Europa, o prêmio Nobel da Paz, a guerra contra a Venezuela e o que a Palestina tem a ver com isso tudo
Não podemos mais ter ilusões. O que o comitê do Nobel e a Parlamento Europeu pretendem para o Sul Global é o retorno à condição de colônia
O Prêmio Nobel da Paz deste ano foi atribuido à Maria Corina Machado, uma escolha que mais uma vez demonstra o profundo desprezo da classe dominante européia pela democracia. É importante lembrar que o prestigioso Prêmio Sakharov de 2024 já tinha sido concedido à extrema direita da Venezuela. Este prêmio é concedido pelo Parlamento Europeu, segundo informa seu website:
“Todos os anos, o Parlamento Europeu atribui o Prémio Sakharov, que inclui um prêmio monetário no valor de 50 000 euros, para homenagear e apoiar pessoas e organizações excepcionais que defendem os direitos humanos, a democracia e as liberdades fundamentais.
O prêmio, criado em 1988, leva o nome de Andrei Sakharov, físico nuclear soviético e grande defensor da democracia e dos direitos humanos. Ele ganhou o Prémio Nobel da Paz de 1975 pelos seus esforços em conscientizar as pessoas sobre os perigos da corrida armamentista nuclear.”
Ainda segundo este site:
“O Parlamento Europeu atribuiu o Prêmio Sakharov 2024 para a Liberdade de Pensamento a María Corina Machado, líder das forças democráticas na Venezuela, e ao presidente eleito Edmundo González Urrutia, em representação de todos os venezuelanos dentro e fora do país que lutam pela reinstituição da liberdade e da democracia.”
“Este prêmio não é apenas um reconhecimento, mas também um lembrete de que a luta pela liberdade nunca é em vão. O futuro da Venezuela pertence ao seu povo e o Parlamento Europeu orgulha-se de estar ao seu lado”, afirmou então Roberta Metsola, presidente do Parlamento Europeu.
Já o comitê responsável pelo Prêmio Nobel da Paz justificou a escolha de Maria Corina Machado “pelo seu trabalho incansável na promoção dos direitos democráticos do povo da Venezuela e pela sua luta para alcançar uma transição justa e pacífica da ditadura para a democracia”.
O comitê ainda informa:
“Maria Corina Machado liderou a luta pela democracia face ao autoritarismo cada vez mais expansivo na Venezuela. A Sra. Machado estudou engenharia e finanças e teve uma curta carreira no mundo dos negócios. Em 1992, fundou a Fundação Atenea, que trabalha em prol das crianças de rua em Caracas.
Dez anos depois, foi uma das fundadoras da Súmate, que promove eleições livres e justas e tem realizado formações e monitorização eleitoral. Em 2010, foi eleita para a Assembleia Nacional, obtendo um número recorde de votos. O regime expulsou-a do cargo em 2014. Machado lidera o partido da oposição Vente Venezuela e, em 2017, ajudou a fundar a aliança Soy Venezuela, que une as forças pró-democracia do país, independentemente das divisões políticas.
Em 2023, anunciou a sua candidatura à presidência nas eleições presidenciais de 2024. Quando foi impedida de concorrer, apoiou o candidato alternativo da oposição, Edmundo Gonzalez Urrutia. A oposição mobilizou-se amplamente e reuniu documentação sistemática que comprovava que era a verdadeira vencedora das eleições. O regime declarou vitória e reforçou o seu controle sobre o poder.
A Sra. Machado recebe o Prémio Nobel da Paz, em primeiro lugar, pelos seus esforços para promover a democracia na Venezuela. Mas a democracia também está em retrocesso ao nível internacional. A democracia — entendida como o direito de expressar livremente a sua opinião, de votar e de ser representado num governo eleito — é a base da paz, tanto dentro dos países como entre eles.”
O que tanto o Parlamento Europeu quanto o comitê do Prêmio Nobel da Paz tentam fazer é legitimar a extrema-direita venezuelana como uma força “democrática” e consequentemente reforçar a narrativa do governo “ditatorial” do Presidente Maduro. Agem assim como instrumentos da classe dominante européia e de seus interesses. Informações sobre quem é de fato Maria Corina Machado estão amplamente disponveis, caso o Parlamento Europeu e o comitê do Prêmio Nobel da Paz estivessem de fato interessados em defender a democracia.
Sobre a eleição de 2024 uma pesquisa de opinião pública realizada na Venezuela informa o seguinte:
“O papel de María Corina Machado como líder da oposição de extrema direita foi rejeitado por 64,6% dos venezuelanos, de acordo com um estudo realizado pela empresa de sondagens Datanálisis.
Com estes índices de desaprovação, María Corina Machado fica 10 pontos abaixo da anterior classificação de popularidade geral, refletindo um declínio na perceção pública da sua liderança, que se tem caracterizado pela adesão à agenda política dos EUA e pela recusa em participar no processo de diálogo promovido pelo governo venezuelano.” (1)
E dentre muitos outros artigos publicados em diversos países, cito ainda este publicado na Argentina:
“A violência da direita, que mostra a sua verdadeira face, gera uma ampla repulsa na população e essa repulsa certamente tem sido a razão mais importante que explica por que o povo venezuelano não os elegeu em tempos de escassez, salários miseráveis, cortes de eletricidade, falta de gás, mortes evitáveis por falta de medicamentos, por bloqueios e sanções internacionais, mas também por erros do governo. Foi a violência racista e classista da direita que motivou aquela frase tão ouvida na Venezuela nos últimos 10 anos: Estamos mal, mas não queremos que voltem aqueles que nos governaram antes. María Corina Machado é a representante mais genuína dessa violência, por ser uma líder branca de família oligárquica e por ter estado ligada a todas as conspirações, a todos os atos de vandalismo e às guarimbas que assassinaram centenas de venezuelanos e venezuelanas. Ela representa o setor da oposição que nunca quis se apresentar às eleições e que tentou destituir Maduro do governo de forma violenta.” (2)
Uma importante cronologia da violência praticada pela extrema direita venezuelana e publicada na Venezuela termina com a seguinte informação:
“28 de julho a 3 de agosto de 2024. Reeleição do presidente Maduro. María Corina Machado e Edmundo González Urrutia voltaram a alegar fraude eleitoral e convocaram protestos que resultaram numa escalada de violência e caos destrutivo, num contexto de insurreição com fatores criminosos e tendências golpistas. Com um saldo de 25 mortos e 131 feridos, a maioria dos acontecimentos concentrou-se no Distrito Capital e no estado de Aragua; 76,2% dos incidentes ocorreram no âmbito de manifestações violentas, de natureza planeada e organizada, tanto os eventos como as suas lamentáveis consequências. Foram destruídos bens públicos e privados, incluindo instalações educativas e de saúde.” (3)
Recentemente o reconhecido especialista em política Latino Americana Dr. Francisco Dominguez escreveu:
No final de 2024, Prince, um mercenário profissional, juntamente com a extrema direita venezuelana, promoveu um plano para enviar um exército privado à Venezuela. Ele sugeriu que, se os EUA aumentassem a recompensa pela cabeça de Maduro para US$ 100 milhões, visando não apenas o presidente, mas também Diosdado Cabello e todo o governo, eles poderiam «apenas sentar e esperar a mágica acontecer». Prince e a extrema direita venezuelana chegaram a lançar uma campanha de financiamento coletivo, Ya Casi Venezuela (“Quase lá, Venezuela”), para arrecadar os US$ 100 milhões.”
“Em 12 de janeiro de 2025, Prince enviou uma mensagem de apoio à líder da oposição Maria Corina Machado, exortando-a a «permanecer firme».
Prince pressionou para que a recompensa fosse aumentada para US$ 100 milhões, mas quando o governo Biden o ignorou, ele garantiu o apoio dos senadores Marco Rubio e Rick Scott, que compartilham os seus objetivos. Em 20 de setembro de 2024, Scott e Rubio apresentaram a Lei de 2024 para Garantir Oportunidades Oportunas de Pagamento e Maximizar Recompensas pela Detenção de Funcionários Ilegais do Regime (a Lei STOP Maduro), alocando US$ 100 milhões — retirados de ativos venezuelanos apreendidos — para financiar os esforços de Prince para destituir Maduro.” (4)
Muito antes disso tudo, em 2014, um grupo de pesquisadores, parlamentares e estudiosos,incluindo, dentre outros, Jeremy Corbyn, Dr.Francisco Dominguez, Ken Loach e John Pilger, assinaram uma carta publicada pelo jornal The Guardian em que afirmam:
“Lamentamos a onda de violência por parte de setores minoritários e extremistas da oposição venezuelana, que deixou três mortos, 60 feridos e resultou em agressões físicas a instituições governamentais, incluindo tiros e ataques com cocktails Molotov ao canal de televisão estatal e à residência de um governador estadual Isto seguiu-se a uma campanha recentemente lançada pela extrema-direita venezuelana para La Salida (a destituição) do governo do presidente Maduro antes do fim do seu mandato constitucional em 2019. La Salida é liderada pelos políticos extremistas Leopoldo López e María Corina Machado, ambos implicados no golpe de 2002 na Venezuela. Esta não é a primeira vez que setores da oposição tentam derrubar o governo eleito por meios inconstitucionais, após terem perdido nas urnas.” (4)
Ainda muito mais grave é esta informação, publicada em 28/05/2024 (5):
“Hoje, o membro da oposição María Corina Machado, mais conhecida como La Sayona, que está percorrendo o país para pedir o voto dos venezuelanos para o candidato da bandeira, Edmundo González, é a mesma que em 2018 enviou uma carta ao primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, e ao então presidente da Argentina, Mauricio Macri, para atacar a Venezuela com a história da «mudança de regime».”
“Na sua conta na rede social X, a oposição justifica a aplicação da força contra a Venezuela com base em falsos argumentos relacionados com o tráfico de droga e o terrorismo, que supostamente representavam uma «ameaça real para outros países, incluindo, e especialmente, para Israel».”
“Estou convencida de que a comunidade internacional, de acordo com a doutrina da responsabilidade de proteger, é chamada a dar aos venezuelanos o apoio necessário para promover a mudança urgente de regime, com vista a restaurar a segurança nacional e internacional. Por esta razão, enviei recentemente algumas cartas a vários líderes mundiais com o objetivo de promover, perante o Conselho de Segurança das Nações Unidas, a adoção de medidas eficazes de proteção à Venezuela através da promoção de uma mudança de regime, uma medida que implica necessariamente um reforço da segurança internacional. Hoje, quero pedir a Israel e à Argentina que contribuam com a sua experiência e influência para avançar para uma tomada de decisão precisa e urgente no Conselho de Segurança», foi o pedido de La Sayona para que tropas estrangeiras minassem o território venezuelano.”
“Por esta razão, esse setor da oposição venezuelana manteve um silêncio cúmplice quando foram revelados os planos de invasão que o exército argentino havia contemplado em 2019 contra a Venezuela durante o mandato de Macri, que seriam executados sob a justificativa de razões humanitárias.”
“É por isso que, ainda hoje, setores da extrema direita venezuelana não condenam o massacre que Israel está a perpetrar contra o povo da Palestina, pois são os mesmos que pediam invasão para a Venezuela há alguns anos, apenas por causa de suas ambições de chegar ao poder e promover “uma mudança de regime”.”
O Parlamento Europeu e o comitê do Prêmio Nobel da Paz dificilmente ignoram todas estas informações. Também não devem ter ignorado este interessante encontro que aconteceu este ano na Europa e que foi amplamente divulgado:
“ Reunindo-se sob a bandeira «Patriotas pela Europa», há dois meses a extrema-direita europeia encontrou-se em Madrid, reunindo líderes políticos da corrente trumpista como uma espécie de Vingadores fascistas. Marchando sob as bandeiras do ultranacionalismo, da xenofobia, da islamofobia, do antissemitismo e do neofascismo, representantes da França, Itália, Portugal, República Checa, Áustria, Estônia, Grécia e Polônia foram recebidos por Santiago Abascal, do partido espanhol Vox, no dia 8 de fevereiro.
Além do frequentemente repetido «Make Europe Great Again» (Tornar a Europa Grande Novamente), o outro slogan proeminente desta cúpula foi a Reconquista, um termo ideologicamente carregado que faz referência aos esforços militares e culturais europeus para expulsar a influência islâmica, culminando no final do século XV. Considerada pelos seus apoiantes como uma vitória para o cristianismo, a Reconquista envolveu a conversão forçada de muçulmanos e a expulsão de judeus, coincidindo com o início da colonização espanhola no Caríbe e nas Américas.
E embora seja fácil perceber por que o slogan é usado por uma extrema-direita europeia obcecada em recuperar o seu passado colonialista e expulsar os «infiéis» da Europa, a presença de direitistas da Venezuela e de Israel parece menos natural. Mas a líder da oposição venezuelana Maria Corina Machado e o partido israelita Likud participaram no evento e apresentam-se como combatentes da linha de frente da mesma batalha civilizacional ocidental.” (6)
Mas o comitê do Prêmio Nobel da Paz tem razão quando afirma que a “democracia está em retrocesso ao nível internacional”, já que tanto o próprio comitê como o Parlamento Europeu se unem para defender a extrema direita internacional e difamar o governo democraticamente eleito da Venezuela. E isso quando um genocídio está em curso na Palestina, arrogantemente ignorado pelos paladinos europeus da democracia.
Quando Alfred Nobel instituiu o prêmio que leva o seu nome, ele decidiu que o Prêmio Nobel da Paz seria concedido por um comitê sediado na Noruega, não na Suécia, como todos os outros. Ele não poderia ter então previsto alguns estranhos fatos envolvendo a pacífica e desenvolvida Noruega:
“O Fundo Petrolífero Norueguês, oficialmente conhecido como Fundo de Pensões do Governo Global (GPFG), é o maior fundo soberano do mundo, com ativos no valor de mais de 2 bilhões de dólares.
Construído com base nos lucros extraordinários da indústria petrolífera e de gás da Noruega, com décadas de existência, a sua dimensão supera a de fundos equivalentes, como o Fundo de Investimento Público da Arábia Saudita, a Autoridade de Investimento de Abu Dhabi dos Emirados Árabes Unidos ou a Autoridade de Investimento do Kuwait, cada um dos quais detém ativos no valor de cerca de 1 bilião de dólares.
Os seus investimentos atuais incluem mais de 20 mil milhões de libras (26 mil milhões de dólares) em ações de 49 das 100 maiores empresas de armamento do mundo, a maioria das quais fornece, direta ou indiretamente, Israel.” (8)
Será que isso influenciou a decisão do comitê norueguês do Nobel?
Por coincidência a Venezuela contém uma das maiores reservas de petróleo do mundo e as empresas petrolíferas européias e norte-americanas estão ansiosas para se apossar destes recursos que o governo Venezuelano – blasfêmia! – utiliza em prol do povo da Venezuela! Assim, o Parlamento Europeu e o comitê do Nobel se unem com Israel na defesa da “democracia”.
Não podemos mais ter ilusões. O que o comitê do Nobel e a Parlamento Europeu pretendem para o Sul Global é o retorno à condição de colônia – é essa a “democracia” que eles defendem, a “democracia” da supremacia branca e de sua brutalidade.
Enquanto isso, forças norte-americanas se preparam para invadir a Venezuela, uma invasão militar agora sancionada pelo Prêmio Nobel. As “democracias” européias e seus aliados falharam em se apossar das riquezas da Ucrânia, falharam igualmente na tentativa de se apossar dos recursos naturais do Irã. Resta a Venezuela.
Por todo o Sul Global e na Palestina, no entanto, se levanta a resistência contra a supremacia branca e a ordem neocolonial. E não é o patético e desesperado Parlamento Europeu e nem o comitê do Prêmio Nobel com suas ridículas decisões que vão mudar isso. A História caminha em outra direção e o futuro não está na Europa.
(2) https://huelladelsur.ar/2024/07/30/venezuela-volvieron-las-guarimbas/
(3) https://misionverdad.com/memoria/cronologia-especial-de-la-violencia-politica-en-venezuela-2002-2024
(4) https://morningstaronline.co.uk/article/what-lies-behind-trumps-attacks-against-venezuela
(5) https://www.theguardian.com/world/2014/feb/23/violent-protest-no-help-venezuela
(8) https://www.middleeasteye.net/news/how-norway-home-nobel-peace-prize-profits-war-gaza
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

