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Boaventura de Sousa Santos

Sociólogo português

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Gaza é Europa aqui e agora

Boaventura aponta natureza de "Estado colonial e, portanto, a ilegitimidade" de Israel

Palestinos carregam corpo de militante assassinado pelo exército de Israel (Foto: Mohammed Salem/Reuters)
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Sem alma nem memória, a Europa é incapaz de ver a semelhança entre as imagens de morte e de destruição no gueto de Varsóvia, aquando do levantamento desesperado dos judeus em 19 de Abril de 1943, e as imagens que nos chegam hoje da faixa de Gaza.. E o destino que a Europa (e agora também os EUA) legitimam para os considerados sub-humanos é o mesmo: em Varsóvia foi a deportação para os campos de concentração e os crematórios; em Gaza é a faixa reduzida a escombros, terra queimada. Como não teêm para onde ir, nem por terra nem por mar, o destino do povo de Gaza é o mesmo, a morte. Em última instância, esta política brutal é legitimada pelo que tenho designado de linha abissal, a linha que desde o início da expansão colonial separa os seres plenamente humanos dos seres sub-humanos. Não é por acaso que ouvimos autoridades israelitas falar dos palestinianos como animais. 

Ao tempo de Varsóvia, a Europa estava dominada pelo nazismo e por governos fascistas. Hoje, a Europa está dominada por governos ditos democráticos e alguns até de esquerda. Que diferença faz? Qual é a cor política da indiferença? Por que razão se enchem os noticiários de vozes de indignação e horror quando um bombardeamento russo mata três pessoas na Ucrânia e se relata como resposta legítima arrasar prédios, mesquitas, hospitais e escolas com centenas de pessoas lá dentro, e sem pré-aviso?  Porque os primeiros são europeus brancos e os palestinianos não? Mas, afinal, os judeus não eram também brancos e europeus?

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Alguns noticiários (ecoando as suas fontes norte-americanas) ousaram caracterizar o ataque do Hamas como “não provocado”, o mesmo tropo que têm utilizado na invasão da Ucrânia pela Rússia.  Só este ano já tinham sido assassinados 245 palestinianos, incluindo mulheres e crianças, mas isso não é provocação “porque nada justifica a morte de civis israelitas”.  Para não recuar ao início, à declaração de Balfour de 1917 (primeira autorização para os sionistas se instalarem na Palestina), ou aos cerca de 60.000 judeus que chegaram a Palestina entre 1933 e 1936, depois de vários países europeus terem recusado receber os judeus que Hitler queria expulsar (não era ainda a solução final), ou ainda à fundação do Estado de Israel em 1948, que ocupou mais de 78% do território da Palestina, forçando 750.00 Palestinianos ao exílio na sua própria terra, destruindo 530 aldeias e matando 15.000 palestinianos. Basta começar em 2006, o ano em que Hamas ganhou as eleições para o Conselho Legislativo Palestiniano com 44.5% dos votos. Estas eleições foram livres e justas, de acordo com os observadores internacionais, e, como o mundo ocidental é o mundo das democracias em constante combate contra as autocracias, não havia qualquer razão para regime change. Acontece que este resultado não agradava ao Ocidente. Como aconteceu antes em tantas partes do mundo sob a influência ocidental, a vitória do Hamas não foi reconhecida, o conflito entre a Fatah e o Hamas foi internacionalmente instigado e o que resta da Palestina ficou dividido em dois governos a partir de 2007:  O West Bank, controlado pela Fatah, e a Faixa de Gaza, controlada pelo Hamas. Foi então que Gaza se transformou gradualmente na maior prisão a céu aberto. Corre agora o risco de ser o maior cemitério ou a maior lixeira de resíduos humanos e não humanos do mundo.

Ao longo da minha vida fui cancelado por muitas (sem)razões. A primeira vez foi no Brasil, quando a Folha de São Paulo me cancelou depois que a Revista Veja publicou uma nota falsa em que me atribuía a afirmação de que Israel não tinha direito de existir como Estado. Misteriosamente, a minha página da wikipedia foi apagada e substituída por essa mentira. Bem ao contrário, nessa altura a minha posição era de estrita obediência às resoluções da ONU [UNGA Resolution 3314 (1974); UNGA Resolution 37/43 (1982)]. Defendia, portanto, a solução dos dois Estados.  Disto decorria que se a política de Israel continuasse a negar a possibilidade do Estado Palestiniano, anexando mais e mais território que lhe não pertencia pelos tratados, então a conclusão era óbvia: ou há dois Estados ou não há nenhum. Nos quinze anos que se seguiram, o Estado de Israel foi-se expandindo, nesse processo inviabilizando a teoria dos dois Estados e vincando a sua natureza de Estado colonial e, portanto, ilegítimo. Está neste momento a ponto de culminar essa política de extermínio na boa tradição colonial de que o seu melhor aliado, os EUA, são o exemplo mais cruel com a solução final que impuseram aos indígenas norte-americanos. Suponhamos que o genocídio dos índios que ocorreu então estava a ocorrer agora, algum democrata ou pessoa de bom senso teria dificuldade em declarar os EUA como um Estado ilegítimo? 

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Se alguém de bom senso tinha dúvidas sobre o conceito de terrorismo de Estado deve-as ter perdido ao ver a actuação do Estado de Israel. Mas como o bom senso tem hoje pouco a ver com o comportamento das instituições  internacionais, é bem possível que o Tribunal Penal Internacional continue a ter dúvidas em acusar Israel por estar a “agir em legítima defesa”.  Isto significa que um país ocupante pode destruir o país ocupado se este resistir contra a ocupação. Esta é certamente a nova norma das relações internacionais assentes em regras, o sacrossanto credo pelo qual os EUA e a Europa continuam a pautar a sua política internacional. O seu isolamento internacional está bem patente quando observamos no mapa-mundo os países que estão a apelar à paz. O protagonista da paz mundial é hoje o Sul global (no sentido do conjunto de países, muitos deles antigas colonias europeias, que se opõem à política internacional dos EUA e da Europa). A única exceção é a Índia, hoje dominada por um primeiro ministro que, segundo Arundhati Roy, está a converter o país num regime fascista hindu cada vez mais inclinado a tratar os indianos islâmicos com Israel trata os palestinianos.

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