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Leonardo Avritzer

Professor de ciência política na UFMG

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Guerra, democracia e soberania

"É possível ser de direita e anti-imperialista: uma análise das ações de Vladimir Putin na Ucrânia", escreve Leonardo Avritzer

(Foto: Deutsche Presse-Agentur GmbH)
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Por Leonardo Avritzer 

(Publicado no site A Terra é Redonda)

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Inicio este artigo dizendo que a Ucrânia tem o direito de ser soberana e que a guerra em curso ali será uma das grandes tragédias históricas deste século, que já vem se mostrando como um século da anti-democracia. Corre-se, agora, o forte risco de essa característica se expandir na direção da anti-soberania e da negação dos direitos de autodeterminação dos povos.

Tudo isso está em jogo neste momento de invasão da Ucrânia pela Rússia. Porém, vale a pena lembrar de que não existem santos nessa história. Se Putin é o vilão maior ao declarar a guerra total à Ucrania e atacar suas maiores cidades, o Ocidente não tinha motivo para romper com toda a estabilidade construída a partir do tratado de Yalta, no qual tanto Roosevelt quando Churchill concordaram com uma divisão de áreas de influência que gerou a estabilidade do pós-guerra. A ação por parte daquilo que se denomina Ocidente – artificialmente, como nos lembra Edward Said – com o objetivo de isolar a Rússia no extremo leste da Europa está gerando um desastre sem precedente desde o final da Segunda Guerra.

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Vejo no campo da esquerda um conjunto relativamente amplo de intelectuais fazendo a identificação de que ser antiocidental equivale a ser de esquerda. Nada mais falso. E Vladimir Putin parece ser a maior prova disso. Há alguns anos, o historiador norte-americano Timothy Snyder escreveu um excelente livro quase com nenhuma repercussão no Brasil. O livro, denominado The Road to Unfreedom, inicia-se com a descrição da trajetória de um desconhecido intelectual russo do século XX chamado Ivan Ilyin.

Talvez por azar de ter nascido no século errado, Ilyin, que escreveu um livro nos anos 1920 sobre o papel conservador da Rússia na ordem internacional, propunha um regime político que celebrasse três elementos: a prevalência da violência sobre a ideia de lei; a prevalência de um líder forte com relação mítica com o seu povo e, não menos importante, a ideia de que a globalização é uma conspiração (Snyder, 2018:16). Ilyin poderia ser apenas mais um autor obscuro cujas ideias eventualmente coincidem com conjunturas específicas, mas, conforme nos mostra Snyder, Putin fez questão de reabilitá-lo. Ilyin faleceu na Suíça nos anos 1950 e Putin organizou a transferência do corpo e seu enterro em Moscou, em 2005.

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Em 2006, o líder russo citou Ilyin em seu discurso para a Assembleia do Parlamento e, em 2010, ao explicar por que a Rússia deveria desafiar a União Europeia, Putin citou-o novamente. Temos, assim, a questão que interessa para analisar a crise atual: Putin quer desafiar a União Europeia e os Estados Unidos usando para essa empreitada uma tradição russa de extrema direita.

Vale a pena aqui, também, qualificar o estranho processo de transformação da Otan pela grande mídia em uma instituição de defesa dos direitos e da democracia. Se é no mínimo duvidoso que exista uma correspondência completa entre Ocidente e democracia, não é duvidoso que a expansão da Otan para leste tenha tido qualquer efeito democrático. Pelo contrário, parece claro que Hungria e Polônia se encontram em franco processo de desdemocratização com fortes violações de direitos de minorias e até mesmo questionamentos abertos à ideia de direitos humanos, tal como ocorreu recentemente em decisão da Suprema Corte polonesa (https://www.ibanet.org/Rule-of-law-Polands-highest-court-challenges-primacy-of-EU-law).

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Assim, temos na verdade uma disputa de hegemonia territorial entre a Otan e a Rússia, na qual o povo ucraniano está sendo submetido a um massacre, liderado por um presidente que acha que o impacto das suas falas nas redes sociais é mais importante do que está acontecendo com o seu povo nas cidades bombardeadas.

Enquanto isso, o papel da Otan e do Pentágono parece ter definitivamente mudado: o que vemos são alguns generais velhinhos comentando nas redes socais uma guerra que eles não se dispuseram a enfrentar. Fica evidente, assim, o colapso de elementos centrais da aliança da globalização neoliberal: redes sociais e grande imprensa parecem achar que a guerra está sendo travada no seu próprio campo, enquanto a Rússia avança na conquista de cidades ucranianas usando padrões clássicos da guerra do século XX.

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Completa essa figura patética o bloqueio do acesso dos bancos russos às operações via Swift.  Os mesmos estados que desregulamentaram as operações financeiras sob controle dos Bancos Centrais acreditam que bloquear essas operações irá mudar o panorama, no mundo das criptomoedas no qual três entre os seis maiores bancos são chineses.

Ao final, a única punição efetiva que os russos sofrerão por essa guerra deve ser a perda do controle de alguns times de futebol europeus. O resto se limita ao campo da retroalimentação entre redes sociais e uma mídia autorreferenciada.

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Tudo isso aponta para a questão do fim da hegemonia norte-americana e de como ela irá ocorrer. Vivemos um momento de fim do império americano e provavelmente da hegemonia global anglo-saxã que se iniciou em 1815. De um lado, vivemos nos últimos vinte anos dois processos que marcam esse fim. As derrotas militares americanas nas guerras que os Estados Unidos travaram no Oriente Médio apontam para o esgotamento do conceito de um Exército com superioridade tecnológica possibilitando um baixo engajamento de pessoal. Nas duas ocasiões, apesar de a derrota do inimigo ter sido rápida, algo que os velhinhos do Pentágono de plantão nas redes sociais cobram de Putin, a organização posterior dos derrotados foi o que determinou o resultado. Tudo indica que os exércitos da Rússia e da China não operam nessa lógica.

Em segundo lugar, contribui para a perda de hegemonia dos Estados Unidos a destruição da sua base industrial e sua substituição pela financeirização desregulamentada de empresas de alta tecnologia. É esse novo complexo, resultado dos consensos de Washington e da California, que parece liderar a reação à invasão da Ucrânia. A pergunta que deverá ser respondida ao longo da guerra da Ucrânia é a maneira como a China, muito mais cautelosa que a Rússia, irá entender o resultado dessa guerra.

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