Fux vota em português, mas com legendas em inglês, para agradar Trump
Fux ofereceu voto que absolve réus e agrada Trump, num espetáculo de gigantesca incoerência jurídica histórica
Quando o relator Alexandre de Moraes encerrou seu voto pedindo a condenação dos oito réus da trama golpista, o ministro Luiz Fux antecipou: “amanhã, quando eu for proferir o meu voto, não considerarei apartes”. Flávio Dino, com ironia elegante, respondeu: “Vossa Excelência poderá falar à vontade porque não irei pedir qualquer aparte”. Hoje, ao revelar seu voto, ficou claro o motivo da blindagem: medo de ouvir.
O aspecto mais alarmante no voto exaustivo de quase 13 horas do ministro foi sua desconcertante guinada rumo à incoerência. Até março, ele se apresentava como defensor de uma justiça punitiva, valorizando a imposição rigorosa de sanções e a responsabilização célere dos acusados, revelando agora um contraste desconcertante em sua postura.
Agora, sem pudor, virou garantista, preocupado em sublinhar nulidades processuais e restrições à jurisdição do Supremo.
Esse contraste não é mero detalhe. O mesmo ministro que considerou a denúncia “brilhantemente sintetizada” por Alexandre de Moraes quando da aceitação do processo resolveu, no dia de hoje, demoli-la. A incongruência é gritante, sobretudo porque acompanhou Moraes em dezenas de condenações dos atos de 8 de janeiro e agora se coloca como patrono das defesas. E capricha na pose.
Resumo da ópera: o ministro absolveu Jair Bolsonaro, Almir Garnier, Paulo Sérgio Nogueira, Augusto Heleno, Anderson Torres e Alexandre Ramagem de todos os crimes, incluindo organização criminosa armada, abolição violenta do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado. Divergindo de Moraes e Dino, que condenaram todos, Fux condenou apenas Mauro Cid e Walter Braga Netto por abolição violenta do Estado Democrático de Direito, absolvendo-os dos demais delitos.
A quase canonização dos réus
Em seu longo voto, Fux adotou a estratégia de desmerecer cada prova, uma a uma. Nenhum áudio, nenhum vídeo, nenhum depoimento — todos foram destituídos de força probatória. Restou-lhe apenas aceitar, em parte, a delação do tenente-coronel Mauro Cid, aliás o sonho de consumo de 10 entre 10 advogados dos réus em julgamento.
O resultado foi um quadro surreal: quase canonizou os réus, transformando-os em vítimas de um Estado que, segundo ele, teria ultrapassado os limites do direito. Na senha garantia, Luiz Fux estava num dia que perdoaria Idi Amin Dada e até Adolf Eichmann. (Sim, réus que não tinham metade das provas de sua culpabilidade como têm os réus hoje julgados pelo ministro Fux.)
Esse gesto não foi apenas técnico. Foi político. Ao recusar a robustez das provas, Fux escolheu o caminho de oferecer consolo jurídico a cerca de 47% da população brasileira que ainda reluta em admitir o protagonismo de Jair Bolsonaro na tentativa de subversão da ordem democrática.
Em sua argumentação, estilo dízima periódica, o ministro dificilmente acharia possível o crime de tentativa de golpe.
Erudição de almanaque
O ministro recheou seu voto de citações a juristas do passado. Lidas em tom solene, pareciam descobertas inéditas, quando na realidade eram lugares-comuns da formação jurídica brasileira.
O efeito foi duplo: por um lado, dar verniz acadêmico a um voto frágil; por outro, resvalar em conceitos ao alcance do senso comum, ecoando paixões políticas e agendas particulares. Erudição de almanaque, que ilumina pouco e confunde muito.
Em certos momentos da tarde pensei que o ministro Fux estava apresentando seu voto para os calouros do curso de Direito de Pindamonhangaba ou de Xique-Xique. Nada contra essas acolhedoras cidades.
Ele, ali, falando por todos os orifícios, se sentia como o primogênito da deusa grega da mitologia grega, Têmis, a deusa da justiça, representada com venda, balança e espada, e que por sinal está entronizada na frente do próprio STF. Há que se perguntar: dos cinco juízes, coube apenas a Luiz Fux ser o único a apresentar a justiça em todo seu esplendor? Seus outros colegas comeram mosca ao longo dos meses? Isso me fez lembrar novamente do médico Simão Bacamarte, da carioca Itaguaí, protagonista da célebre novela de Machado de Assis: toda cidade é louca; só o médico é são.
Rivalidade velada com Alexandre de Moraes
A rivalidade entre Fux e Moraes emergiu cristalina. Em certo trecho, Fux declarou: “Eu e o ministro Alexandre somos amigos, mas temos dissensos, nunca discórdia”. O descompasso da frase revela o contrário: discorda sempre, ainda que encubra sob verniz cordial.
E não resistiu a uma alfinetada no ministro Flávio Dino, logo no início: “O senso de humor do ministro Dino é o que o torna atraente”. Um comentário que mistura veneno e falsa cortesia. O voto inteiro foi assim: cordialidade de superfície, veneno escorrendo a céu aberto.
O tom monocórdio e as frases intermináveis exibiram uma vaidade latente. Fux se colocou como astro maior, orbitando soberano e majestoso acima dos colegas.
Era visível o desejo de ofuscar o relatório robusto de Alexandre de Moraes. Mas bastaria submeter seu voto a um seminário em qualquer curso de Direito para expor suas fragilidades: fora as citações pomposas, o conteúdo se esfarela.
A incoerência em forma de voto
Vale lembrar: em março, Fux aceitou a denúncia da Procuradoria-Geral da República contra Bolsonaro e seus aliados. À época, elogiou a “síntese brilhante” de Moraes. Agora, menos de seis meses depois, tenta invalidar todo o processo. Essa virada não é mero detalhe: ela mostra um ministro disposto a redesenhar sua biografia conforme a direção dos ventos políticos.
E não é a primeira contradição. Nos julgamentos anteriores, Fux acompanhou as condenações de dezenas de réus pela barbárie de 8 de janeiro, sem questionar a competência do STF.
Agora, subitamente, afirma que o Supremo nunca deveria ter julgado os casos. Um silêncio eloquente quando lhe convinha, um grito quando interessa.
Ao dizer que “o Mensalão foi abolição do Estado democrático de direito”, Fux explicitou seu viés. Não se tratou de argumento técnico, mas de recado político contra a esquerda. A lembrança reaviva sua frase de anos atrás, quando declarou que, diante de questões político-partidárias, “mataria no peito”.
O vínculo com a Lava Jato também emerge. Deltan Dallagnol, procurador da República que coordenou a operação, foi o autor do famoso “In Fux We Trust”, mensagem enviada ao então juiz Sérgio Moro, tentando blindar estratégias da força-tarefa.
Deltan, que depois se elegeu deputado federal, foi cassado pela Câmara em 2023 por irregularidades em sua candidatura e por uso político da Lava Jato. A frase, que parecia piada interna, virou hoje espelho de um voto que destila parcialidade.
Isolamento estratégico e cálculo de futuro
O isolamento de Fux não foi ingenuidade. Há quem veja nele uma estratégia para manter influência em um futuro rearranjo político, mesmo com sua aposentadoria próxima.
Ao se alinhar às defesas, posiciona-se como aliado de setores que poderão voltar ao poder e decidir indicações para o Supremo. Calcula, mais do que julga.
Nos bastidores, o clima foi descrito como sufocante. Um ministro do STF, em condição de anonimato, classificou o voto de Fux como “um dos mais malucos da história do STF”. Outro relato: “o ambiente ficou tão tenso que se poderia cortar o ar com uma faca”.
Colegas manifestaram solidariedade quase unânime a Alexandre de Moraes. A exceção foi Cristiano Zanin, presidente da Primeira Turma, que manteve a neutralidade. O restante sequer olhou nos olhos de Fux.
A palavra mais repetida entre eles: deslealdade.
O humor ácido, mas falso
Um aluno meu me mandou a seguinte mensagem: “Professor, Fux vai gastar todo o verbo, esgotar todo o dicionário e cansar a todos com aquela lengalenga, mas não tarda e logo acaba seu momento de glória. O que o Fux faz é tão somente querer ofuscar o brilho de Moraes. Numa palavra: ego inflado. O Zepelim Fux. E vai morrer na praia, será voto vencido. Amanhã, a ministra Cármen Lúcia, com sua proverbial sabedoria mineira, põe ordem na Casa e ensaboa essa peruca do Fux".
Do lado de fora, o ex-ministro Marco Aurélio Mello saiu em defesa de Fux. Eufórico, disse: “O voto dele ficará nos anais do Tribunal. O voto dele, a meu ver, escancarou o quadro”. Se Marco Aurélio via no voto uma obra-prima, a lógica se inverte: os insensatos sempre se reconhecem.
O fecho: recado a Trump
O voto de Luiz Fux pareceu menos uma manifestação de justiça e mais um documento político internacional. Pela forma enviesada, pelo tom complacente e pela obsessão em reduzir a responsabilidade de Jair Bolsonaro, soou como um texto pronto para ser lido em Palm Beach. Mais ainda: pareceu escrito para agradar ao presidente Donald Trump, como quem diz que o Brasil só se livrará das tarifas de 50% impostas às exportações brasileiras aos EUA se interromper imediatamente o julgamento ou decretar a inocência do ex-presidente.
E assim termina: não como o voto de um juiz supremo, mas como a peça de um advogado de defesa com endereço estrangeiro.
Bombástico, irônico, melancólico — um voto para a história, mas pela porta dos fundos, com direito apenas a uma pálida nota de rodapé. Já acho até muito.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

