Futebol e política: o Grêmio como microcosmo da disputa de poder no Rio Grande do Sul
Times de futebol como microsistemas políticos
Os clubes de futebol, especialmente aqueles com estruturas associativas tradicionais como o Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense, constituem microsistemas políticos que espelham, em escala reduzida, as dinâmicas de poder observadas nos Estados nacionais. Assim como os sistemas políticos formais, os times de futebol possuem mecanismos de participação democrática (eleições para presidência e conselhos), estruturas de financiamento complexas (receitas comerciais, contribuições associativas, transferências), burocracias institucionalizadas e, fundamentalmente, uma cultura política própria que regula as disputas pelo poder. As campanhas eleitorais nos grandes clubes mobilizam recursos financeiros significativos, articulam redes de apoio que atravessam classes sociais, reproduzem estratégias de marketing político e, não raro, envolvem denúncias de compra de votos, manipulação de cadastros e financiamento irregular – práticas que ecoam os vícios da política institucional. A diferença é apenas de escala, não de natureza: o que está em jogo é sempre o controle sobre recursos, prestígio simbólico e capacidade de moldar o futuro de uma coletividade.
Nesse sentido, a contribuição de Robert Putnam sobre cultura política torna-se particularmente relevante. Para Putnam, a cultura política não é meramente um conjunto de valores abstratos, mas uma variável estruturante que permeia o comportamento dos indivíduos em múltiplas instâncias de suas vidas. Um cidadão que vivencia práticas clientelistas no clube de futebol tende a naturalizar essas mesmas práticas na política institucional; inversamente, aquele socializado em ambientes marcados por participação efetiva e transparência nas decisões carrega esses valores para outras esferas. A cultura política, portanto, não conhece fronteiras entre o "público" e o "privado", entre o "político" e o "esportivo". Ela se manifesta de forma consistente nas diferentes arenas onde os indivíduos experimentam relações de poder, fazendo com que os clubes de futebol se tornem laboratórios privilegiados para observar, em tempo real, as transformações e permanências dos padrões de comportamento político de uma sociedade.
Velhas e Novas Elites: O Grêmio e o Rio Grande do Sul em Paralelo
A história política recente do Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense oferece um paralelo notável com o processo de transformação das elites gaúchas. O clube, tradicionalmente controlado por famílias ligadas à antiga burguesia porto-alegrense – profissionais liberais, comerciantes estabelecidos, pequenos e médios industriais que construíram suas fortunas ao longo do século XX –, viu-se confrontado com a emergência de novos atores econômicos. Estes "novos ricos", muitas vezes enriquecidos através de empreendimentos em setores como agronegócio de exportação, tecnologia, mercado financeiro e incorporação imobiliária, representam formas de acumulação capitalista distintas daquelas que consolidaram as velhas elites. Enquanto estas últimas baseavam seu poder em acúmulos graduais, redes de sociabilidade tradicionais e uma ética de gestão paternalista, os novos pretendentes ao poder trazem uma lógica mais agressiva, financeirizada e menos comprometida com os rituais de legitimação simbólica que historicamente sustentaram o prestígio no clube.
O caso de Marcelo Marques nas eleições do Grêmio ilustra perfeitamente essa tensão. Empresário bem-sucedido sem raízes na tradicional oligarquia gremista, Marques foi acusado de tentar "comprar" a eleição através de estratégias que escandalizaram os setores mais conservadores do clube: massificação de cadastros de novos sócios em período eleitoral, uso ostensivo de recursos financeiros para campanhas suntuosas, promessas de investimentos milionários sem a devida transparência sobre as fontes e, principalmente, uma postura que desafiava os códigos tácitos de deferência às "famílias históricas" do clube. A reação das velhas oligarquias mandatárias foi feroz e reveladora: mais do que contestar a legalidade dos procedimentos, buscou-se desqualificar moralmente o candidato por sua falta de "tradição", seu desconhecimento dos "verdadeiros valores" do clube e sua suposta incapacidade de compreender o que significa "ser Grêmio". O discurso da tradição, nesse contexto, funcionou como mecanismo de preservação de poder, tentando estabelecer barreiras simbólicas intransponíveis entre aqueles que "sempre estiveram lá" e os que apenas "chegaram agora com dinheiro".
Esse embate reproduz, em miniatura, o processo vivido pelo Rio Grande do Sul nas últimas décadas. O Estado, que no século XX figurava como polo industrial relevante no cenário nacional, experimentou um processo de desindustrialização acelerado e perda de centralidade econômica. As elites tradicionais gaúchas – vinculadas à indústria coureiro-calçadista, ao setor moveleiro, à agricultura familiar e à pecuária tradicional – viram seu poder econômico e político minguar diante da nova configuração do capitalismo brasileiro, cada vez mais concentrado no eixo Rio-São Paulo e orientado para setores financeirizados e de commodities. Paralelamente, surgiram novos grupos econômicos no Estado, frequentemente ligados ao agronegócio de larga escala, à exportação de commodities e a setores de serviços especializados. Esses novos ricos não compartilham necessariamente das mesmas redes de sociabilidade, instituições e códigos culturais das antigas elites, gerando tensões semelhantes àquelas observadas no Grêmio. A disputa não é apenas sobre recursos materiais, mas sobre quem tem legitimidade para representar o Estado, quem "entende" verdadeiramente o Rio Grande do Sul e quem merece ocupar posições de comando.
A decadência econômica do Estado, agravada por sucessivas administrações conservadoras incompetentes que aprofundaram a crise fiscal, a deterioração dos serviços públicos e o atraso em infraestrutura, criou um ambiente de frustração e ressentimento que alimenta tanto disputas políticas tradicionais quanto conflitos internos nos clubes de futebol. A sensação de que o Rio Grande do Sul "ficou para trás" na modernização brasileira encontra eco na percepção de que o Grêmio e o Internacional também ocupam posições periféricas no futebol nacional, constantemente preteridos em favor dos clubes do Sudeste nas decisões da CBF, na distribuição de recursos televisivos e no próprio calendário de competições. Essa dupla marginalização – econômica e simbólica – fornece o substrato sobre o qual germinam as reações políticas mais radicais.
A Radicalização da Extrema Direita no Futebol: Capitalismo, Fascismo e Ressentimento
A radicalização da extrema direita no futebol brasileiro, particularmente no Sul, manifesta-se através de três características fundamentais que merecem análise detida. Em primeiro lugar, observa-se um apreço quase sacrossanto pela acumulação capitalista, que se traduz na defesa veemente das Sociedades Anônimas do Futebol (SAFs) como "única solução" para os clubes sulistas. Esse discurso reproduz, sem mediações críticas, a ideologia neoliberal que romantiza a riqueza como fruto exclusivo de capacidade, mérito e trabalho duro, ocultando os processos de exploração, herança, privilégio estrutural e, frequentemente, práticas predatórias que sustentam as grandes fortunas. No contexto do futebol, a SAF é apresentada como panaceia que eliminaria a "incompetência associativa" e traria a "eficiência empresarial", ignorando que a transformação dos clubes em empresas privadas pode significar a expropriação do patrimônio simbólico e material construído por gerações de torcedores, a perda de controle democrático sobre as instituições e a subordinação completa dos interesses esportivos à lógica do lucro. O que se venera, em última instância, não é o futebol ou o clube, mas o capital em si mesmo, numa inversão de valores que transforma o meio (recursos financeiros) em fim último.
Em segundo lugar, assiste-se ao surgimento de um fascismo que se apresenta como "anti-sistema", capitalizando sobre percepções reais de iniquidade na política institucional e no futebol. Esse fenômeno tem raízes em causas estruturais: a posição periférica do Rio Grande do Sul no arranjo federativo brasileiro, que se acentuou com a concentração econômica no Sudeste; a falta de representatividade efetiva dos clubes do Sul nos processos decisórios centrados no eixo Rio-São Paulo, seja na CBF, seja nas negociações de direitos televisivos; e a percepção generalizada de que as elites dirigentes – tanto na política quanto no futebol – formam uma casta corrupta e incompetente que perpetua seus privilégios à revelia dos interesses populares. O discurso fascista contemporâneo, habilmente, canaliza essas frustrações legítimas para soluções autoritárias, prometendo "limpar" as instituições através de lideranças "fortes", "técnicas" e supostamente "não políticas" (quando, na verdade, representam a forma mais brutal e antidemocrática de fazer política). No futebol, isso se manifesta na idolatria de gestores autoritários, na defesa de punições exemplares contra "políticos corruptos" do clube e no desprezo pelos mecanismos de participação associativa, vistos como "bagunça" e "amadorismo".
Por fim, há o sentimento pervasivo de ser constantemente prejudicado, que permeia tanto a política gaúcha quanto o futebol do Sul. Na esfera política, o Rio Grande do Sul cultiva uma narrativa de marginalização no pacto federativo: menor recebimento proporcional de recursos da União, políticas econômicas que favoreceriam o Sudeste em detrimento das demais regiões, falta de investimentos federais em infraestrutura local. Verdadeiro ou exagerado, esse sentimento estrutura a percepção política de parcela significativa dos gaúchos e alimenta tanto o regionalismo ressentido quanto a adesão a projetos políticos radicais que prometem "romper com o sistema". No futebol, esse ressentimento encontra expressão privilegiada no tema da arbitragem: há uma crença amplamente difundida de que os clubes do Sul são sistematicamente prejudicados pelos árbitros, que favoreceriam os "grandes" do eixo Rio-São Paulo. Independentemente da veracidade factual dessas alegações (que mereceriam análise estatística rigorosa), o que importa é que esse sentimento é real e estruturante, funcionando como explicação totalizante para derrotas e fracassos, retirando a agência dos próprios clubes e de suas gestões e projetando a responsabilidade para um "sistema" externo e conspiratório. Essa mentalidade vitimista, embora compreensível diante de assimetrias reais de poder, torna-se politicamente perigosa quando utilizada para justificar soluções antidemocráticas e para recusar qualquer autocrítica sobre as deficiências internas.
Conclusão: Cultura Política e a Antecipação de 2026
Compreender os processos, razões, sentidos e justificativas dos movimentos políticos internos de agremiações esportivas como o Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense revela-se não apenas um exercício intelectual interessante, mas um espaço analítico sólido para compreender e até antecipar tendências políticas mais amplas, inclusive aquelas que se manifestarão nas eleições de 2026. Isso porque, como demonstrou Putnam, a cultura política ordena as formas de compreensão de todas as instâncias de poder que o cidadão experimenta em sua vida cotidiana. Não há uma cultura política para o futebol, outra para a política municipal e ainda outra para a política nacional; há, sim, uma cultura política que se manifesta de forma consistente e estrutura os comportamentos, expectativas e reações dos indivíduos em todas essas esferas.
As disputas internas nos clubes de futebol, portanto, não são meros epifenômenos ou curiosidades sociológicas: são termômetros sensíveis das tensões sociais, dos conflitos entre velhas e novas elites, dos processos de radicalização política e das transformações nos valores que orientam a ação coletiva. Quando observamos, no Grêmio, a resistência das oligarquias tradicionais contra a entrada de novos grupos econômicos, o apelo crescente a soluções autoritárias e mercantilizadas (SAFs), o discurso vitimista sobre arbitragem e o fascínio pela acumulação capitalista desregulada, estamos, na verdade, observando em escala reduzida e com temporalidade acelerada os mesmos fenômenos que estruturam a política gaúcha e brasileira contemporânea. O cidadão que defende um empresário autoritário para "colocar ordem" no clube tenderá a defender propostas semelhantes na política institucional; aquele que naturaliza a compra de votos nas eleições do time dificilmente se indignará com práticas clientelistas na política municipal.
Assim, ao analisarmos as eleições nos grandes clubes de futebol do Sul, as disputas sobre modelos de gestão esportiva e os discursos que mobilizam as torcidas, estamos na verdade antecipando e compreendendo melhor os movimentos que se desenharão em 2026. A cultura política que se manifesta na relação entre sócios e dirigentes de um clube, entre clubes e entidades "reguladoras" supostamente imparciais, e entre a periferia e o centro do sistema futebolístico brasileiro é a mesma que estruturará as escolhas eleitorais, as reações às crises econômicas e políticas e os projetos de futuro que disputarão a hegemonia no país. Ignorar essa dimensão, tratando o futebol como mero entretenimento desconectado da "política séria", é perder uma oportunidade preciosa de compreender as dinâmicas profundas que movem a sociedade brasileira – inclusive suas tendências mais preocupantes rumo ao autoritarismo, ao ressentimento destrutivo e à mercantilização de todas as esferas da vida social.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

