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Denise Assis

Jornalista e mestra em Comunicação pela UFJF. Trabalhou nos principais veículos, tais como: O Globo; Jornal do Brasil; Veja; Isto É e o Dia. Ex-assessora da presidência do BNDES, pesquisadora da Comissão Nacional da Verdade e CEV-Rio, autora de "Propaganda e cinema a serviço do golpe - 1962/1964" , "Imaculada" e "Claudio Guerra: Matar e Queimar".

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Governo caçava boi no pasto e, consumidora, repórter em galeria da ZS-RJ

Denise Assis, do Jornalistas pela Democracia, critica a alta do arroz e compara-a à alta dos preços da carne durante da ditadura militar. "O governo Bolsonaro ganha apoio para instituir uma medida tão inútil quanto perigosa, para debelar a ganância dos produtores e a própria incompetência", afirma

(Foto: Vidal da Trindade/Jornal do Brasil/1986)
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Por Denise Assis, para o Jornalistas pela Democracia 

Naquela sexta-feira, 16 de outubro de 1986, tal como agora, o desabastecimento de produtos da cesta básica do brasileiro estava na ordem do dia. Com a diferença que, desta vez, é o arroz o “desaparecido” da vez. Ingrediente da mesa do brasileiro em geral, mas principalmente da mesa do pobre. Naquela época, o quadro era ainda mais agudo, do ponto de vista “político”. Faltava ela, o arremate das refeições da classe média: sua excelência a carne.

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No Rio, o dia amanheceu nublado, com temperatura de 18° – onde se mede a mínima, no alto da Boa Vista -, podendo chegar a 30°, na Zona Sul. Ultrapassou. Na verdade, ferveu.

A manchete do Jornal do Brasil: “Governo endurece e pega boi no pasto”, não traduzia o mau humor da família Nascimento Brito para com o que estava acontecendo na economia. O recado estava no editorial, onde o diário esbravejava: “o confisco é uma vergonhosa arma autoritária, posta a serviço dos que confundem os sinceros interesses de toda a nação brasileira em reencontrar a estabilidade e o crescimento econômico”. E, na chamada de página da editoria de economia, voltava aos rigores da notícia: “Governo desapropria 2 mil bois em três fazendas”.

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Em destaque, a fala do ministro da Fazenda, Dilson Funaro, “não haverá abundância de carne”, admitiu, mas satisfeito, contabilizava: “nós fomos buscar 2 mil bois e trouxemos 2 mil bois”.

Depois de recolher os ruminantes das fazendas Mosaico, da família Volpan, no Paraná; na Campeiro, em Citrolândia (MS) e na Urubupungá, em Itapura, interior de São Paulo, de Sérgio Nardelli, (parente do ministro Funaro), o diretor da Polícia Federal de então, Romeu Tuma, fez coro com o ministro, num balanço positivo da operação: “o governo provou que tem condições operacionais de realizar a desapropriação do gado. Agora o próprio produtor fará com que a situação volte à normalidade”.

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Qualquer semelhança com a realidade atual, e o pedido para que os empresários do ramo de supermercado sejam “patriotas”, não é mera coincidência. Era fim do período autoritário, com um governo indicado de forma indireta, por meio do Colégio Eleitoral (um arranjo da época) e, com o presidente “escolhido”, Tancredo Neves, morto, José Sarney presidia o país por imposição do general Otávio Medeiros. Agora temos também a influência dos militares engarupados no Planalto, e no comando da Economia um truculento (e isolado) Paulo Guedes. O que gosta de colocar granadas no bolso dos servidores.

O governo Bolsonaro ganha apoio para instituir uma medida tão inútil quanto perigosa, para debelar a ganância dos produtores e a própria incompetência. Os primeiros, cuidaram de embarcar toda a produção para o exterior, aproveitando a alta do dólar. E Bolsonaro, não fez estoque regulador. Os Procons ensaiam intensificar a fiscalização e a limitação da venda de produtos por consumidor. No Rio os agentes da instituição identificaram um aumento de 37,38% na venda do arroz, se comparados ao preço de agosto.

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Além do confisco dos bois no pasto, como a escassez grassava, nos açougues do Rio em 1986, a ordem era que fosse vendido apenas um quilo de carne por pessoa, supondo-se que cada um representasse uma família. Mas tem sempre os “espertos”. No açougue de uma galeria em Laranjeiras, (ZS), onde uma fila serpenteava pela calçada, a dona de casa Lucia Souza Catha, colocou a mãe na fila e, dando a volta pelos fundos do açougue, comprou duas sacolas cheias até o topo. Um dos funcionários do estabelecimento informou à repórter que vos fala, do acontecido. E ainda deu o nome: “é a D. Lúcia”.

Dei a volta, não sem antes alertar o fotógrafo, Vidal da Trindade, para fazermos o flagrante. E, de fato, lá estava ela, com a mãe e as duas sacolas. A mãe tratou de sair de fininho, alertada pela filha. Enquanto Lúcia partiu para cima da repórter, tentando arrancar-lhe das mãos o bloco de anotações. Bem treinado na correria da ditadura, Vidal da trindade não perdeu tempo em apartar a agressão. Sabia que mais importante, naquele momento, era registrar o delito. Munido da sua F2 tratou de captar o flagrante, enquanto o motorista, o sempre atento Joãozinho – era um ruivo baixinho – chamava o PM que mantinha a tranquilidade da fila, lá fora.

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A minha vista turvou, diante da ameaça de ficar sem o meu bloco de laudas. Tentava tirar a mão daquela exaltada, do meu cabelo, que ela insistia em puxar – ainda bem que estava preso em um rabo de cavalo – e de me equilibrar, para não voar sobre uma bicicleta que eu nem vi, mas estava estacionada na cena. Tivesse eu falseado e teria me esparramado pelo chão. O barulho do motor da máquina de Vidal da Trindade me trouxe à razão. Não podia me deixar arrastar para uma “briga de rua”. Conversei com o guarda que se prontificou a nos acompanhar. Resultado: fomos todos parar na 9ª DP, no Catete (bairro vizinho). Lúcia foi autuada pela agressão. E, por fim, o delegado de plantão, depois de nos servir uma água, para acalmar os ânimos, confidenciou para mim, na saída: “absurdo. A senhora trabalhando, e tendo que interromper a sua atividade por causa dela, que estava totalmente errada. Vou chamá-la aqui, na próxima semana, para ela também interromper seus afazeres e perder tempo”. Agradeci. Era o que me cabia.

Não. A foto do Vidal da Trindade não foi publicada. Claro que o elegante jornal da condessa Pereira Carneiro não podia exibir cenas de “baixaria” que envolveu a sua equipe, numa rotina de trabalho. Ficou entre os meus guardados, como uma lembrança divertida daquela máxima: jornalista não é notícia. E não é mesmo. Diante da magnitude do que estava ocorrendo na manchete do dia, a cena do cotidiano carioca, no fundo de uma galeria qualquer da Zona Sul do Rio de Janeiro, hoje não é nem uma foto na parede. Está dentro de uma caixa e na lembrança revivida com a crise do arroz, agora divorciado do feijão, a dupla brasileiríssima.

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