Governabilidade e correlação de forças
A correlação de forças não muda apenas com articulações palacianas com vistas à aprovação de medidas paliativas para amenizar o sofrimento da população
A eleição de Lula foi um alívio para todos que ainda guardam um mínimo de humanidade na alma. Evitamos uma ditadura e aplacamos as atrocidades que vinham sendo praticadas e se aprofundariam caso Bolsonaro fosse reeleito.
Em menos de um ano, os programas de combate à fome e de moradia foram restabelecidos, a inflação está controlada, o desemprego caiu, voltamos a realizar campanhas de vacinação, estamos combatendo o genocídio dos povos indígenas, reduzimos o desmatamento da Amazônia, enfim, diminuímos a intensidade da violência da extrema direita, que já havia saído do controle por ter encontrado legitimidade e estímulo no governo anterior. O ar ficou um pouco mais respirável.
A despeito de todo esse alívio, o que as forças progressistas, sobretudo a esquerda, devem se perguntar é se, nesse primeiro ano, o governo deu sinais efetivos de estar preparando o país para mudanças estruturais e sustentáveis ou se está irremediavelmente capturado pela teia da paralisia ditada pela correlação de forças atual, amplamente favorável ao neoliberalismo.
A ampla maioria da população vive uma grande expectativa de mudanças urgentes e profundas. Sem elas, poderá ficar ainda mais vulnerável a compensações no terreno das crenças e mitificações, operadas por manifestações religiosas fundamentalistas e por representações políticas autoritárias e violentas.
A governabilidade é uma arte que Lula domina como poucos. Ele demonstrou isso em seus dois primeiros mandatos. Mas, em uma correlação de forças desfavorável, a estabilidade de um governo comprometido com os interesses populares precisa estar a serviço de um programa e de uma estratégia político-econômica capazes de acumular forças para transformar medidas emergenciais e superficiais em rupturas estruturais. Não pode ser um fim em si mesma.
A governabilidade paralisante, que impede avanços correspondentes minimamente às expectativas geradas no processo eleitoral e que produzam melhorias significativas e duradouras, pode ter um efeito contrário ao esperado e criar as condições para a queda do governo. Se não pela interrupção do mandato, pela derrota do projeto político no próximo ciclo eleitoral.
A experiência nos alerta para as consequências brutais da ausência de medidas estruturantes e politicamente viáveis quando se está diante de oportunidades históricas. Muitas chances foram perdidas em nome da governabilidade. Mudanças necessárias deixaram de ser realizadas por avaliações equivocadas de que desestabilizariam o governo. O excesso de cautela fragilizou o projeto progressista, abrindo brechas para o golpe de 2016 e para nefasta operação Lava Jato, responsável pela interdição da candidatura de Lula em 2018 e pela ascensão do fascismo no Brasil. Esse padrão parece se repetir agora no terceiro mandato de Lula.
São notórios o ambiente hostil e as adversidades geradas por um Congresso de maioria ultrarreacionária. Em um cenário como esse, o governo tem mesmo que negociar e negociação implica ceder parcelas de poder e abrir mão do alcance mais largo de determinadas medidas. A questão que se coloca é sobre o limite das concessões e com que armas o governo se senta à mesa para negociar com as forças da extrema-direita e da direita liberal, sobretudo com aqueles que representam o grande capital financeiro e agrário.
Por enquanto, Lula tem mostrado, além de seu carisma e habilidade, apenas a arma dos votos que o elegeram. Com a margem pequena de diferença para o candidato fascista e com a continuidade da divisão política na sociedade, esse cacife não tem se revelado muito efetivo para fazer valer o programa de governo vencedor e muito menos para a preparação de um terreno propício a mudanças do modelo econômico atual, que mantém a esmagadora maioria da população refém dos interesses das oligarquias nacionais e estrangeiras. Ainda que saibamos que a força vencedora nas urnas não é necessariamente suficiente para governar, outra pergunta que devemos nos fazer é se o poder do voto deve ser reduzido ao ato de votar ou se tem potencial para ser ampliado e transbordado do processo eleitoral.
Nesse primeiro ano, o governo passa a impressão de ter se tornado presa fácil das forças reacionárias, apesar dos pequenos avanços obtidos. Um exemplo é a nomeação de um Procurador Geral da República que representa, ironicamente, uma forte ameaça à governabilidade que se pretende preservar. Por que Lula se sentiu impelido a nomear um procurador geral conservador, identificado com o bolsonarismo, com DNA claramente golpista, tendo representado o Ministério Público na Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos e negado o reconhecimento da responsabilidade do Estado sobre a morte de opositores ao regime militar?
Outro exemplo é a adoção de um arcabouço fiscal que impõe ao povo uma meta de déficit zero e praticamente mantém o teto de gastos, enquanto centenas de bilhões de dinheiro público são drenados para o sistema financeiro todos os anos. O governo propôs essa meta fiscal sem mover uma palha para questionar a legitimidade da dívida pública, quando há fortes indícios de que grande parte dela é ilegítima ou fruto de operações temerárias realizadas para favorecer a burguesia rentista.
Mesmo transferindo todos os anos, para um grupo seleto de instituições financeiras, parcela considerável da riqueza nacional produzida socialmente, em forma de juros, a dívida não para de crescer como uma bola de neve que só será dissipada quando for tomada a decisão de revogá-la, se não no todo, pelo menos em sua maior parte.
O arcabouço fiscal aprovado pelo Congresso não será capaz de promover um crescimento sustentável da economia, com estímulo à produção geradora de valor agregado e indutora do desenvolvimento. Os empregos formais gerados em 2023 não têm natureza estruturante, assim como os que serão criados em 2024. O país precisa de um choque de investimento público na ordem dos trilhões para proporcionar um crescimento distributivo e de longo prazo.
O governo não tem sido capaz de enfrentar de forma efetiva a política monetária em curso. Recusou-se a trabalhar pela destituição do presidente do Banco Central, Campos Neto, mesmo depois de formar maioria no Conselho Monetário Nacional, único órgão com poderes para submeter ao Senado a exoneração do dono de offshore que dita a taxa referencial de juros no país. Optou por aguardar o fim do mandato do nomeado por Bolsonaro e preposto do capital financeiro, enquanto a classe trabalhadora sangra com doses ínfimas de corte na Selic. Não seria o caso de, ao menos, jogar a responsabilidade da política monetária contracionista para o Senado?
Não é possível acreditar na aposta de que a arrecadação vai crescer a ponto de proporcionar um investimento minimamente capaz de gerar emprego e renda no montante que a população precisa para sair do sufoco. O baixíssimo investimento público e a taxa real de juros, que ainda é a mais alta do planeta, configuram uma bomba relógio que pode explodir na metade do mandato de Lula. E quem estará no cargo de Procurador Geral da República será Paulo Gonet.
Outra fonte de ameaça não enfrentada pelo governo, com o argumento da correlação de forças desfavorável, está na comunicação pública. Negligenciar a democratização da mídia novamente, deixando as concessões de radiodifusão nas mãos dos monopólios familiares, mesmo diante de flagrantes descumprimentos de preceitos constitucionais e legais, e as plataformas de streaming ditando os algoritmos reacionários da extrema direita não seria o mesmo que se deixar beijar pela morte?
Concluindo a enumeração do comportamento conformista do governo (há muitos outros exemplos), incluo a intocabilidade das Forças Armadas. Não se tem notícia de um programa mínimo de reestruturação doutrinária e de mudanças nos postos de comando para incorporar oficiais legalistas e progressistas, contrários ao dogma anticomunista e golpista que domina as instituições militares secularmente. E, ainda, não se vislumbra, considerando as informações disponíveis, que os militares de alta patente, da reserva e da ativa, envolvidos com a tentativa de golpe em 8 de janeiro serão punidos, como manda a lei.
O equívoco que tem marcado as experiências de governo liderados por Lula e o PT é o de interpretar a correlação de forças como um fenômeno estático ou que só é capaz de mudar pelo acúmulo de forças dos setores populares exclusivamente pelas vias institucionais. E mais especificamente pela via eleitoral. Com essa lógica, o governo continua perdendo oportunidades inestimáveis de usar os pequenos pedaços de poder conquistados para impulsionar a única energia capaz de dar sustentabilidade a mudanças estruturais: o magnetismo do povo organizado. Sem organização e mobilização popular, nem mesmo as políticas compensatórias emergenciais são sustentáveis.
Lula está certo em seu entendimento de que é necessário, na atual composição dos poderes da República, se articular com as forças conservadoras para aprovar leis que permitam pequenos avanços. Mas ao apostar exclusivamente na articulação por cima, com os setores econômicos e políticos dominantes, o governo demonstra ignorar os ensinamentos da história recente do país, oriundos da própria experiência em mandatos anteriores.
O Poder Executivo pode lançar mão de instrumentos legais para envolver o povo em decisões importantes, contribuindo, assim, para desenvolver uma cultura de participação e organização. Refiro-me a mecanismos como conselhos e comitês populares deliberativos e plenárias temáticas organizados em níveis locais, regionais e nacional. Além de propícias à formação política e à organização popular nos espaços de moradia e de trabalho, instâncias como essas produziriam decisões que legitimariam iniciativas do governo e exerceriam um peso enorme sobre o Congresso Nacional. O plebiscito e o referendo também são formas importantes de participação popular e, mesmo só podendo ser convocados por Decreto Legislativo, deveriam fazer parte das estratégias políticas do governo.
Esses mecanismos podem contribuir decisivamente para um processo de acumulação de forças capaz der influenciar as instituições, principalmente se forem articulados com políticas públicas nos territórios que dialoguem diretamente com a realidade concreta e cotidiana das populações periféricas dos grandes centros urbanos e das áreas rurais do país.
A incidência do Governo Federal nesses territórios por meio de políticas macro e microeconômicas mais ousadas que as atuais e de forma articulada com a criação de canais efetivos de participação decisória como fruto do debate e da ação coletiva, dinamizadores da formação política democrática e transformadora, são os únicos meios de combater o poder neoliberal que tem buscado refúgio no fundamentalismo religioso e no autoritarismo político para se viabilizar.
A energia popular traduzida nos votos recebidos por Lula no contexto específico da última eleição possui potencial gigantesco para alterar significativamente a correlação de forças atual, desde que se criem espaços extra eleitorais para que ela se manifeste. O tempo necessário para isso acontecer é imprevisível, mas certamente teria impulso precioso se o governo tivesse um projeto político efetivo nesse sentido.
Não podemos negar o papel central na organização popular das entidades do movimento social e sindical e dos partidos de esquerda, que não devem confundir apoio ao governo com subordinação nem insistir no erro de abdicar da luta cotidiana do povo para se dedicar exclusivamente às disputas eleitorais. Mas é preciso reconhecer que, diante da crise estrutural do capitalismo brasileiro, um governo de caráter progressista e comprometido historicamente com os trabalhadores tem responsabilidade inegável e poder de contribuir de forma decisiva para a organização e mobilização dos trabalhadores, seja por meio do fortalecimento das entidades tradicionais seja na construção de novas formas de organização.
A correlação de forças não muda apenas com articulações palacianas com vistas à aprovação de medidas paliativas para amenizar o sofrimento dos segmentos vulneráveis da população. Tampouco exclusivamente por meio de um sistema eleitoral estruturado para garantir maioria no parlamento dos representantes do poder econômico. É preciso dinamizar a energia do povo, seu desejo por participação decisória e sua capacidade de organização. Do contrário, em vez de acumularmos, perderemos força e viveremos um novo e ainda mais profundo ciclo de retrocessos.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

