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Pepe Escobar

Pepe Escobar é jornalista e correspondente de várias publicações internacionais

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Geopolítica Soleimani, um ano depois

Como seria previsível, o período que antecedeu o primeiro aniversário do assassinato de Soleimani tinha que degenerar em insinuações de que os Estados Unidos e o Irã estariam novamente às beiras de uma guerra

Irã protesta por assassinato do general Soleimani (Foto: Reuters)
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Por Pepe Escobar, para o Asia Times

Tradução de Patricia Zimbres, para o 247

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Há um ano, os Frenéticos Anos Vinte começaram com um assassinato.

O assassinato do Major General Qassem Soleimani, comandante da Força Quds do Corpo de Guarda Revolucionário Islâmico (CGRI), juntamente com Abu Mahdi al-Muhandis, o comandante-adjunto da milícia iraquiana Hashd al-Sha’abi por mísseis Hellfire guiados por laser, lançados de dois drones Reaper MQ-9, foi um ato de guerra.

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O ataque de drone no aeroporto de Bagdá, por ordem direta do Presidente Trump, não apenas foi unilateral, não-provocado e ilegal, como também foi arquitetado como uma dura provocação, visando a detonar uma reação iraniana que então seria respondida com a "auto-defesa" americana, apresentada como "dissuasão". Pode-se chamar a isso de uma forma perversa de dobrar a aposta em uma falsa bandeira reversa.

Na narrativa do Poderoso Wurlitz imperial, trata-se de um "assassinato com alvo", uma operação preventiva visando a esmagar os supostos planos de "ataques iminentes" a diplomatas e tropas americanas de autoria de Soleimani.

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Falso. Nem sombra de evidências. E então, o Primeiro-ministro Adil Abdul-Mahdi, frente a seu parlamento, apresentou o verdadeiro contexto: Soleimani estava em uma missão diplomática, em um voo de carreira entre Damasco e Bagdá, tratando de complexas negociações entre Teerã e Riad, tendo o primeiro-ministro iraquiano como mediador, a pedido do Presidente Trump.

A máquina imperial, então - zombando descaradamente do direito internacional - assassinou um enviado diplomático de fato.

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As três principais facções que pressionaram pelo assassinato de Soleimani foram os neoconservadores norte-americanos - supremamente ignorantes da história, cultura e política do Sudeste Asiático - e os lobbies israelense e saudita, que creem ardentemente que seus interesses são beneficiados a cada vez que o Irã é atacado. Trump foi incapaz de perceber o Grande Quadro e suas trágicas ramificações, mas apenas o que ditava seu principal doador, o Israel-em-primeiro-lugar Sheldon Adelson, e o que Jared da Arábia Kushner sussurrava em seu ouvido, remotamente controlado por seu grande cupincha Muhammad bin Salman (MbS). 

A armadura do "prestígio" americano

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A comedida resposta iraniana ao assassinato de Soleimani foi cuidadosamente calibrada para não detonar a "dissuasão" vingativa do império: ataques com mísseis de precisão na base iraquiana de Ain-al-Assad controlada pelos Estados Unidos. O Pentágono foi previamente advertido.

Como seria previsível, o período que antecedeu o primeiro aniversário do assassinato de Soleimani tinha que degenerar em insinuações de que os Estados Unidos e o Irã estariam novamente às beiras de uma guerra.

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De forma que é instrutivo examinar o que o Comandante da Divisão de Aeroespaço IRGC, o Brigadeiro-General Amir-Ali Hajizadeh declarou à rede libanesa Al-Manar: "Os Estados Unidos e o regime sionista (Israel) não trouxeram segurança a parte alguma, e se algo acontecer aqui (na região) e uma guerra irromper, não faremos qualquer distinção entre as bases norte-americanas e os países que as abrigam".

Hajizadeh, detalhando os ataques de mísseis de precisão de um ano atrás, acrescentou: "Estávamos preparados para a resposta dos americanos, e toda a nossa força de mísseis já estava em alerta. Se eles tivesses respondido, teríamos atacado todas as suas bases, do Jordão ao Iraque e ao Golfo Pérsico, e até mesmo seus navios de guerra no Oceano Índico".

Os ataques com mísseis de precisão em Ain al-Assad, há um ano, representaram uma potência de porte médio, enfraquecida por sanções e enfrentando uma colossal crise econômica e financeira, respondendo a um ataque ao tomar como alvo propriedades imperiais que fazem parte do Império de Bases. Desde o final da Segunda Guerra Mundial, essa é a primeira vez que um tal ataque acontece em todo o mundo. Em vastas regiões do Sul Global, esse ataque foi claramente interpretado como um rompimento fatal da armadura hegemônica do "prestígio" americano, que já data de várias décadas.

De modo que Teerã não se impressionou muito com os dois B-52 que recentemente voaram sobre o Golfo Pérsico, nem com o anúncio pela Marinha dos Estados Unidos da chegada ao Golfo Pérsico, na semana passada, do USS Georgia, carregado de mísseis e alimentado a energia nuclear.

Essas movimentações foram colocadas como uma resposta a uma acusação sem qualquer prova de que Teerã estaria por trás de uma ataque de 21 foguetes contra a vasta Embaixada Americana, na Zona Verde de Bagdá.

Os foguetes (não-detonados) de 107mm de calibre - por sinal, marcados em inglês, e não em farsi - podem facilmente ser comprados por praticamente qualquer pessoa em algum souk clandestino de Bagdá, como vi com meus próprios olhos, no Iraque, desde meados dos anos 2000.

Isso certamente não se qualifica como um casus belli - ou uma mistura de "auto-defesa" com "dissuasão". A Justificativa Centcom , na verdade, soa como uma cena de Monty Python: um ataque "...quase que certamente conduzido por um grupo miliciano perigoso com apoio iraniano". Note-se o "quase que certamente", que é linguagem-código para "não fazemos a mínima ideia de quem praticou o ataque".

Como lutar a - verdadeira - guerra ao terror

O Ministro das Relações Exteriores iraniano, Javad Zarid, deu-se ao trabalho (ver o tuíte anexo) de advertir Trump de que ele estava sendo enganado com uma falsa casus belli - e que as consequências seriam inevitáveis. Aqui temos um caso de diplomacia iraniana perfeitamente alinhada com o CGRI: afinal, toda a estratégia pós-Soleimani vem diretamente do Aiatolá Khamenei.

E isso leva a que o Hajizadeh do CGRI, mais uma vez, passe a estabelecer a linha vermelha iraniana em termos da defesa da República Islâmica: "Não iremos negociar o poder dos mísseis com ninguém - antecipando-se a qualquer manobra visando a incorporar a redução dos mísseis em uma possível volta dos Estados Unidos ao Plano de Ação Abrangente Conjunto (JCPOA). Hajizadeh ressaltou também que Teerã restringiu o alcance de seus mísseis a 2.000 km.

Meu amigo Elijah Magnier, que talvez seja o melhor correspondente de guerra de todo o Sudoeste Asiático nas últimas quatro décadas, detalhou de forma precisa a importância de Soleimani.

Todos, não apenas do Eixo de Resistência - Teerã, Bagdá, Damasco, Hezbolá, mas também de vastas regiões do Sul Global, têm firme conhecimento da forma como Soleimani liderou a luta contra o ISIS/Daesh no Iraque, de 2014 a 2015, e de sua importância na retomada de Tikrit, em 2015.

Zeinab Soleimani, a impressionante filha do General,  traçou um perfil de seu pai e dos sentimentos que ele inspirava. E Sayed Nasrallah, secretário-geral do Hezbolá, em uma entrevista extraordinária, ressaltou a "grande humildade" de Soleimani, mesmo com "as pessoas comuns, as pessoas simples".
Nasrallah conta uma história que é essencial para descrever o modus operandi de Soleimani na guerra ao terror real, não na fictícia, que merece ser citada na íntegra:

"Naquela época, Hajj Qassem viajava do aeroporto de Bagdá ao aeroporto de Damasco, de onde ele veio (diretamente) a Beirute, nos subúrbios ao sul da cidade. Ele chegou até mim à meia-noite. Lembro-me muito bem do que ele me disse: "Quando o dia amanhecer você tem que ter conseguido para mim 120 comandantes de operações" da Hezbolá. Eu respondi: "Mas Hajj, é meia-noite, como posso providenciar 120 comandantes?" Ele me disse que não havia outra solução se quiséssemos lutar eficazmente contra o ISIS, defender o povo iraquiano, nossos lugares sagrados (5 dos 12 imãs do Xiismo Twelver têm seus mausoléus no Iraque), nossos Hawzas (seminários islâmicos) e tudo o que existia no Iraque. Não havia escolha. "Não preciso de soldados, preciso de comandantes operacionais [para supervisionar as Unidades Iraquianas de Mobilização Popular]". É por essa razão que em meu discurso (sobre o assassinato de Soleimani), eu disse que durante os 22 anos de nossa relação com Hajj Qassem Soleimani ele nunca nos pediu coisa alguma. Ele nunca nos pediu nada, nem ao menos para o Irã. Sim, ele nos pediu uma vez, e foi em benefício do Iraque, quando ele nos fez esse pedido de 120 comandantes de operações. Então, ele ficou comigo e nós começamos a contactar nossos irmãos do Hezbolá, um por um. Conseguimos reunir quase 60 comandantes operacionais, inclusive alguns irmãos que estavam na linha de frente na Síria, que enviamos ao aeroporto de Damasco [para receber Soleimani], e outros que estavam no Líbano, que acordamos de seu sono e trouxemos imediatamente de suas casas porque Hajj havia dito que queria levá-los com ele no avião que o levaria de volta a Damasco após a oração da alvorada. E, de fato, após fazerem juntos a oração da alvorada, eles voaram para Damasco com ele, e Hajj Qassem foi de Damasco a Bagdá com 50 a 60 comandantes libaneses do Hezobolá, com os quais ele foi para a linha de frente no Iraque. Ele disse que não precisava de soldados porque, graças a Deus, havia voluntários em número suficiente no Iraque. Mas ele precisava de comandantes [temperados na batalha] para liderar esses soldados, treiná-los e passar a eles seu conhecimento especializado etc. E ele não partiu até eu ter prometido que, dentro de dois ou três dias eu enviaria a ele os outros 60 comandantes".

Orientalismo, mais uma vez

Um comandante que serviu sob as ordens de Soleimani, e que conheci no Irã em 2018, prometeu a mim e a meu colega Sebastiano Caputo que ele tentaria conseguir uma entrevista com o Major-General, que nunca falava com a imprensa estrangeira. Não tínhamos razão para duvidar de nosso interlocutor - de modo que, até o último minuto em Bagdá, estávamos em sua seleta lista de espera.

Quanto a Abu Mahdi al-Muhandis, morto ao lado de Soleimani no ataque de drone em Bagdá, fiz parte de um pequeno grupo que passou uma tarde com ele em uma casa segura - dentro, não fora da Zona Verde de  Bagdá em novembro de 2017. Aqui vai a íntegra de meu relatório.

O Prof. Mohammad Marandi, da Universidade de Teerã, refletindo sobre o assassinato, disse a mim que "a coisa mais importante é que a visão ocidental da situação é muito orientalista. Eles supõem que o Irã não possua verdadeiras estruturas e que tudo dependa de indivíduos. No Ocidente, um assassinato não destrói um governo, uma empresa, um organização. O Aiatolá Khomeini faleceu, e eles disseram que a revolução chegara ao fim. Mas o processo constitucional produziu um novo líder em questão de horas. O resto é história".

Essa ideia ajuda muito a explicar a geopolítica de Soleimani. Ele pode ter sido um superstar revolucionário - são muitos, em todo o Sul Global, os que o veem como um Che Guevara do Sudoeste Asiático - mas ele, antes de mais nada, era uma peça bem articulada em uma máquina muito bem articulada.

O presidente-adjunto do Parlamento iraniano, Hossein Amirabdollahian, disse à rede iraniana Shabake Khabar que Soleimani, dois anos antes do assassinato, já havia imaginado uma inevitável "normalização" entre Israel e as monarquias do Golfo Pérsico.

Ao mesmo tempo, ele tinha plena consciência da posição da Liga Árabe de 2002 - compartilhada por, entre outros, Iraque, Síria e Líbano: uma "normalização" não pode sequer entrar em discussão sem um estado Palestino independente - e viável - com as fronteiras de 1967 e Jerusalém Oriental como capital.

Agora todos sabem que esse sonho está morto, se bem que ainda não de todo enterrado. O que resta é a dura labuta de costume: o assassinato de Soleimani pelos americanos, o assassinato do importante cientista iraniano Mohsen Fakhrizadeh por Israel, a implacável guerra de intensidade relativamente baixa de Israel contra o Irã, com o total apoio do Beltway, a ocupação ilegal por Washington de partes do nordeste da Síria para conseguir algum petróleo, a perpétua insistência em mudança de regime em Damasco, a incessante demonização do Hezbolá.

Além do Fogo do Inferno

Teerã deixou muito claro que um retorno a pelo menos uma certa medida de respeito mútuo entre os Estados Unidos e o Irã exigirá que Washington volte a se filiar ao JCPOA sem qualquer precondição, e também o fim das sanções ilegais e unilaterais impostas  pelo governo Trump. Esse parâmetros são não-negociáveis.

Nasrallah, de sua parte, em um discurso proferido em Beirute no domingo, ressaltou que "um dos principais resultados do assassinato do General Soleimani e de al-Muhandis é a conclamação pela expulsão das forças dos Estados Unidos da região. Essas conclamações não existiam antes do assassinato. O martírio dos líderes da resistência colocou as tropas norte-americanas na iminência de sair do Iraque".

Tudo isso pode ser pura imaginação otimista, porque o complexo militar-industrial-de segurança não irá jamais abandonar de bom grado o principal nó das Bases do Império.

Mais importante ainda é o fato de que o ambiente pós-Soleimani transcende a Soleimani.

O Eixo da Resistência - Teerã-Bagdá-Damasco-Hezbolá, em vez de colapsar, continua a ser reforçado.

Internamente, e ainda sob sanções de "pressão máxima", o Irã e a Rússia irão cooperar para produzir vacinas contra a covid-19, e o Instituto Pasteur do Irã irá  co-produzir  uma vacina com uma empresa cubana.

O Irã, cada vez mais, se solidifica como o nó central das Novas Rotas da Seda no Sudoeste da Ásia: a parceria estratégica Irã-China é constantemente revitalizada pelos Chanceleres Zarif e Wang Yi, o que inclui o turbinamento por Pequim dos investimentos geoeconômicos em South Pars, o maior campo de gás de todo o planeta.

O Irã, a Rússia e a China irão participar da reconstrução da Síria - que incluirá também, futuramente, um novo braço da Rota da Seda: a ferrovia Irã-Iraque-Síria-Mediterrâneo Oriental.

Tudo isso é um processo interligado, em andamento, que nenhum fogo do inferno conseguirá queimar. 

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