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João Ricardo Dornelles

(Professor de Direito da PUC-Rio; Coordenador do Núcleo de Direitos Humanos da PUC-Rio; membro do Instituto Joaquín Herrera Flores/América Latina; membro do Coletivo Fernando Santa Cruz)

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Foi bonita a festa, pá: 50 anos depois, ainda existem cravos vermelhos no jardim?

As conquistas de abril nunca estiveram tão ameaçadas quanto neste cinquentenário da Revolução dos Cravos

(Foto: Reuters)
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O ano de 2024 é marcante para a memória da resistência democrática e antifascista no Brasil e em Portugal. De um lado do Atlântico marca os 60 anos do golpe militar de 1964 e, cruzando tanto mar, os 50 anos do 25 de abril, que deu fim a quase cinquenta anos da ditadura salazarista. São momentos destacados para as lutas democráticas, não apenas dos nossos povos, mas com uma repercussão que ultrapassou as fronteiras destas duas nações. Também são momentos históricos do passado que continuam tendo impacto na conjuntura atual, onde vivenciamos as ameaças dos neofascismos em tempos distópicos de capitalismo neoliberal.

No caso da celebração dos 50 anos da Revolução dos Cravos é importante lembrar que pela primeira vez em cinco décadas existe uma força política organizada, consistente, nostálgica dos tempos do fascismo salazarista e que se coloca à margem da tradição do pacto democrático de abril. O partido neofascista Chega é a terceira força política da Assembleia da República portuguesa e passou a ter não apenas uma grande representação institucional, como também grande penetração social em todos os rincões do país, inclusive ganhando parte das bases sociais das esquerdas, em especial do PCP (Partido Comunista Português) e do BE (Bloco de Esquerda). É importante notar também a grande presença de imigrantes brasileiros bolsonaristas apoiando ou até mesmo filiados no partido fascista português.

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As conquistas de abril nunca estiveram tão ameaçadas quanto neste cinquentenário da Revolução dos Cravos.

Além do avanço do neofascismo em todas as partes do mundo, incluindo Portugal, estamos presenciando um processo de reabilitação das experiências fascistas do passado. A nostalgia fascista tem sido um dos motores impulsionadores dos revisionismos históricos que buscam depurar o fascismo, no caso português, o fascismo salazarista. Como disse o historiador italiano Enzo Traverso (Traverso, Enzo. As novas faces do fascismo. Populismo e a extrema-direita, Editora Âyiné, 2021), o revisionismo que busca ilibar o fascismo é uma tentativa indecente de reabilitar regimes criminosos. O mais grave é que os processos revisionistas em relação aos fascismos passados não se restringem às experiências do século XX, mas cumprem a sua tarefa de minimizar a barbárie contida nos novos fascismos do presente, como se estes fossem apenas (apenas?) expressões extremadas das forças políticas conservadoras, mas que, em última instância, estariam alinhadas no pacto democrático.

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No momento do aniversário dos 50 anos da Revolução dos Cravos não apenas temos uma força política fascista no contraponto da celebração, como a existência de um alinhamento neofascista internacional, uma verdadeira internacional reacionária fascista, atuando ativamente nos quatro cantos do mundo.

Há poucos dias atrás, em segredo, sem consulta à Assembleia da República ou publicidade, o Presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, conferiu postumamente a Ordem da Liberdade ao Marechal António de Spínola, a mais alta condecoração da Liberdade. Para muitos portugueses que conhecem bem a história de Spínola equivale a dar o Prêmio Nobel da Paz a Netanyahu, Pinochet ou Hitler. Por que motivo o sorridente Presidente de Portugal concedeu tal honraria ao finado marechal há poucos dias das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril? Seria parte do revisionismo à portuguesa? Seria parte da insistente busca das forças conservadoras e reacionárias portuguesas de igualar ou substituir no coração do povo português o 25 de abril de 1974 pelo 25 de novembro de 1975? A título de informação, o 25 de novembro de 1975 representou o fim do período de dezenove meses da revolução portuguesa (iniciado no 25 de abril de 1974), o período do Processo Revolucionário em Curso (PREC).

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Sobre Spínola é importante desmistificar quem foi o personagem. Alguns relatos sobre a revolução de abril o colocam no pedestal dos revolucionários. Na verdade, os fatos mostram que num golpe de sorte (e pitadas de oportunismo) se tornou membro da Junta de Salvação Nacional, formada após os Capitães de Abril abrirem mão do poder conquistado nas ruas com a expectativa de que os altos mandos militares que compunham a junta aplicariam o programa revolucionário do MFA (Movimento das Forças Armadas).

Para se ter uma ideia de quem estamos falando, Spínola, como membro da Junta de Salvação Nacional, foi quem garantiu a retirada da referência ao direito à autodeterminação dos povos africanos do programa do MFA e afirmou explicitamente a sua intenção de defender a natureza pluricontinental da pátria.

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Acabou por ser indicado pela alta cúpula militar, que compunha a Junta, para ocupar a Presidência da República e formar o primeiro governo provisório. À primeira vista muitos, inclusive portugueses, poderiam se iludir sobre as convicções democráticas e progressistas do marechal.

É importante conhecer um pouco da história do marechal António de Spínola. Para desilusão de muitos é importante revelar as suas inclinações nazistas, participando como “observador” militar do exército português na Divisão Azul franquista que se juntou às tropas da Wehrmacht e das SS nazistas na frente oriental combatendo o Exército Vermelho da URSS durante o cerco de Leningrado. Em 1961, com o início da guerra anticolonial em Angola, ofereceu-se para Salazar como voluntário para estar à frente das tropas coloniais portuguesas. Alguns anos depois assumiu o governo militar da Guiné-Bissau, entre 1968 e 1973. Em janeiro de 1974, três meses antes do 25 de abril, se tornou o Vice-Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas, o segundo cargo mais importante na hierarquia militar da ditadura. Spínola sempre foi um convicto reacionário nazifascista, anticomunista, empenhando no colonialismo português.

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Ao ser escolhido como primeiro presidente pela Junta de Salvação Nacional, muito rapidamente Spínola entrou em choque com a revolução portuguesa, sendo contrário, por exemplo, às negociações para o fim do domínio colonial sobre as províncias ultramarinas da África.

A verdade é que Spínola, ao se dar conta do rastilho de rebelião que se iniciava entre os oficiais de patente média e a insatisfação existente entre as tropas portuguesas na África, especialmente entre os capitães, manteve-se à margem de todo o processo que se desenvolveu nas vésperas e no próprio dia 25 de abril, só aparecendo, como bom oportunista, no momento em que foi necessária a negociação de rendição de Marcelo Caetano, dando-lhe garantias para que este e sua camarilha pudessem escapar à salvo para a segurança da ditadura militar no Brasil.

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Em julho de 1974, três meses após o 25 de abril, Spínola tentou um golpe, buscando adiar por mais dois anos a convocação da Assembleia Constituinte e manter-se como Presidente da República, concentrando os poderes através do controle sobre as Forças Armadas, o que foi rejeitado pelo Conselho de Estado. No segundo semestre de 1974, na Presidência, apela para a mobilização da “maioria silenciosa” do povo português através de uma grande manifestação marcada para o dia 28 de setembro, como provocação que serviria de pretexto para a decretação do Estado de sítio, possibilitando que ele assumisse plenos poderes. A grande mobilização popular nas vésperas barrou os planos golpistas de Spínola.

O marechal saiu da presidência, mas continuou conspirando. Tentou outro golpe militar no dia 11 de março de 1975, fugindo para a Espanha franquista e depois para o Brasil do ditador Geisel com o fracasso da intentona fascista. Do exterior fundou a organização terrorista de extrema-direita Movimento Democrático de Libertação de Portugal (MDLP), financiado pela grande burguesia portuguesa. O grupo terrorista fundado pelo marechal cometeu inúmeros atentados à bomba e incêndios contra organizações populares, sindicatos, sedes do PCP, chegando a assassinar ativistas de esquerda.

Um detalhe que não pode passar despercebido, após 50 anos dos acontecimentos revolucionários de abril de 1974 e dos conflitos que se seguiram. Da organização terrorista de extrema-direita fizeram parte José Miguel Júdice, que foi do PSD e é comentarista político da TV portuguesa, como também Diogo Pacheco de Amorim, atualmente membro do Chega e atual vice-presidente da Assembleia da República.

A regeneração de personagens golpistas e terroristas, como os citados acima, além do próprio António de Spínola, Adriano Moreira (que acabou por ser meu professor na PUC-Rio em plena ditadura militar) e outros, só foi possível pela existência do 25 de novembro de 1975. O marechal regressou a Portugal, tendo sido reintegrado às Forças Armadas e indicado para o posto de Marechal pelo Conselho da Revolução.

Ao contrário, muitos daqueles que participaram do levante da madrugada do 25 de abril, os Capitães de Abril, foram esquecidos ou desprezados. O Primeiro-Ministro Cavaco Silva recusou pensão ao Capitão Salgueiro Maia, um dos principais líderes e heróis da Revolução dos Cravos, tendo concedido a mesma pensão a antigos agentes da PIDE. Para os leitores do Brasil, a PIDE era a Polícia Internacional e de Defesa do Estado, órgão de repressão, vigilância e controle da ditadura salazarista, podemos dizer que era uma espécie de Gestapo portuguesa.

Em 1987, Spínola recebeu das mãos do então Presidente Mário Soares a condecoração da Grã-Cruz da Ordem Militar da Torre e Espada pelos seus feitos de heroísmo militar e cívico e por ser um símbolo vivo da Revolução de Abril e por ter sido o primeiro Presidente da República após a ditadura.

Assim, condecorar Spínola na celebração do cinquentenário da Revolução dos Cravos talvez faça parte do revisionismo ou, quem sabe, a antecipação das “comemorações” da contrarrevolução de 25 de novembro de 1975.

Assistimos, neste processo revisionista, o esforço dos segmentos mais conservadores da sociedade portuguesa para criar uma equivalência entre o 25 de abril de 1974 e o 25 de novembro de 1975 de tal forma que acabe por prevalecer o espírito de novembro e não os cravos vermelhos da primavera.

Apenas um breve relato da história. O 25 de abril de 1974, começado como um golpe de Estado e transformado no mesmo dia em Revolução democrática popular com o povo ocupando as ruas, deu fim à ditadura fascista salazarista e início ao processo revolucionário que movimentaria a sociedade portuguesa para profundas transformações sociais, políticas e econômicas e ampliaria estes espaços de liberdade para os processos de descolonização das antigas províncias ultramarinas.

O período revolucionário da primavera dos cravos vermelhos, que se abriu a partir do dia 25 de abril de 1974, durou até o 25 de novembro de 1975. Este período foi chamado de PREC (Processo Revolucionário em Curso ou Período Revolucionário em Curso).

Em tempos atuais, quando os neofascismos se espalham pelo mundo, com as democracias, mesmo as mais liberais e burguesas, ameaçadas pelo belicismo imperialista do necrocapitalismo de barbárie, em cenários permanentes de massacres, de genocídios banalizados, de graves tensões internacionais, não se trata apenas de celebrar o que significou, há 50 anos atrás, aquele dia 25 de abril. Trata-se de realizarmos o exercício da memória sobre nossas derrotas e vitórias passadas como impulso para mantermos o espírito combativo e anticapitalista e criarmos as condições de, mais uma vez, derrotarmos o fascismo.

Pode-se fazer de tudo na política, mas é impossível mudar as estações do ano. No hemisfério Norte, abril sempre anunciará o início da primavera, época das flores, da renovação da vida, o início dos tempos amenos e de luminosidade, enquanto novembro sempre será a parte final do outono, anunciando tempos cinzentos de inverno, frio e sem luz.

Por fim, aproveito para pegar uma carona aqui (ou como dizem em Portugal, uma boleia) e (re)publicar um pequeno artigo que escrevi há três anos atrás, no dia 23 de abril de 2021, quando vivíamos a pandemia de Covid-19 e o governo protofascista de Bolsonaro. Naquele momento publiquei no 247 o artigo a seguir, onde relembrava a revolução democrática portuguesa e como ela foi importante para a minha geração, que lutava na década de 1970 contra a ditadura militar no Brasil, pois nos fazia sentir um cheirinho de alecrim.

“Os ventos de abril: o povo é quem mais ordena”

No dia 24 de abril de 1974, completei 19 anos de idade. No Brasil, vivíamos em plena ditadura militar; eu estava entrando na universidade, fazia pouco tempo que iniciava a minha militância política no movimento estudantil e entraria na Ação Popular Marxista-Leninista. Seis meses antes, fomos impactados pelo golpe militar de Pinochet, derrubando violentamente o governo democrático da Unidade Popular de Salvador Allende. O Cone Sul das Américas encontrava-se submerso nas trevas do obscurantismo.

Lutávamos contra as ditaduras no Brasil e em outras partes da América Latina.

Era o começo do outono no Rio de Janeiro, primavera em Lisboa. Eu mal podia imaginar a bela surpresa que a manhã do dia seguinte, 25 de abril, me reservaria.

No meio da noite escura, enquanto sonhava com liberdade, justiça e igualdade, senti no ar um aroma de alecrim. A manhã do 25 de abril trazia notícias alvissareiras do outro lado do Atlântico. As flores brotavam exalando o cheiro da liberdade.

Tudo começou no início da madrugada daquele 25 de abril de 1974. Eram 00:20 quando a Rádio Renascença de Lisboa começou a tocar uma canção proibida pela ditadura salazarista, “Grândola, Vila Morena”, de José Afonso. Era a senha do Movimento das Forças Armadas (MFA) para o levante das tropas contra o regime ditatorial que já durava 48 anos.

O comando do MFA era, na sua maioria, de capitães que lutaram na guerra colonial, como Salgueiro Maia, Otelo Saraiva de Carvalho, Vasco Lourenço, dentre outros. Eram os Capitães de Abril.

O levantamento militar foi imediatamente seguido por um levantamento popular pelas ruas das cidades portuguesas, dando início a uma revolução democrática que respondia ao rechaço da guerra colonial, que já durava onze anos e trazia imenso sofrimento para o povo português e para os povos colonizados. Era a aliança revolucionária Povo-MFA contando com as trabalhadoras e trabalhadores, com amplos setores populares e os militares progressistas.

A revolução de abril passou a ser conhecida como revolução dos cravos por um episódio fortuito protagonizado por uma mulher, Celeste Caeiro, que era empregada no restaurante Franjinhas, perto do Marquês de Pombal. Naquele dia era aniversário do restaurante e Celeste, ao chegar, encontrou o mesmo com as portas fechadas. Os empregados foram dispensados por causa da revolução em marcha e o patrão disse que poderiam levar os ramos de cravos vermelhos que seriam ofertados aos clientes pelo primeiro aniversário do restaurante. A moça levava as flores para sua casa quando, passando pelo Rossio, onde os tanques aguardavam ordens do capitão Salgueiro Maia, um soldado pediu um cigarro. Como Celeste não era fumante, ofereceu um cravo vermelho que foi colocado no cano de sua arma. A moça distribuiu as outras flores entre os demais soldados que também adornaram os seus fuzis. A revolução de abril e a luta pela liberdade ganhava um símbolo, o cravo vermelho. O ato de Celeste fez com que diversos floristas também distribuíssem cravos vermelhos para que ninguém ficasse sem flores em suas armas. O acaso criou o emblema que representa o sonho de liberdade.

O fascismo português estava a ser derrotado e iniciava-se um momento que instaurou liberdades democráticas, abriu as prisões libertando os presos políticos, pôs fim à guerra colonial e contribuiu para a independência dos povos submetidos ao colonialismo português. No ano de 1976, a Assembleia Constituinte promulgou uma constituição com amplos direitos democráticos, direitos civis e políticos, direitos econômicos, sociais e culturais, a Constituição da República.

A luta antifascista, a vitória do 25 de abril, fez soprar por toda a Europa, por todo o mundo, o vento da liberdade, atingindo as outras ditaduras europeias, o franquismo na Espanha e o “Regime dos Coronéis”, na Grécia.

No triste Brasil dos militares, aqueles ventos também chegaram com as flores da primavera portuguesa exalando o cheiro da liberdade e da democracia, embalados pela “Grândola” de Zeca Afonso e encontrando, depois de atravessar “Tanto Mar”, o pedido de Chico por um cheirinho de Alecrim.

O 25 de abril português encontra-se com o 25 aprile italiano. A luta antifascista dos partigiani, embalada por “Bella Ciao”, funde-se com o 25 de abril dos cravos vermelhos. A primavera dos povos.

A Revolução dos Cravos, a primavera europeia, os valores de abril, a poesia de Zeca Afonso, expressam uma das mais belas páginas da história da luta dos povos.

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