Exu vai passar outra vez na avenida
Das 12 escolas de elite do Rio de Janeiro, sete trazem enredos inspirados em personagens e/ou ancestrais do candomblé, da umbanda ou da jurema
Iracema Dantas
(Jornalista e egbome do Ilê Axé Tamorá)
Stela Guedes Caputo
(Jornalista e Ìyàwó do Ilê Axé Omi Larê Iyá Sagbá)
A poucos dias da maior festa popular do país, Paulo Barros, carnavalesco da Unidos de Vila Isabel, reclamou de um excesso de enredos inspirados em religiões de matriz africana, afirmando que tudo já foi visto, e que quase ninguém vai entender nada. Joana Prado, a “ex-feiticeira” dos anos 2000, e seu marido Vitor Belfort, ex-campeão de UFC, ambos convertidos ao neopentecostalismo, viralizaram em um vídeo chamando o carnaval de “festa realizada para a invocação de demônios”.
Das 12 escolas de elite do Rio de Janeiro, sete trazem enredos inspirados em personagens e/ou ancestrais do candomblé, da umbanda ou da jurema. Não há repetição entre os assuntos, frutos de pesquisas feitas por historiadores(as) que conhecem bem o universo do samba como grande legado cultural do povo africano que veio escravizado para o Brasil. Resgatar a história de um povo é só um dos papeis civilizadores que orgulhosamente as escolas de samba têm feito ao longo do tempo, em especial nos últimos anos.
Vale lembrar que 36 anos separam dois dos mais populares enredos desenvolvidos pelo GRES Imperatriz Leopoldinense. Em 1989, o carnavalesco Max Lopes contou a história do fim da escravidão sob a ótica do que também aprendemos na escola. No enredo, que foi campeão naquele ano, a princesa Isabel era heroína e mereceu reconhecimento por ter assinado a lei Áurea. O samba é até hoje lembrado e cantado país afora. Para 2025, Leandro Vieira, atual carnavalesco da mesma escola, traz “O itan de Oxalá”, contando a saga do orixá da paz que ao visitar Xangô enfrenta muitos perigos. A narrativa caiu no gosto popular e seu samba enredo já ultrapassou 1 milhão de ouvintes no Spotify. Diferentemente do que opinou Barros, parece que muitas pessoas entenderam e gostaram do que ouviram.
As outras escolas com enredos afro são: Unidos Padre Miguel, com a história do Terreiro Casa Branca do Engenho Velho; Mangueira, com a Pequena África do Rio de Janeiro; Unidos da Tijuca, com o orixá Logun-Edé; Salgueiro, com a espiritualidade e magias afro-brasileiras; Paraíso do Tuiuti, com Xica Manicongo; e Unidos do Viradouro, com Malunguinho, entidade afro-indígena. Portela e Beija Flor homenageiam duas grandes personalidades negras: Milton Nascimento e Laíla, respectivamente.
Quantos aos demônios citados pelo casal residente em Miami, eles não existem nas religiões de matriz africanas. Nesse caso, não se trata apenas do desconhecimento. É racismo religioso que incentiva fundamentalistas a depredarem terreiros e/ou agredirem praticantes do candomblé, umbanda e outras religiões afro-brasileiras. Em 2024, segundo o canal de denúncias do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), o Brasil registrou 3.853 violações motivadas por intolerância religiosa, um aumento de mais de 80% em relação a 2023.
O carnaval é uma festa linda com importantes aspectos econômicos e culturais. Há quem goste e há quem não goste. Mas o ódio transborda pela capacidade do carnaval de inverter narrativas tradicionais e conservadoras. De enfrentar, poderosamente, narrativas racistas, inclusive as ensinadas nas escolas. Não se ouvia reclamações quando os sambas só enalteciam Pedro Álvares Cabral, a família real, duques e marechais. Nem quando enredos nos ensinam sobre mitologias gregas.
Exu vai passar outra vez na avenida e em todo tipo de tela. Junto com ele, diversos outros orixás, ancestrais, encantados, heróis e heroínas apagados e apagadas dos livros de história. Porque, sobretudo no carnaval, a escola é a rua e a rua é a escola. E esse é o maior poder do carnaval.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

