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Carlos Castelo

Jornalista, sócio-fundador do grupo Língua de Trapo, um estilo sem escritor

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Homo tossiens

Com o passar do tempo, o organismo dos sobreviventes virou dependente de poluição, e isso levou a uma sofisticação da nova língua baseada no defluxo

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Foram 25 longos anos de poluição nos níveis máximos. Nuvens plúmbeas faziam negras revoadas pelo planeta semimorto.

As ruas pareciam o palco de um show de heavy-metal - só fumaça. Os rios tinham mais espuma que um copo de Malzebier quente. A impressão que se tinha, ao andar numa calçada, era a de estar numa sauna finlandesa em que, por distração, fora colocado no vaporizador excremento, em lugar de essência de eucalipto. 

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No princípio, as pessoas não se adaptaram ao efeito estufa. Para ser mais estatístico, 95% da população mundial morreu. Os 5% que restaram tiveram de resolver alguns problemas - além de pagar o condomínio e achar uma vaga na Zona Azul. O primeiro deles, após sobreviver, foi evitar respirar. E creiam, isso não foi fácil. Porém, a própria seleção natural - e também os escafandros, adquiridos pelo pessoal da Classe A Gargalhada - incumbiu-se de eliminar os 4,9% dos incompetentes que não conseguiam deixar de arfar. O 0,1% de população mundial que não sucumbiu reuniu-se para formar um novo país. 

Depois de muita reflexão, decidiu-se que utilizariam, para a comunicação, a única coisa que havia em comum entre eles: a tosse. 

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Uma tossidinha passou a significar "sim", duas tossidinhas "não". Foi o que primeiro se convencionou. 

Depois veio - três tossidinhas para "sexo", e quatro tossidinhas para "não, hoje estou com dor de cabeça". Cinco e seis tossidinhas passaram a querer dizer, respectivamente "pra que time você torce?" e "isto é um assalto!". 

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Com o passar do tempo, o organismo dos sobreviventes virou dependente de poluição, e isso levou a uma sofisticação da nova língua baseada no defluxo. O conjunto de 38 tossidas semifusas somado a uma sutil fungada podia ter diversos significados. Frases mais complexas - do tipo "você está irritantemente behaviorista hoje, querido" - ou mesmo livros de Jacques Lacan podiam ser vertidos para o idioma da tosse. No entanto, como sempre, havia aquele grupo espírito-de-porco que acreditava que os espirros representavam melhor a "fala" humana àquela época. 

"A tosse é um engodo, é uma imposição autocrática. O espirro, este sim, representa nosso momento sócio-cultural-poluente”. 

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Logo depois, fundariam um partido de oposição. 

Era inegável que, apesar de ainda rudimentar para a comunicação, a tosse fazia o grupamento progredir. Imaginem que a primeira coisa que fizeram foi eleger uma Assembleia Nacional Constituinte! Pena que a segunda coisa que fizeram foi um golpe militar. 

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Dizem que a intervenção aconteceu porque a Carta Magna aprovou uma lei que criava um país independente para os que adotassem o espirro como idioma. 

O novo regime, todavia, não conseguiu evitar que a facção Espirro ocupasse uma área resoluta ao lado do País da Tosse - fundando ali a República Provisória do Espirro - e passasse a promover diversos atos terroristas contra seus primos irmãos. 

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O País da Tosse, apesar de viver sob estado de sítio, procurava desenvolver-se. No campo científico, chegaram a inventar motores mais poluentes que os do jipe Toyota movido a diesel. Eles garantiam à população os índices da bronquite asmática vitais à sobrevivência. No campo cultural, produziram um clássico da poesia épica, "Os Tossíadas", que, em dez cantos, narrava a saga da construção do País da Tosse. No esporte, em modalidades de aviação esportiva como as esquadrilhas da fumaça, eram imbatíveis. 

O pouco que se sabia da República Provisória do Espirro era que a junta de governo investia maciçamente em agricultura. Toda a população participava no processo de plantação, colheita e beneficiamento do principal produto agrícola do país: o rapé. Se havia uma tecnologia avançada, como no País da Tosse, era um mistério. Aliás, mistério era a especialidade da República Provisória do Espirro. Tudo lá era muito enrustido. 

Anos depois, entretanto, os tossistas puderam perceber que o país vizinho não estava tão atrasado assim. 

Era madrugada. Ninguém notou que um avião espirrista penetrara o espaço aéreo do País da Tosse. Essa distração foi fatal para os adeptos do defluxo. Na calada da noite, o avião largou bem em cima de seu evoluído país uma bomba letal, com conteúdo mais mortífero ainda: xarope de agrião. 

Nesse dia, eles viram o que era bom pra tosse.

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