Vais foder uma torturada?”. Por maior perversão que houvesse, tal projeto não prosperava. Há um impedimento erótico, vencido pela destruição da beleza. O erótico, mesmo o que se fortalece em incestos, não assalta o valor de semelhante abismo. Como haver erotismo na exibição de vísceras? Os perversos, pervertidos, brutos recuam. Então, as chagas e o delírio da líder se incluíam em suas coxas e ventre. Assim, ela volta à memória com o rosto e o pescoço, como uma mulher-tronco. E, para a força da lembrança, o corpo desejável nem se precisa ver. A sua plenitude de luta heroica vem, inesquecível, dela e de todos os combatentes.

— O que são as dificuldades para a vitória do socialismo, companheiro? — ela nos fala. — O que são nossas dificuldades frente ao heroísmo do vietcongue?

Lembro que, em Soledad, a ambição do amor era de um toque.

Como poderia tocar Soledad? Eu estive à distância menor que um braço daquela face ardente, e tudo o que meu instinto e alma pediam era: toca, toca o teu destino. ‘Ela pode ser tocada’. Os beija-flores, mais educados que os amantes, sabem que podem tocar a intimidade da corola, tocam-na e são felizes. Talvez porque eles saibam o momento e o lugar, enquanto os amantes, febris, não sabem nem uma coisa nem outra. Os amantes, quando entregues à paixão, são fantoches do desejo. Os amantes loucos e febris, com absoluta certeza. (Devia haver algum demônio com cordéis naquela sala de luz tênue.) No entanto, os loucos, em sua incerteza e imprudência, por vezes acertam, e tomam e bebem em toda a plenitude a taça, até a borra. Ferozes, felizes e felizardos. Escrevo isso e, ao apertar os olhos, sinto que voltam a se abrir marejados. Isso porque sei que houve um momento em que Soledad se deixou ficar em um canto, à espera de ser tocada. Como uma guerreira que se põe terna e convidativa no cio. Abandonada flor rubra que pede e clama ser beijada. Fecundada no toque.

Mas, naquele momento, Soledad ainda não havia sido violentada, massacrada no feto e no ventre.”

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.