Francisco de Assis e Francisco das Flores — 799 anos, mesma essência
São Francisco e Papa Francisco, com vidas despojadas, mostram que humildade, pobreza e amor pela criação podem transformar o mundo
Em um mundo ferido por desigualdades e crises, duas figuras, separadas por 799 anos, brilham como faróis de esperança, humildade e amor pela criação: São Francisco de Assis, o santo italiano do século XIII, e Papa Francisco, o pontífice argentino do século XXI, nascido no bairro de Flores, em Buenos Aires. Suas vidas, entrelaçadas por ideais de simplicidade e fraternidade, conectam a medieval Assis ao vibrante contexto latino-americano.
Uma Itália Medieval e uma Argentina em Crise - São Francisco, nascido Giovanni di Pietro di Bernardone em 1181, viveu em uma Itália fragmentada por rivalidades entre cidades-estado e pela opulência da Igreja em contraste com a miséria popular. Filho de um rico comerciante, renunciou à fortuna após uma experiência espiritual, fundando a Ordem Franciscana, que pregava pobreza e serviço aos excluídos. Em 1219, durante a Quinta Cruzada, que buscava reconquistar Jerusalém dos muçulmanos, Francisco cruzou linhas inimigas em Damieta, Egito, para dialogar com o sultão Al-Kamil, buscando paz em vez de guerra.
Papa Francisco, nascido Jorge Mario Bergoglio em 1936, cresceu em Flores, Buenos Aires, em uma Argentina assolada por desigualdades e instabilidade política. Durante a ditadura militar (1976-1983), ele, como jesuíta, protegeu perseguidos, arriscando a vida em defesa dos direitos humanos. Seu trabalho pastoral nas favelas, celebrando missas e apoiando os pobres, moldou sua visão de uma Igreja para os marginalizados. Eleito papa em 13 de março de 2013, anunciou em 16 de março de 2013 que escolheu o nome Francisco, explicando: “Para mim, ele é o homem da pobreza, da paz, que ama e protege a criação. Quis um nome que recordasse isso”. Sua leveza e bom humor brilharam quando, questionado por um repórter brasileiro sobre a rivalidade entre argentinos e brasileiros, especialmente no futebol, e se sua eleição ao trono de São Pedro a intensificaria, respondeu com um largo sorriso: “Essa rivalidade já foi negociada e chegamos a um bom acordo: o papai é argentino, mas Deus é brasileiro!”
Defesa da Criação - As palavras de ambos são hinos à fraternidade. São Francisco, em seu Cântico das Criaturas, louva: “Louvado sejas, meu Senhor, com todas as tuas criaturas, especialmente o senhor irmão Sol”. Na Oração pela Paz, ele suplica: “Senhor, fazei-me instrumento de vossa paz, onde houver ódio, que eu leve o amor”. Sua Saudação às Virtudes exalta: “Salve, rainha Sabedoria, salve, santa Pobreza, que sois luz para os humildes”. Esses textos revelam a natureza e a humildade como caminhos para Deus.
Papa Francisco, inspirado pelo santo, proclamou: “O sol não se ilumina a si mesmo, a água não existe para saciar a si mesma, a flor não se perfuma a si mesma. Tudo o que é bom existe para os outros”. Na Laudato Si’ (2015), ele escreve: “Tudo está interligado, e isso nos convida a uma espiritualidade da solidariedade global”. Suas palavras clamam por uma ecologia integral, unindo cuidado ambiental e justiça social, um feito único destacado por Frei Betto: “Foi o único Papa que fez uma encíclica de proteção da natureza, um Laudato Si’, e, ao mesmo tempo, um grande defensor dos migrantes.”
Vidas Simples, Impacto Global - Ambos rejeitam a vaidade. São Francisco abandonou riquezas para viver entre leprosos, vestindo um hábito de lã. Papa Francisco recusou o anel papal de ouro, mantendo o anel de latão de seus tempos de bispo na Argentina, e optou por residir na modesta Casa Santa Marta, renunciando aos luxuosos aposentos papais na Praça de São Pedro. Sua humildade se manifesta em gestos como lavar os pés de prisioneiros, enquanto São Francisco reconstruía igrejas em ruínas, como São Damião, após uma experiência mística diante do Crucifixo de São Damião. A voz que disse “Vai, Francisco, restaura minha Igreja” é interpretada pelo teólogo Leonardo Boff, em Ecologia, mundialização, espiritualidade: a emergência de um novo paradigma (1993), como um chamado a identificar-se com os “crucificados da história” – os pobres e excluídos. Para Boff, Jesus na cruz está acompanhado pelo “exército de crucificados” do mundo, e Francisco, definido como “arquétipo ocidental da atitude ecológica”, viveu essa solidariedade com os sofredores e a criação.
O amor pela natureza os une: São Francisco pregava aos pássaros, e Papa Francisco defendia a Amazônia. Seus testamentos refletem essa ausência de vaidade. O Testamento de São Francisco (1226) exorta à pobreza e obediência, sem posses. Papa Francisco, em seu testamento redigido em 29 de junho de 2022 e divulgado pelo Vaticano em 23 de abril de 2025, dois dias após sua morte, expressou o desejo de um sepultamento simples na Basílica de Santa Maria Maggiore, em Roma, rompendo com a tradição de sepultamentos na Basílica de São Pedro. Ele escreveu: “Confiei sempre minha vida e meu ministério sacerdotal e episcopal à Mãe de Nosso Senhor, Maria Santíssima. Por isso, peço que meus restos mortais repousem, à espera do dia da ressurreição, na Basílica Papal de Santa Maria Maior.” Especificou que seu túmulo, localizado no nicho da nave lateral entre a Capela Paulina (Capela da Salus Populi Romani) e a Capela Sforza, deveria ser “no chão, simples, sem decoração especial, e com a única inscrição: Franciscus”. As despesas, segundo o testamento, seriam cobertas por um benfeitor anônimo, com instruções confiadas a Mons. Rolandas Makrickas. Francisco também ofereceu seu sofrimento final “pela paz no mundo e pela fraternidade entre os povos”.
A lenda do lobo de Gubbio simboliza São Francisco. Ele chamou a fera de “irmão lobo” e mediou a paz com os moradores, mostrando harmonia universal. Outra história, do livro ‘O Pobre de Deus’, de Nikos Kazantzakis, é narrada por Frei Leão, que diz no prólogo: “Tu te lembras, Pai Francisco? Este indigno que hoje pega a pena a fim de narrar a tua crônica era humilde e feio mendigo no dia de nosso primeiro encontro. Humilde e feio, cabeludo da nuca às sobrancelhas, tinha a fisionomia coberta de pelos e olhar amedrontado. Em vez de falar, balia feito carneiro, e tu, para ridicularizar minha feiúra e humildade, me apelidaste de Irmão Leão. Porém, quando te contei a minha vida, começaste a chorar e, acolhendo-me em teus braços, disseste: ‘Perdoa-me a zombaria. Agora vejo que és realmente um leão, pois só um leão ousaria pretender o que pretendes. (…). De tanto perguntar, minha garganta secou. De tanto caminhar, meus pés incharam. Cansei de bater às portas, mendigando a princípio pão, depois uma palavra amiga e finalmente a salvação. Todo mundo fazia troça e me tratava como débil mental. Era empurrado, escorraçado, estava farto. Aprendi a blasfemar. Afinal de contas, sou humano, sentia-me exausto de andar, passar fome e frio, suplicar ao céu sem nunca obter resposta. Uma noite, no auge do desespero, Deus tomou minha mão. E também a tua, Pai Francisco. Assim nos encontramos’.” Esse encontro revela a capacidade de Francisco de transformar corações.
Uma história semelhante, que ressoa com a visão espiritual de São Francisco, foi publicada na revista Star of the West. Em 1912, durante uma visita de ‘Abdu’l-Bahá a Nova York, ele passeou pelo Central Park. Após horas no Museu de História Natural, descansou sob as árvores. Um vigia solícito perguntou: “Você gostaria de voltar depois de descansar? Lá tem fósseis e pássaros.” ‘Abdu’l-Bahá sorriu: “Não, estou cansado de ver as coisas deste mundo. Quero subir e viajar e ver os mundos espirituais. O que você acha disso?” O vigia, perplexo, coçou a cabeça. ‘Abdu’l-Bahá prosseguiu: “O que você preferiria possuir? O mundo material ou o mundo espiritual?” O vigia respondeu: “Bem, eu acho que o material.” ‘Abdu’l-Bahá explicou: “Você não irá perdê-lo quando alcançar o espiritual. Quando você sobe em uma casa, você não sai da casa. O andar de baixo continua embaixo de você.” De repente, o velho pareceu compreender, como se uma luz se acendesse. Essa história, com sua simplicidade e profundidade, ecoa a visão de São Francisco, que via o mundo material como um reflexo do espiritual, e de Papa Francisco, que buscava elevar os corações para além das posses terrenas.
Em maio de 1988, visitei o Vaticano , atraído pela Capela Sistina , pelo Museu do Vaticano e pela imponente Basílica de São Pedro . As obras-primas do Renascimento – traços de Michelangelo , Rafael e Giotto – revelaram séculos de história , onde a opulência da arte eclipsava as narrativas dos papas. Dias depois, em Assis , encontrei um contraste sereno. Caminhei pelas ruelas medievais até o túmulo de São Francisco , contemplei a humilde Porciúncula e a Basílica erguida em sua homenagem, onde a simplicidade do santo desafiava a grandiosidade do lugar. Em julho de 2005, retornei a Roma com minha família, revisitando esses caminhos. Naquele tempo, não imaginava que, décadas depois, um argentino de Flores chamado Francisco ecoaria o mesmo despojamento e fraternidade. Hoje, refletindo sobre essas jornadas, vejo como a humildade de São Francisco prenunciava o legado de Papa Francisco , unindo Assis e o Vaticano em um chamado eterno à solidariedade .
Papa Francisco comoveu o mundo em 2013, ao visitar Lampedusa, a pequena ilha italiana próxima à costa africana, onde milhares de migrantes arriscam a vida cruzando o Mediterrâneo em barcos precários. Em 8 de julho de 2013, em sua primeira viagem oficial fora de Roma, ele celebrou uma missa penitencial com um cálice e cruz feitos de madeira de embarcações naufragadas, jogando uma coroa de flores no mar em memória dos mortos. Denunciando a “globalização da indiferença”, ele afirmou: “Tornamo-nos insensíveis ao sofrimento dos outros. Não nos afeta, não nos interessa, não é nosso problema”. Sua homilia, um apelo contra a apatia global, ecoou como um grito por solidariedade, destacando a responsabilidade coletiva pelas tragédias dos migrantes. Ele pediu perdão “por aqueles que, com suas decisões em nível global, criaram situações que levam a esses dramas” e elogiou os moradores de Lampedusa por sua generosidade, que, apesar de viverem em uma ilha de apenas 20 km², acolhiam os recém-chegados com humanidade.
Seu compromisso com os pobres, forjado nas favelas argentinas, também inspira profundamente. Como arcebispo de Buenos Aires, conhecido como o “bispo das favelas”, Bergoglio caminhava pelas ruas de bairros como Villa 21-24, descalço em meio a esgotos e lixo, consolando viciados, liderando procissões religiosas e transformando capelas improvisadas em centros comunitários com jardins. Sara Benitez Fernandez, moradora de Villa 21-24, recordou: “Ele era a pessoa mais humilde de Buenos Aires. Nunca veremos um papa como ele”. O padre Lorenzo “Padre Toto” de Vedia, que trabalhava com ele, afirmou que sua morte em 2025 foi dolorosa, mas sua missão permanece: “Não perdemos o espírito. Seguimos seu legado”. Esse trabalho pastoral, enraizado na proximidade com os excluídos, reflete sua visão de uma Igreja que não apenas prega, mas vive entre os mais necessitados.
A atenção de Papa Francisco à guerra em Gaza, iniciada em outubro de 2023, revelou sua incansável solidariedade com os sofredores. Desde 9 de outubro de 2023, ele manteve contato quase diário com o padre Gabriel Romanelli, pároco da Igreja da Sagrada Família, em Gaza, a única paróquia católica do enclave, que abrigava cerca de 500 pessoas, incluindo cristãos e muçulmanos, em condições de extrema precariedade. Essas ligações, feitas via WhatsApp às 20h, geralmente duravam poucos minutos, mas eram um “sinal de esperança” para a comunidade, segundo Romanelli. Francisco perguntava sobre as crianças, os idosos, a disponibilidade de comida e água, e se havia medicamentos. Em uma ligação em janeiro de 2024, o padre Youssef Asaad relatou com alegria que tinham comido asas de frango, um raro momento de alívio em meio à fome generalizada. Mesmo internado com pneumonia em fevereiro de 2025, Francisco persistiu, superando blecautes em Gaza para fazer videochamadas, projetadas em uma tela para os paroquianos, que o chamavam de “avô”. Ele condenou publicamente a violência, chamando a situação humanitária de “vergonhosa” em novembro de 2024 e exigindo uma investigação sobre possíveis genocídios. Quando duas mulheres cristãs foram mortas por atiradores israelenses no complexo da igreja em dezembro de 2023, ele denunciou o ato como “terrorismo”. Sua última ligação, dois dias antes de sua morte, foi marcada por palavras em árabe: “Shukran, shukran” (obrigado), agradecendo pelas orações. George Antone, líder do comitê de emergência da paróquia, disse: “Ele estava conosco até seu último suspiro. Agora, sentimos que somos órfãos”.
Pés firmes nos caminhos da Paz - São Francisco, um reformador espiritual, viveu como peregrino, desafiando o poder sem aspirações institucionais. Papa Francisco, como líder da Igreja, governou uma instituição global, enfrentando secularismo e crises éticas. Enquanto São Francisco falava aos pássaros, o Papa Francisco dialogava com nações, projetando-se como uma voz progressista no cenário global. Frei Betto, refletindo sobre seu impacto, sublinha: “Foi o chefe de Estado mais progressista de toda a Europa. Nem era europeu, era latino-americano, argentino”. Sua autoridade moral, desprovida de poderio militar ou político, residia em sua falta de ambição por poder. “O Papa era uma figura respeitadíssima porque era um homem sem nenhuma ambição de poder – aliás, ele só tinha um poder simbólico, não tinha Forças Armadas”, conclui Betto.
São Francisco morreu em 3 de outubro de 1226, aos 45 anos, em Assis, cercado por seus irmãos, cantando salmos e louvando a “irmã Morte”. Papa Francisco faleceu em 21 de abril de 2025, aos 88 anos, na Casa Santa Marta, Vaticano, em paz após um AVC e insuficiência cardíaca. Nos últimos três dias, uma mudança silenciosa ocorreu na percepção de milhares sobre a transição da vida para a morte. Relatos dos últimos meses de Francisco revelam que ele tratou sua partida com naturalidade, transformando os ritos fúnebres papais. Ele atualizou o Ordo Exsequiarum Romani Pontificis em 2024, abolindo os três caixões tradicionais por um de madeira com zinco. Escolheu ser enterrado na Basílica de Santa Maria Maggiore, no nicho entre a Capela Paulina e a Capela Sforza, no chão, rejeitando monumentos elevados. Com humor, perguntou ao cardeal encarregado dos “detalhes”: “Você já preparou o meu apartamento junto a Maria?” Como um imigrante turco ou refugiado palestino, ele enfrentou a morte como homem comum, mostrando que a morte é um passo natural para quem crê.
Após sua morte, muitos líderes mundiais expressar os seus sentimentos com a partida do papa. Dentre eles dois líderes se destacam por estarem envolvido numa guerra com milhares de vítimas civis. O russo Vladimir Putin, em telegrama ao cardeal Kevin Farrell em 21 de abril de 2025, destacou: “Papa Francisco promoveu o diálogo entre as Igrejas Ortodoxa Russa e Católica Romana. Guardarei a mais brilhante memória dele.” O ucraniano Volodymyr Zelenskyy, em postagem no X, declarou: “Ele dava esperança e orava pela paz na Ucrânia. Lamentamos com os cristãos. Memória eterna!” Essas mensagens refletem o impacto global de Francisco como ponte de diálogo.
O pontificado de Francisco, marcado por reformas estruturais e uma defesa apaixonada dos marginalizados e do meio ambiente, deixa um legado que ressoa além dos muros do Vaticano. Frei Betto destaca a incerteza sobre o futuro: “Francisco estava implementando reformas estruturais na Igreja Católica. Agora fica uma incógnita: quem será seu sucessor? Francisco se destacou, primeiro, por adotar o nome de Francisco de Assis. Nunca houve um Papa com esse nome”. São Francisco e Papa Francisco, com vidas despojadas, mostram que humildade, pobreza e amor pela criação podem transformar o mundo. Do lobo de Gubbio aos migrantes de Lampedusa, do Crucifixo de São Damião aos “crucificados da história”, aqui vemos legados unidos pelo amor a um Deus Vivo que, cada um à sua maneira, ecoa as palavras de Santa Teresa d’Ávila: “Quem a Deus tem, nada lhe falta: só Deus basta”, convidando-nos a repensar nosso lugar no mundo com empatia e cuidado.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

