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Luis Pellegrini

Luís Pellegrini é jornalista e editor da revista Oásis

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Humanos em falta, máquinas em excesso: psicoterapia e IA

Milhões já preferem confessar suas dores em lamúrias intermináveis feitas a um chat de inteligência artificial

Humanos em falta, máquinas em excesso: psicoterapia e IA (Foto: Dragos Condrea/Freepik)

A imagem é familiar: alguém diante do computador, tarde da noite, digitando desabafos para um assistente virtual. O que antes seria motivo de estranhamento - conversar com uma máquina sobre dores íntimas - tornou-se comportamento cotidiano para milhões de pessoas. Em menos de dois anos, chats de inteligência artificial deixaram de ser curiosidade tecnológica para se tornarem um dos canais mais utilizados de apoio emocional leve. A pergunta que se impõe é inevitável: estamos testemunhando a substituição gradual dos psicoterapeutas humanos?

A resposta simples é “não”. A resposta complexa diz algo muito mais profundo sobre o estado psíquico da sociedade contemporânea e sobre a metamorfose da própria ideia de cuidado.

Há algo profundamente simbólico no ato de abrir um chat de inteligência artificial às duas da manhã para desabafar. No silêncio da madrugada, diante de uma tela iluminada, milhões de pessoas recorrem a um sistema digital para confessar suas angústias mais íntimas - não a um amigo, não a um terapeuta, mas a um algoritmo treinado para soar empático. Esse fenômeno, tão recente quanto explosivo, diz menos sobre o avanço da tecnologia e mais sobre a erosão das relações humanas.

Não, a psicoterapia não está sendo substituída. Estamos é substituindo o encontro humano pelas versões mais convenientes e indolores dele. A IA não disputa espaço com psicoterapeutas; disputa conosco mesmos, com nossa capacidade de suportar vulnerabilidade diante de outro ser humano real.

Os chats de IA oferecem o que o mundo contemporâneo parece incapaz de fornecer: disponibilidade total, acolhimento instantâneo, zero julgamento. Num cenário de solidão epidêmica, longas filas por atendimento em saúde mental e vínculos frágeis, a escuta algorítmica encontra terreno fértil. Não porque seja melhor - mas porque é mais fácil. E o fácil, hoje, virou critério existencial.

O problema não é que conversamos com máquinas; é o que deixamos de conversar com pessoas. A chamada “empatia sintética” é um simulacro de cuidado: palavras cuidadosamente calibradas, tom compassivo, respostas que parecem humanas, mas sem a presença, o risco, a responsabilidade e a ética que definem uma relação terapêutica verdadeira. Não há processo clínico, não há vínculo, não há olhar. O que há é uma ilusão confortável de compreensão instantânea.

Transformamos o sofrimento em dado. A intimidade virou insumo para sistemas que aprendem nossos medos com a mesma frieza com que categorizam nossas preferências de consumo. E fazemos isso voluntariamente, porque dói menos entregar nossa fragilidade a uma máquina do que expô-la a outro ser humano - sujeito, imperfeito, imprevisível.

Mas o custo dessa substituição silenciosa ainda não está claro. Que tipo de sociedade emerge quando seu maior confidente é um algoritmo? Uma sociedade que terceiriza a dor também terceiriza a lucidez. Sem fricção, sem contradição, sem a presença humana que tensiona, incomoda, devolve, desafia - não há maturidade emocional, só conforto emocional. E conforto, sozinho, nunca curou ninguém.

A psicoterapia não vai desaparecer. Ela é irredutível porque exige aquilo que nenhuma máquina possui — presença, corpo, história, vulnerabilidade mútua. O que está desaparecendo, isso sim, é a nossa disposição para esse encontro real. Não é a IA que está colonizando o território mais íntimo da vida humana; somos nós que o abandonamos primeiro.

O avanço tecnológico não é o inimigo. O inimigo é a tentação de substituir a relação pelo simulacro, a escuta pelo reflexo, a dor por um texto bem formulado. A urgência do nosso tempo não é aprender a lidar com a IA. É reaprender a lidar uns com os outros.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.