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Washington Araújo

Mestre em Cinema, psicanalista, jornalista e conferencista, é autor de 19 livros publicados em diversos países. Professor de Comunicação, Sociologia, Geopolítica e Ética, tem mais de duas décadas de experiência na Secretaria-Geral da Mesa do Senado Federal. Especialista em IA, redes sociais e cultura global, atua na reflexão crítica sobre políticas públicas e direitos humanos. Produz o Podcast 1844 no Spotify e edita o site palavrafilmada.com.

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Frei Betto, 80 anos: o frade que nunca se rendeu à margem errada da História

Do cárcere à literatura, do altar às ruas, Frei Betto construiu um legado de inconformismo ético e esperança teimosa

Frei Betto (Foto: Divulgação)

Há homens que vivem como se suas vidas fossem editoriais diários: testemunhos que atravessam décadas, incômodos que não se deixam calar, gestos que marcam para além do instante. Frei Betto, dominicano, escritor, militante e pensador, chega aos 80 anos com a mesma coragem de quem sempre soube em que margem do rio da História queria estar: a margem dos pobres, dos esquecidos, dos vencidos de sempre. Sua vida não se resume à santidade de hábito branco ou à liturgia das palavras: é uma vida escrita em resistência, em inquietude e em fé viva.

Conheci Frei Betto em 1994, quando lancei meu livro O Despertar dos Anjos. Eu era um escritor calouro, cercado de dúvidas e inseguranças. E ele, já então, era um nome consagrado, conhecido em todo o Brasil como voz da teologia da libertação, escritor premiado, militante incansável. Mas o que mais me marcou não foi o prestígio: foi a generosidade com que me recebeu, a atenção dedicada a alguém que ainda engatinhava no mundo literário. Um gesto simples, mas inesquecível. Nunca esqueci aquela noite, e nela percebi uma das marcas mais fortes da personalidade de Frei Betto: a capacidade de reconhecer a humanidade no outro, sem hierarquias, sem arrogâncias.

Essa memória pessoal me devolve, inevitavelmente, a outro amigo, que conheci em 1991: o bispo catalão Pedro Casaldáliga. Entre ambos, vejo um parentesco espiritual profundo. Dois homens que fizeram da fé um lugar de entrega total, sem concessões. Dois que recusaram a neutralidade confortável e preferiram a exigência incômoda de um Deus vivo que exige justiça. Ambos pagaram preços altos por sua coerência. Ambos me ensinaram que a fé pode ser uma espada sem lâmina, feita apenas de palavra e exemplo.

A coragem de desagradar

Frei Betto não é o tipo que veio ao mundo para agradar a todos. Ao contrário, parece que transformou a arte de desagradar na sua melhor forma de agradar. Essa minha percepção é confusa apenas à primeira vista, mas bemsimples na essência: ao recusar as conveniências, conquistou o respeito. Ao não buscar consensos fáceis, deixou claro onde estava seu compromisso. Sua fidelidade nunca foi a governos, partidos ou instituições: foi sempre à justiça.

Nos anos de chumbo, foi preso duas vezes. No cárcere, descobriu que o silêncio podia ser preenchido com palavras e esperança. De lá saiu com uma convicção lapidar: “A fé que não se traduz em justiça é apenas alienação.” Décadas depois, já conselheiro de governos populares, ousava dizer: “Não sou governista, sou cristão. E o Evangelho não cabe em nenhum palácio.”

Essa postura o levou a polêmicas inevitáveis. Criticou o silêncio cúmplice de setores da Igreja diante da ditadura, denunciou a distância entre governos e povo e atacou a mercantilização da fé. “Quem se distancia do povo perde a alma da política,” disse certa vez, num recado que atravessou corredores do Planalto. Noutra ocasião, resumiu sua indignação diante da transformação da religião em espetáculo midiático: “A indústria da fé é um mercado de ilusões que transforma Deus em balcão de negócios.”

Nos anos 1970 e 1980, Frei Betto foi um dos pilares da teologia da libertação. Entre fábricas e favelas, comunidades eclesiais de base e movimentos sociais, ajudou a traduzir o Evangelho na linguagem da justiça social. Batismo de Sangue, sua obra mais emblemática, é testemunho pungente dessa vivência: ali estão o medo, a coragem e a fé de jovens dominicanos perseguidos pelo regime militar.

Ele próprio resumiria assim essa escolha: “A opção pelos pobres não é retórica, é geografia. É escolher de que lado do mundo você quer viver.”

Com mais de 60 livros publicados, Frei Betto construiu um legado literário que transita entre ensaios, memórias e literatura infantojuvenil. Mas o que sustenta essa obra é a mesma coerência que moldou sua vida: “Escrevo para libertar palavras da prisão do silêncio.” E, em outra sentença, deixou claro de onde brota sua resiliência: “A esperança é a teimosia dos que não desistem, mesmo quando o mundo desmorona.”  Ninguém marca seu tempo se não for lutando por justiça por amor ou por liberdade. 

Aos 80 anos, Frei Betto continua mais do que nunca imprescindível. Sua teimosia em ser coerente parece ser a chave. Vida longa, vida longa!

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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