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Eu tenho um sonho

Um pouco mais de 50 anos depois de Luther King, a sociedade brasileira convive implicitamente com outra espécie de segregação racial, o racismo institucional

Martin Luther King e Malcolm X (Foto: Reuters)

No dia 28 de agosto de 1963 o ativista político norte-americano Martin Luther King Jr proferiu um dos seus mais emblemáticos discursos em Washington, capital dos Estados Unidos, o discurso que tem como título “I have a dream” na tradução “Eu tenho um sonho”. O cenário vivido na época apresentava uma sociedade norte-americana que além de reivindicações por melhorias sociais convivia com uma intensa segregação racial, Martin Luther King Jr dedicou grande parte de sua vida em defesa dos direitos civis humanos. Neste discurso, o Dr. King mencionou que apesar da libertação dos escravos ter sido assinada pelo Presidente Abraham Lincoln 100 anos antes, a sociedade atual ainda exercia atitudes discriminatórias em relação aos indivíduos afrodescendentes. 

Um dos trechos mais impactante do discurso e reiterado pelos livros didáticos e meios de comunicação por todos esses anos é o seguinte; “Eu tenho um sonho, que meus quatro pequenos filhos um dia viverão em uma nação onde não serão julgados pela cor da pele, mas pelo conteúdo do seu caráter”.

Um pouco mais de 50 anos depois a sociedade brasileira convive implicitamente com outra espécie de segregação racial, o racismo institucional, em outras literaturas mencionadas como racismo estrutural. Trata-se de uma situação cômoda onde não se assume publicamente o preconceito, uma forma disfarçada de racismo enraizado, instituído e estruturado na sociedade, vendido constantemente pelos grandes meios de comunicação como algo “normal”.

 O racismo Institucional/Estrutural apresenta-se de forma gradual e eficaz no cotidiano social, para explanar o assunto vamos utilizar um exemplo ocorrido 2017, um vídeo supostamente “vazado” nas redes sociais, cujo conteúdo apresenta um jornalista renomeado, que na ocasião trabalhava em uma multinacional, usando palavras de baixo calão e atribuindo uma situação inconveniente de forma pejorativa a indivíduos da raça negra. Diante de tamanha repercussão a empresa emitiu um comunicado em rede nacional informando o afastamento do jornalista por tempo indeterminado e logo em seguida veio a sua demissão, observemos um trecho do comunicado emitido; “O grupo afirma ser visceralmente contra o racismo em todas as suas formas e manifestações” e, por isso, toma a decisão do afastamento até que a situação esteja esclarecida”. O que soou apenas como um “cala boca” aos críticos, pois a mesma empresa pratica há anos o racismo Institucional/Estrutural, a empresa que tem como o seu principal produto de entretenimento as novelas, onde dificilmente encontramos personagens negros e quando encontramos vemos o cidadão negro retratado em situações sociais inferiores ao branco, essa falta de representatividade dificulta o simples ato do cidadão negro se aceitar como negro e nesse caso podemos levar em consideração a seguinte expressão popular; “A vida imita a arte”, ou seria “A arte imita a vida”? Nesse caso tanto faz, o fato é que segundo dados do IBGE a população Brasileira é composta por 54% de negros, perante esses dados responda pra você mesmo as seguintes questões; Por quantos médicos negros você já foi atendido em sua vida? Quantos professores negros já te deram aula na universidade? É nítido que a maioria da população Brasileira não ocupa os grandes cargos nas empresas, sejam elas Hospitais, escritórios de advocacia, bancos, tribunais etc, quem está à frente e toma as decisões na sociedade são os brancos. Desde o ensino fundamental onde se encontra a espinha dorsal da educação, ou seja, a base onde se procura a formação dos princípios dos cidadãos, as ilustrações educativas atrelam o indivíduo afrodescendente a um mero beneficiário de programas sociais, o que visa induzir a ideia que ser negro é sinônimo de pobreza.

 O racismo Institucional/Estrutural é resultado de mais de 300 anos de escravidão, o processo de abolição no Brasil não deu as mínimas condições para que o negro se restabelecesse na sociedade, abandonando-o a sua própria sorte, as perseguições policiais a população negra é um reflexo da imagem marginalizada que se criou principalmente no jovem negro, o fato é que um negro tem 23,5% de chances a mais de ser assassinado do que uma pessoa branca – dado que chega a 147% quando o negro é um jovem de até 21 anos. Dados que afloram os sentimentos de revolta de quem habita nas periferias, pois sem justiça não há paz.

Esse tipo de segregação não se enquadra exclusivamente ao povo negro, o pobre em geral e principalmente as mulheres brancas ou negras, além de sofrerem com violência social são colocadas na base da pirâmide econômica, em 2017 o IBGE indicava que o rendimento médio das mulheres era de R$ 800 ao mês, já homens brancos chegavam a ganhar quase o dobro: R$ 1.559. Entretanto a mídia sempre reserva um espaço para maquiar essa situação, a “Festa do povo” está chegando, o Carnaval, grande meio de arrecadação de dinheiro pelo governo, onde a mulher é exposta como um pedaço de carne na prateleira que está a venda para os turistas, estima-se que o governo do estado deve investir R$ 12 milhões em pacote de editais para o carnaval de 2023, sinônimo de alta movimentação no turismo do Brasil, onde anualmente observamos uma ramificação do turismo sexual.

Martin Luther King Jr foi assassinado no dia 4 de abril de 1968, o mesmo não deve a oportunidade de presenciar em vida as concretizações de alguns dos seus sonhos citados naquele discurso, hoje em pleno século 21 o seu discurso ainda se faz atual em nossa sociedade, nós somos convocados a “sonhar”, porém no sentido de “agir” e não apenas assistir tudo pacificamente esperando que um dia as coisas mudem, o nosso olhar perante o racismo institucional/Estrutural tem que ser de uma luta constante, não aceitando calados os estereótipos atribuídos a raça negra. 

“Eu tenho um sonho” que um dia possamos ligar a televisão e acompanhado de nossas famílias possamos assistir o povo negro ser representando em quantidade igual ao povo branco, em situação social que incentive a população a buscar sua ascensão profissional e pessoal.

“Eu tenho um sonho” que um dia o povo negro possa ter os seus talentos reconhecidos, investidos e que não sejam resumidos como de costume às figuras com apenas habilidades musicais e esportivas.

 “Eu tenho um sonho” que um dia a sociedade tenha consciência que as ações afirmativas são necessárias para tentar corrigir injustiças e equiparar o negro na sociedade, porém as mesmas ações afirmativas não podem durar para sempre.

 “Eu tenho um sonho” que um dia não haverá mais a necessidade das discussões sobre cotas em universidades ou em qualquer outro espaço, pois as condições mínimas, iguais e de boas qualidades devem ser ofertadas a toda população sem distinção de cor, raça, credo, orientação sexual ou condição social. 

 Perante tudo isso, haverá pessoas que dirão que nos fazemos de vítimas, que com esses argumentos queremos criar uma guerra entre as raças e que racismo é coisa da nossa cabeça, esse tipo de atitude faz parte do racismo Institucional/Estrutural, eles querem que você acredite que está tudo normal, que nada precisa ser modificado.

 “Eu tenho um sonho” que a consciência que devemos ter é que a libertação do nosso povo ainda está em processo, não somos livres totalmente, de certa forma nosso povo continua escravizado por todos os meios que perpetuam o racismo Institucional/Estrutural e que devemos buscar ininterruptamente a nossa libertação, a vigilância para que nossos direitos não sejam violados ou abolidos deve ser constante.

Referências

WHITMAN CHRISTY, "O jovem Martin Luther King" Editora Nova Alexandria, 2013.

MEDEIROS AZEVEDO, JOSELÚCIA: "A Representação do negro no livro didático de história: A imagem do Afrodescendente para Alfredo Boulos Júnior" Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 21 de maio de 2016.

<http://monografias.ufrn.br:8080/jspui/bitstream/123456789/2248/1/Artigo_Joselucia_De_Medeiros_Azevedo.pdf> Acesso em 20 de novembro de 2017.

<http://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2017/11/mulheres-negras-acumulam-piores-indicadores-sociais-no-brasil> Acesso em 20 de novembro de 2017.

<https://extra.globo.com/noticias/rio/estado-vai-investir-12-milhoes-em-pacote-de-editais-para-carnaval-2023-25602933.html> Acesso em 10 de novembro de 2022.

<https://www.cartacapital.com.br/blogs/intervozes/muito-alem-do-cidadao-waack-o-racismo-estrutural-na-midia-brasileira> Acesso em 14 de novembro de 2017.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.