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Roberto Bueno

Professor universitário, doutor em Filosofia do Direito (UFPR) e mestre em Filosofia (Universidade Federal do Ceará / UFC)

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Haddad no Roda Viva: a serenidade fria

"Haddad expôs com clareza a crítica aos ajustes econômicos, que invariavelmente são impostos em desvantagem dos trabalhadores, nunca suportados pelo andar de cima, militares inclusive", escreve o colunista Roberto Bueno. "A esquerda não pode permanecer fria em face de dezenas de milhares de trabalhadores mortos", acrescenta

Fernando Haddad (Foto: Reprodução)
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Na qualidade de alto quadro do Partido dos Trabalhadores (PT), o ex-Ministro da Educação com longos e bons serviços prestados ao país, e também na condição de ex-candidato à Presidência da República, Fernando Haddad foi convidado para participar do programa Roda Viva, da TV Cultura de São Paulo neste dia 6.07.2020. A linha editorial do programa vem sendo construída com a perceptível participação da jornalista Vera Magalhães, cujo papel durante o golpe de Estado de 2016 contra a população brasileira encarnada no mandato de Dilma Rousseff foi notável especialmente em suas intervenções na paulistana empresa JP.

É certo que desde aquele momento do golpe de Estado a mídia corporativa realizou movimento de invisibilização completa do maior partido de esquerda do Brasil, o PT, bem como de outros situados no espectro progressista, em aberto desrespeito não apenas à pluralidade como aos seus compromissos legais enquanto concessionários e, mesmo, constitucionais, com os fundamentos do Estado democrático de direito. Haddad pontuou correta e insistentemente, que na sua qualidade de competente Ministro da Educação, mesmo com a queda recente de três ministros da Educação, não foi chamado a avaliar. Correto. Mas se a esquerda tem sido afastada do debate público na grande mídia corporativa e até mesmo de veículos de menor audiência como as cadeias de comunicação públicas, de que é exemplo a TV Cultura, cabe questionar o que devemos esperar quando um legítimo quadro do campo popular ocupa tais espaços? Podemos esperar a repetição de discursos como o de Camilo Santana (elogiado diretamente por Vera Magalhães durante a entrevista com Haddad) na edição de 08.06.2020 do mesmo Roda Viva?

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A bancada não se mostrou agressiva como em tantos outros casos ocorreu quando os convidados são personalidades políticas representativas das capas populares. O conjunto de jornalistas demonstrou propensão a não realizar as abruptas interrupções que, por exemplo, caracterizaram a entrevista concedida por Manuela D´Ávila na condição de candidata a Vice-Presidência na chapa com Haddad. A pauta e os encaminhamentos críticos orientados às tendências de direita foram a regra, e mesmo em tempos em que o triunfo final da extrema-direita é uma opção concreta figuras da imprensa seguem coerentes com o projeto de destruição do país.

Haddad mencionou a campanha da Folha de São Paulo (FSP) em apoio a democracia destacando que o faz em vista do risco a que se encontra exposta mas, questiono, se o foco adequado não seria destacar que o jornal põe campanha na rua pela democracia contra governo fascista cuja eleição apoiou, assim como praticamente toda a mídia corporativa. A campanha da FSP significa pouco mais do que evitar pancadaria e tiros na rua e torturas nos calabouços, mas sem opor-se a manutenção da alta taxa de mortalidade imposta pela asfixia econômica ao estilo do pinochetista Paulo Guedes. É este o projeto da esquerda nacional? É possível que os parcos espaços ocupados na imprensa pelo PT não centrem a sua atenção em temas como este?

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Nos primeiros momentos da entrevista Haddad foi questionado se inseriria Sérgio Moro no rol dos democratas, sondando entrelinhas a possibilidade de que a seu juízo pudesse compor frente democrática. Haddad tergiversou minutos, ondeou, percorreu vias paralelas, até levar a jornalista Magalhães a repetir a pergunta. Haddad hesitou muito para responder objetiva e rapidamente que, como advogado, observou que Moro utilizou o cargo para começar a sua vida pública, o que não seria compatível com um democrata. Foram contados 15 segundos para uma necessária resposta que mereceria atenção e muito espaço.

Sendo esta a resposta que propôs “como advogado”, a audiência ficou privada de saber a avaliação de Haddad sobre Moro na condição de político que o levou ao programa, se seria possível incluir o ex-juiz e ex-ministro do regime neofascista no campo democrático. Silêncio. Moro é nefasta figura na vida nacional que desmarcou-se publicamente do regime neofascista sem abjurar das suas próprias crenças neofascistas. Moro continua sendo o que sempre foi e o levou ao Governo, ainda dispondo de franja de apoio popular de incautos seduzidos pela imagem do justiceiro que carrega a espada do bem e da virtude na terra de corruptos, razão suficiente para que Haddad se detivesse neste ponto. A esquerda não abriu mão do combate contra as figuras neofascistas que todavia colonizam o imaginário de segmentos populares, mas parece hesitar em fazê-lo quando dispõe de acesso aos meios de comunicação corporativos.

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Haddad expôs com clareza a crítica aos ajustes econômicos, que invariavelmente são impostos em desvantagem dos trabalhadores, nunca suportados pelo andar de cima, militares inclusive, e eis aqui um momento de titubeio, pois deveria ter deixado clara a extensíssima lista de favores que as Forças Armadas vêm recebendo, de todos os tipos, cargos, favores, prebendas, aumentos sucessivos de vencimentos, exclusão da reforma da previdência, em suma, um cenário que bem desenha a tentativa de cooptação para projeto de poder particular. Haddad adequadamente enfatizou que os protegidos de hoje no Brasil, como sempre, são os habitantes do andar de cima, e os desfavorecidos, os do andar de baixo, mas não deixou claro para a audiência o que isto significa em termos de números, não lidou com a doação de R$ 1.5 trilhão para os bancos (que não realizam os empréstimos para drenar a economia em tempo de crise profunda) enquanto dificulta ao extremo a liberação de R$ 60 bilhões para socorrer famílias carentes, e tampouco chamou a atenção para o fato de que com aproximados R$ 300 bilhões o Governo poderia paliar o sofrimento de gente que hoje tem a existência ameaçada, garantindo até o final do ano, mensalmente, R$ 600,00. Foi extremamente tímido neste particular, embora tenha adequadamente Haddad reivindicou o legado do PT em sua nobre tarefa de incluir os pobres no orçamento público.

Questionado sobre o surgimento de liderança política petista oriunda da carreira militar na Bahia, Haddad declarou não opor-se às corporações e nem aos militares no Governo, afirmando que poderiam participar de eventual Governo progressista. Esta participação teria como pressuposto técnico que as carreiras de Estado não podem participar do Governo, exceto se estiverem na reserva. Sem embargo, isto implica apenas defender a legislação. Para Haddad, o critério para a participação de militares no Governo deve ser apenas o mérito pessoal auferido por avaliar quais são os seus compromissos, saber o que pensam, se aderem aos propósitos filosóficos que orientem Governo progressista. Independentemente da correção dos pressupostos e, mesmo, da posição teórica de inclusão de militares no Governo, é de questionar a oportunidade de direcionar a reflexão por este caminho, mesmo porque não foi apresentado o tema nestes termos, vale questionar se, considerada a restrição de tempo que impediu, por exemplo, pautar a gravíssima questão racial brasileira que impede a conclusão de qualquer projeto democrático, caberia empregar espaço para ressaltar a participação de militares no Governo precisamente neste grave momento histórico de expansão do militarismo no Brasil em que eles seriam o suporte para golpe de Estado.

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Em face da insistência sobre a “renovação” de lideranças no PT que mal ocultam a tentativa de isolar Lula e retirá-lo do processo eleitoral no qual tem grande força, quando instado, Haddad apresentou o reconhecimento pessoal e do partido quanto a consolidada posição de liderança de Lula em face de seu trabalho ao longo de anos mas, abrindo frestas, destacando que a sucessão de lideranças é lenta. A série de óbices autoritários ao desempenho da liderança política de Lula não foi alvo da atenção de Haddad, não foi pautado de forma incisiva que a retirada de Lula do processo é mais do que o grave cerceamento dos direitos políticos de uma importante figura, mas o cerceamento de muitos milhões de cidadãos de expressarem a sua preferência política, em suma, que se trata, como o professor de ciência política Haddad bem sabe, de uma interdição ao processo democrático que inviabiliza o próprio conceito de democracia. É grave para ser relegado a segundo plano no debate público.

O sistema de justiça não foi alvo da crítica de Haddad, mesmo quando já fosse possível esperar que a pauta do programa não contivesse tal tema. Seria imprescindível aproveitar o momento político em que o tucano de alta plumagem José Serra foi denunciado pela Lava Jato de São Paulo para chamar a atenção do tratamento desigual da imprensa que já praticamente sumiu com a notícia, e também chamar a atenção para a extensa listagem de fatos e contas com altos valores ligados ao tucano, chamar a atenção para o Rodoanel, Paulo Preto etc., além do hoje esquecido Aécio Neves que insinuou a possibilidade de matar pessoas para ocultar a prática de delinquência financeira. Como silenciar neste tema quando o PT é tomado como alvo e exemplo-mor de corrupção e que deve desculpas e autocrítica em praça pública? É na ágora midiática o momento de assestar crítica ao adversário político e esclarecer a população quem realmente tem contas milionárias no exterior e como, depois, internaliza estes recursos para o paraíso dos altos juros construído em favor dos rentistas, cenário a que o tucanato brasileiro quer manter preso o Brasil. Haddad não mostrou interesse em expor a corrupção do PSDB e do falso centrismo quando justamente a pecha de praticar corrupção é imposta ao PT.

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O tema da corrupção tampouco foi acionado e conectado à família Bolsonaro e aos achegados aos atuais ocupantes do poder nem mesmo quando a jornalista Vera Magalhães insistiu no tema de que durante a administração petista gente se corrompeu e até devolveu dinheiro. Haddad admitiu que ocorreram casos de corrupção e, notadamente, gente da direção da Petrobrás o fez, mas tantos outros altos cargos de dentro e de fora não o fizeram e nenhuma relação tiveram com o caso, conforme restou comprovado no Poder Judiciário. Os grandes corruptos, disse, acumularam 100 milhões de dólares no exterior, e ao Presidente Lula, a ele, como suposto chefe da quadrilha, lhe teria supostamente tocado um “apartamento-muquifo no Guarujá”. Haddad foi certeiro ao relacionar a absolutamente despropositada escala de grandeza, descabida, sem dúvida, entre o suposto chefe da quadrilha e os quadrilheiros, pois nada restando provado ter sido recebido por Lula na qualidade de suposto chefe, então, lhe foi atribuído um sítio. Tema central para a compreensão popular, teria sido necessário enfatizar para atrair a atenção do público. Sem ênfase, o tema passou como mais um dentre outros temas do programa, quando aquele era ponto central a ser sublinhado.

Dentre alguns outros temas, assim transcorreu uma hora cheia, além de mais alguns minutos. Em meio a terrível pandemia o Ministério da Saúde não foi pauta, mas citado uma única vez para realizar a contabilidade do número de dias em que se encontra sem um titular. A pandemia foi citada para analisar o seu impacto econômico, terrível, em diversos países, assim como no Brasil. Haddad recordou que teria sido correto adotar o fechamento de tudo (lockdown) como foi feito em outros países para, logo, retomar as atividades econômicas com segurança, garantindo menores prejuízos à economia. A pauta era economia. O veto do Presidente Bolsonaro à obrigatoriedade do uso de máscaras foi citado, e Haddad manifestou perplexidade, incredulidade e desconhecimento quanto ao que se passa na cabeça de uma “pessoa tão desequilibrada como Bolsonaro”, e que há tantos por aí ainda sustentando “tolerância” com o Presidente. Ao redor de quatro minutos durou esta difusa atenção ao tema da pandemia. Foi tudo. Realmente não espero que a extrema-direita nutra empatia ou manifeste sequer desconforto com o quadro de devastação humana que vivemos, mas e a esquerda? Como aceitar que durante mais de uma hora não tenha sido utilizado tempo adequado para tomar como eixo a única pauta possível neste momento, vale dizer, a orientação de Governo de convicções e práticas fascistas que estimula a produção de mortes em profusão na casa das dezenas de milhares?

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Frio, gélido, menos que temperado, moderado e centrado. Indiferente não foi o caso, mas incisivo, jamais. Pergunto eu, isto sim, incisivamente, e não para Haddad, mas para toda a bancada de entrevistadores do programa Roda Viva: Como tiveram a ousadia de tratar de política no Brasil com dezenas de milhares de cadáveres que se acumulam como se não houvesse amanhã (geladeiras lotadas e covas sendo cavadas sem parar, já com tratores!) praticamente sem referência a este genocídio? Enquanto canal público de televisão financiado por contribuintes cujas vidas se encontram em risco, como a empresa permitiu-se pautar tema político desta ordem sem reservar amplo espaço para analisar junto a uma das mais expressivas lideranças do principal partido de oposição qual a orientação sobre o momento e quais são as alternativas oferecidas pela agremiação para a matéria.

Não me causa estranheza que a mídia nacional silencie quanto a real dimensão do genocídio do povo brasileiro, escala de grandeza que tampouco procura investigar e trazer à luz, pois é muitíssimo superior ao que é anunciado pelo Ministério da Saúde. Não causa surpresa a posição da grande mídia corporativa posto que historicamente manteve olímpica indiferença relativamente à sorte da população e ao desenvolvimento do país, apenas retratando e protegendo o malévolo espírito de sua plutocracia. Contudo, causa superlativa estranheza que o campo progressista ocupe o já escasso espaço na arena midiática e adote posição extremista de elegância, deixando entender a audiência eventualmente desatenta, que há certa indiferença quanto ao sangue que escorre pela rua. O preparo para o diálogo na arena midiática implica proximidade com o povo, e nestes dias não há outra prioridade senão a exposição de toda a população à morte.

A cada dia a falsa contabilidade oficial informa a perda de mais de mil vidas. Não é possível acatar a pauta jornalística da extrema-direita travestida de centrista que hoje mostra recato, suposta vergonha relativamente à política de seus colegas de caminhada hoje no poder e causadores de milhares de morte. É a mesma extrema-direita que quer lavar as mãos de sangue para poder assinar os documentos do próximo pleito sem deixar marcas. Querem desembarcar do projeto falido para legitimar-se em falsos diálogos.

Quando a esquerda se fizer presente arena midiática é imperativo que faça sentir aos responsáveis o peso de sua responsabilidade pelas dezenas de milhares de mortes que já ocorreram e das muitas que ainda prantearemos os que nos importamos com gente e humanidade. Isto não pode ser tratado com leveza e nem como equívocos políticos e que em nome do pragmatismo precisamos virar a página. Não há página virada para homicidas, e nem para genocidas, e o Brasil se não aprendeu, deveria aprender desta vez: o campo progressista não poderá virar página enquanto todos e cada um dos componentes desta administração não forem levados a julgamento. O campo progressista precisa fazer a comunicação com o povo brasileiro, e não pode hesitar a cada momento em que dispõe de espaço na arena midiática.

O partido que é dos trabalhadores não pode permanecer frio, gélido ou empalidecer quando é chegado o momento de assumir as mais graves responsabilidades históricas. Não podemos discutir pleitos quando não há leitos, cargos quando há cadáveres, urnas quando há urnas fúnebres. Os mais altos quadros do campo progressista não podem hesitar quando um genocídio está em curso, exceto se ainda não estão plenamente esclarecidos ou convencidos do que está em causa.

A esquerda não pode permanecer fria em face de dezenas de milhares de trabalhadores mortos, e se o fizer, será ela tocada pela gelidez enrijecida de cada um deles, destituindo-a da pulsante energia de que originariamente dispõe para a sua empresa de defesa das liberdades, dos direitos, da democracia e da Constituição. Graves os dias, mas ainda vivemos a calmaria que precede o caos. A esquerda não pode permanecer gélida enquanto o humano arde.

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