Guerra (de narrativas) na Ucrânia: em quem acreditar?
É verdade que a Ucrânia institucionalizou milícias neonazistas, mas a Rússia abriga alguns dos maiores núcleos de extrema direita do mundo
Marco Aurélio Barreto Lima - Advogado, mestrando em Filosofia do Direito pela PUC-SP e pesquisador do Núcleo de Políticas Públicas de Segurança e Direitos Humanos
Alvaro de Azevedo Gonzaga - Professor de Direito da PUC-SP e Pós-Doutor em História dos povos Indígenas pela UFGD. Autor do livro Decolonialismo indígena (Editora Matrioska)
A delicada situação envolvendo os países fronteiriços da antiga Cortina de Ferro se rompeu, sendo a Ucrânia o palco atual dos embates que restaram da Guerra Fria. A anexação da península da Criméia, em 2014, já anunciava com bastante clareza as intenções russas para a manutenção de sua posição de controle militar e econômico na região, mas aparentemente o “mundo foi pego de surpresa” com uma investida sobre Kiev.
Fato é que, desde os anos 1990, com o fim da União Soviética, os conflitos “proxy” (ou por procuração) foram paulatinamente reclassificados pela doutrina política, na tentativa de diminuir o tamanho da Rússia no cenário internacional. Crimeia, Geórgia, Kosovo, Iraque e Afeganistão foram tratados quase como eventos isolados, sem se dar a devida importância para um cenário global que surgia.
A Rússia mantém o mesmo regime desde 2000, intercalando momentos de maior diálogo com o Ocidente e de escaladas no tom com que interfere ou se posiciona nos assuntos de política internacional. Não houve um movimento sério de desarmamento do país e, ao mesmo tempo, Moscou tem dado ultimato atrás de ultimato sobre até onde aceitaria que fossem expandidos os limites sobre o seu poder desde que a OTAN aceitou o ingresso de ex-repúblicas soviéticas (como Estônia e Lituânia) ou países na zona de influência (como Eslováquia e Polônia).
Quando o cão rosna, late e mostra os dentes, se surpreender com a mordida parece pueril e pouco crível.
Essa falsa surpresa corrobora com a percepção de que a guerra de propaganda teve início antes mesmo da invasão militar. De um lado, Rússia alega que estaria tentando proteger seus cidadãos em território ucraniano e livrar o país da nazificação. De outro, a OTAN afirma que a Rússia estaria praticando crimes de guerra e trazendo de volta o conflito para um mundo que experimentava a paz desde a 2ª Grande Guerra.
O sujo falando do mal lavado.
É verdade que a Ucrânia institucionalizou milícias neonazistas em suas forças armadas, como o infame Batalhão Azov, mas a Rússia abriga alguns dos maiores núcleos de extrema direita e adoradores hitleristas do mundo, número que só cresceu nos governos Putin. De outro lado, achincalhar Moscou internacionalmente como se estivesse trazendo a guerra de volta ao tabuleiro ou praticando uma política intervencionista anacrônica é ignorar que EUA e OTAN têm adotado as mesmas estratégias sem qualquer censura.
A guerra de narrativas não se resume às alianças bélicas. A Inglaterra pressiona a Europa para confiscar e estatizar bens de aristocratas russos, que acabam transferindo seu capital para paraísos fiscais (em ilhas britânicas) ou de volta à Londres (esta última, sempre irrigada por capital moscovita). Já no Brasil, o conflito motivou a tramitação prioritária do PL 191/2020, que busca legalizar o garimpo e a extração mineral criminosa em reservas ecológicas e terras indígenas, além de proporcionar sansões épicas, como a troca de nome do Moscow Mule para Kiev Mule.
Em tempos dominados por grandes corporações de redes sociais, a artilharia é pesada quando o assunto é propaganda. A Meta, empresa que controla Facebook, Instagram e WhastApp, por exemplo, resolveu flexibilizar suas políticas de condenação ao discurso de ódio, permitindo posts que pediam a morte de russos. Quando suas redes foram usadas, contudo, para convocar manifestantes a atacarem a propriedade de oligarcas russos, a empresa voltou atrás imediatamente.
Nesse campo minado, não podemos perder de vista os valores que nos guiam.
É essencial que se condenem as mortes e a destruição da Ucrânia, assim como os interesses russos de intervirem num Estado soberano, passando por cima do povo ucraniano. Imperativo também que se defenda um combate intransigente aos grupos neonazistas, seja em território ucraniano, russo, norte-americano ou brasileiro. Supremacistas brancos e ultranacionalistas não têm espaço na Democracia.
Ao mesmo tempo que condenamos as políticas intervencionistas russas no leste europeu, também devemos denunciar a hipocrisia dos EUA, França e Inglaterra, que mantém intervenção direta ou apoio a grupos armados na Síria, Iraque e Sahel. A guerra nunca esteve longe do tabuleiro da política internacional, como tentam fazer parecer, apenas longe o suficiente dos centros de poder.
Também devemos tomar cuidado com o apoio às sanções econômicas, expurgos e boicotes. Essas formas de pressão internacional, às vezes associadas ao “soft power”, costumam recair de forma muito mais dura sobre os trabalhadores e o povo pobre, que enfrenta a fome e a degradação econômica enquanto as oligarquias e os governos centrais sobrevivem por décadas.
O papel das lideranças democráticas numa sociedade complexa e global é buscar a paz e a autodeterminação dos povos, sem deixar-se manobrar por interesses alheios e espúrios.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

