Gaza entre a fome e o “Projeto Riviera”
Gaza, em ruínas, pede pão e água, enquanto Israel continua apostando na "Riviera Gaza"
Sergio Ferrari - Em 22 de julho, Ministros das Relações Exteriores de 28 países assinaram uma declaração exigindo o fim da agressão contra a Palestina. Quase ao mesmo tempo, uma centena de prestigiosas organizações não-governamentais (ONGs) internacionais denunciaram a situação de drama humanitário sofrida pela população de Gaza. Por sua vez, ao mesmo tempo, as Nações Unidas reiteraram pela enésima vez a sua preocupação com "o horror" que se vive na Palestina.
Críticas oficiais estão crescendo
Páginas institucionais, como a do Governo da Espanha, mencionaram 25 países signatários; outras fontes colocam esse número em 28. Além das diferenças aritméticas, a mensagem dos ministros das Relações Exteriores de muitos Estados tem sido tão direta quanto contundente: "Simples e urgente: a guerra em Gaza deve acabar". Não foi apenas o tom da declaração que fez a diferença. Também foi impressionante que governos como a Suíça tenham aderido, que até agora, e apesar dos constantes e lotados protestos dos cidadãos, havia mantido uma posição light diante do drama palestino.De acordo com o Palácio de Moncloa (governo espanhol), a declaração foi assinada pelos ministros das Relações Exteriores da Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Dinamarca, Estônia, Finlândia, França, Islândia, Irlanda, Itália, Japão, Letônia, Lituânia, Luxemburgo, Holanda, Nova Zelândia, Noruega, Polônia, Portugal, Eslovênia, Espanha, Suécia, Suíça e Reino Unido, além do Comissário para a Igualdade, Preparação e Gestão de Crises da União Europeia. Outras fontes e, por isso há a diferrença numérica, também adicionam a adesão de Chipre, Grécia e Malta (https://www.lamoncloa.gob.es/serviciosdeprensa/notasprensa/exteriores/paginas/2025/210725-declaracion-conjunta-alto-fuego-gaza.aspx).
Cessar-fogo imediato
O comunicado de 22 de julho incorpora as questões mais urgentes no contexto da situação de Gaza, que considera "terrível": "O sofrimento da população civil de Gaza atingiu novos patamares. O modelo de entrega de ajuda do governo israelense é perigoso, alimenta a instabilidade e priva os habitantes de Gaza de sua dignidade humana". Condena a lentidão proposital da ajuda e a morte desumana de civis de todas as idades, que estão tentando atender às suas necessidades mais básicas de água e comida. E contabiliza mais de 800 palestinos que morreram enquanto tentavam obter ajuda. Além disso, afirma que a recusa de Israel em prestar qualquer assistência humanitária essencial à população civil em Gaza é inaceitável e recorda ao Governo de Gaza que deve cumprir as suas obrigações ao abrigo do direito internacional.
Também inclui o capítulo aberto dos "reféns cruelmente mantidos em cativeiro pelo Hamas desde 7 de outubro de 2023, [que] continuam sofrendo terrivelmente". Condena o fato de ainda se encontrarem detidos e solicita a sua libertação imediata e incondicional. "Um cessar-fogo negociado", argumentam os signatários, "é a opção que permite ter mais esperança de trazê-los de volta para casa e acabar com a agonia de suas famílias".
Um aspecto essencial desse comunicado diz respeito ao futuro da Palestina, reafirmando uma posição de princípio que confronta a visão de Israel, os ministros das Relações Exteriores "se opõem firmemente a quaisquer medidas destinadas a mudanças territoriais ou demográficas nos Territórios Palestinos Ocupados". Além disso, eles afirmam que o plano de assentamento E1 anunciado pela Administração Civil Israelense, casxo seja implementado, dividiria o Estado palestino em dois, o que seria uma violação flagrante do direito internacional e prejudicaria seriamente a proposta histórica de coexistência israelense-palestina. Eles também denunciaram e exigiram o fim imediato da construção acelerada de assentamentos em toda a Cisjordânia, inclusive no setor de Jerusalém Oriental, bem como o fim da escalada da violência dos colonos israelenses contra os palestinos.
Essa posição de 28 países sublinha vários desafios humanitários. Exige que o governo israelense remova imediatamente as restrições à entrada de ajuda e facilite urgentemente às Nações Unidas e às ONGs humanitárias a realizar sua missão de salvar vidas com segurança e eficácia. Apela a todas as partes envolvidas no conflito para que protejam os civis e cumpram as suas obrigações ao abrigo do direito internacional. Manifestam-se contra as propostas de deslocar à força a população palestina para uma "cidade humanitária" por considerá-las totalmente inaceitáveis e porque violam o direito internacional. Exortam a comunidade internacional a unir-se num esforço comum para pôr fim a este terrível conflito através de um cessar-fogo imediato, incondicional e permanente, reafirmando o seu apoio aos esforços de mediação, mesmo que ainda são tímidos e incompletos, dos Estados Unidos, do Qatar e do Egipto.
"Gaza está morrendo de fome"
Em 22 de julho, o correspondente das Nações Unidas em Gaza publicou uma reportagem no site oficial de sua organização. "Nos corredores dos hospitais e nas ruas de Gaza", escreveu ele, "os rostos de uma catástrofe humanitária sem precedentes são desenhados. Crianças que lutam contra a desnutrição aguda e mães que sofrem de tanta fome que não podem amamentar seus filhos". É uma descrição jornalística quase dantesca que acrescenta: "Os últimos vestígios da vida em Gaza se extinguem dia após dia... Milhões de civis estão presos em um espaço apertado, lutando contra a fome, doenças e deslocamento constante". De acordo com dados oficiais do Ministério da Saúde de Gaza, 101 palestinos morreram de desnutrição nos últimos dias: 15 deles em um período de 24 horas. Pelo menos 80 eram crianças.
A fome entre os moradores de Gaza causa estragos, como comenta o relatório: "Sob o sol escaldante, centenas de pessoas – mulheres, homens e crianças – fazem fila na esperança de conseguir uma refeição que mal satisfaça sua fome. Quando a comida chega, a espera se transforma em uma luta desesperada por uma porção, com medo de voltar de mãos vazias". Diante dessa situação extrema, as limitadas cozinhas comunitárias tornaram-se o único refúgio para muitas famílias.
A situação de saúde não é menos dramática: no Hospital Infantil Al-Rantisi, "famílias com crianças em estado de extrema desnutrição estão constantemente chegando", alega o artigo, citando o médico Ragheb Warshagha, que afirma que a situação em seu hospital é "miserável". "O problema", diz ele, é muito agravado porque "as mães também sofrem de desnutrição, o que leva a uma diminuição na produção de leite materno e desnutrição em crianças, às vezes até a morte por infecções e falta de imunidade" (https://news.un.org/es/story/2025/07/1540217). De acordo com a Organização Mundial da Saúde, a desnutrição aguda já ultrapassa 10% na população em geral, enquanto mais de 20% das mulheres grávidas e lactantes examinadas estão desnutridas, muitas gravemente.
O Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA) disse que "os cidadãos que procuram comida arriscam suas vidas" apenas para conseguir uma mordida para acalmar a fome, enquanto multidões desesperadas são alvo de fogo diário das forças israelenses. De acordo com dados compilados pelo Escritório do Alto Comissariado para os Direitos Humanos, entre 27 de maio e 21 de julho, 1.054 palestinos foram mortos pelo exército israelense em Gaza enquanto tentavam ter acesso a alimentos. Destes, 766 foram mortos nas proximidades dos locais da Fundação Humanitária de Gaza (GHF) e 288 em torno dos comboios da ONU e de outras organizações de ajuda. O GHF é o instrumento criado conjuntamente pelas autoridades israelenses e americanas para canalizar a ajuda humanitária, embora com métodos militarizados. Enquanto isso, os mercados da Cidade de Gaza estão quase vazios e os poucos produtos disponíveis têm preços exorbitantes. Um quilo de farinha pode custar cerca de 48 dólares e as berinjelas, 9.
A sociedade civil assume a sua responsabilidade
Em 23 de julho, um dia após a declaração dos 28 países, 111 organizações não-governamentais (ONGs) internacionais, incluindo Médicos Sem Fronteiras, Anistia Internacional, Cáritas, Swiss Protestant Aid, Save the Children, Oxfam, Médicos Internacionais, algumas seções da Terre des Hommes, Associazione Cooperazione e Solidarietà, circularam uma declaração conjunta relatando o terrível impacto humanitário da fome: "Nossos [próprios] colegas e aqueles a quem servimos estão morrendo lentamente". Eles acrescentam que "enquanto o cerco do governo israelense está causando fome entre a população de Gaza, os trabalhadores humanitários estão se juntando às mesmas fileiras em busca de comida, correndo o risco de serem baleados apenas por tentarem alimentar suas famílias". (https://www.amnesty.org/fr/latest/news/2025/07/as-mass-starvation-spreads-across-gaza-our-colleagues-and-those-we-serve-are-wasting-away/).
Essas ONGs exigem a negociação imediata de uma trégua, a abertura de passagens de fronteira e o livre fluxo de ajuda por meio de mecanismos da ONU, não por meio do GHF instalado pelos israelenses. Em sua declaração, as ONGs afirmam que há toneladas de ajuda intacta em armazéns fora da Faixa e até mesmo dentro, mas que são impedidas de entregá-la. "Os palestinos estão presos em um ciclo de esperança e dor", enfatizam, "esperando por assistência e tréguas, apenas para acordar em condições piores". Não é apenas um tormento físico, mas também psicológico e "A sobrevivência é apresentada como uma miragem".
O Projeto Riviera em Gaza avança
Em 22 de julho, ignorando a ofensiva diplomática internacional contra o cerco israelense à Faixa, vários líderes da extrema direita mais radical de Israel (incluindo o ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, e a ativista Daniella Weiss, uma defensora ferrenha dos assentamentos judaicos em Gaza), reuniram-se no mesmo parlamento, em Jerusalém, para avançar com o plano de transformação da Faixa de Gaza em uma nova "Riviera". Significativamente, e de acordo com fontes de notícias internacionais, a reunião se autodenominou "A Riviera de Gaza: Da Visão à Realidade". É um "plano piloto" que o próprio presidente dos EUA antecipou em fevereiro e que prevê a construção de casas para mais de um milhão de israelenses, complexos turísticos e áreas agrícolas e industriais, uma vez que os palestinos que ainda residem naquela área tenham sido deportados.
Drama humanitário versus ouvidos surdos e planos expansionistas dos colonos reforçados em seu próprio poder. O futuro a longo prazo de uma Gaza semidestruída está em jogo nos próximos dias, semanas ou meses. A queda de braço é difícil. Dois Estados de um lado contra um grande setor da comunidade internacional que continua crescendo, que amplifica sua voz e exige o fim do horror na Palestina, mas que ainda não conseguiu dar um basta definitivo à agressão militar.
Tradução: Rose Lima.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




