Impunidade e crueldade: o regime da visibilidade perversa
Quando formos às ruas, estaremos tocando em mais do que uma nervura ética marcada pela lógica bandida de pequenos egos ou de quadrilhas
Após a condenação da cúpula golpista, novas manobras da direita buscam romper com a tênue legalidade que vem se dissolvendo. A partir deste domingo, uma onda de repulsa levará às ruas milhares de pessoas para protestar contra a PEC da blindagem, apelidada de PEC da bandidagem. Mas o que ela blinda, além dos crimes cometidos por parlamentares? Ela protege a pulsão genocida, o direito de agredir, matar, saquear e destruir, que vem sendo considerado uma “liberdade” pela razão cínica, a qual age para assegurar a possibilidade de continuar governando por meio da violência, da tortura e do ódio, sem temor às consequências.
Há muito tempo, a liberdade foi deslocada pelos cultuadores da venda de indulgências, que também fazem apologia da tortura e vivem da brutalidade nas relações pessoais, conseguindo estendê-las de forma truculenta ao abrigo dos espaços de poder. Estimulam o abuso da força e premiam aqueles que se mostram mais eficientes em saquear os cofres públicos, impondo seu comando por meio do contágio de sua ferocidade, utilizando o preconceito e cultuando ideologias que cimentam uma lógica de capatazes, sicários e carrascos.
O declínio da ordem moral não provém de comportamentos desviantes ou diversos, mas da incivilidade que se tornou um valor moral do bolsonarismo e de forças congêneres, pela ação abjeta contra a soberania popular e os direitos inscritos na Constituição. Essa incivilidade também acentua a servidão voluntária como um ingrediente que reflete uma suposta vontade divina. O resultado é que o rebanho se reconhece no êxito dos algozes, daqueles que buscam abrigo à sombra dos poderosos, prestando-lhes todas as honras e se preparando para mais uma onda de crimes, de banhos de sangue considerados “construtivos”, indispensáveis para reproduzir nosso regime de apartação social, racial e de gênero.
Mobilizamo-nos para um protesto que tem como objeto a institucionalização do regime de exceção por meio de legislações que se formam sem abandonar os processos de gerar um ambiente de violência e guerra. Esse ambiente impede que encaremos de frente o pior de todos os crimes, o mais infame dos crimes de Estado: a tortura. Esse crime, que deveria ser objeto da maior condenação, é o resultado e a amarração necessária de todas as ações e processos mórbidos, de todo o abuso protegido, de toda a crueldade aberta, do impulso punitivista e da fúria generalizada.
A tortura, reconhecida como exemplo, perverte e protege as marcas escravistas, o desmando e toda sorte de práticas corruptoras. Há uma relação estreita entre as formas oligárquicas e patriarcais de nosso capitalismo e a subjetividade estreita de quem lança cruzadas e “pogroms”. O gozo punitivo e o crime de Estado sem disfarces, como o que ocorre em Gaza, legitimam aqueles que se animam com o poder de torturar e matar. Alguns cometem esses atos para manter grandes e pequenos privilégios; outros, para se sentirem amparados e compensados em relação a recalques e estigmas, buscando se identificar com os que se beneficiam no poder. Assim, milhões de pessoas apostam nessa via como uma forma de compensação que lhes permite agir contra seus iguais.
O cinismo e a falsidade, à sombra do negacionismo, amplificam a força da desmedida. O nexo lógico entre o crime da tortura e o direito de matar, extraindo uma falsa verdade do suposto inimigo, alimenta a covardia e o desmando. O fascismo atual não se mascara, como por vezes fazia o totalitarismo no passado. A nova face desse processo é de completo desvario, que celebra a violência trumpista, busca emular o golpe e festeja decisões espúrias com orações. As forças liberadas pelas vitórias de Bolsonaro impedem que o país se dedique à urgência de criar políticas de juventude, ações de educação e cultura, políticas de reparação e justiça social, racial e ambiental que confrontem o poder de controlar e saquear territórios e o uso da violência física e psíquica. Essas práticas sustentam novos regimes de dominação pelo medo e de governo pela morte, como mostram os números que afetam a composição demográfica de nossa população.
Não seremos um país de idosos precarizados e sem direitos apenas por conta da curva clássica das culturas urbanas modernas e do neoliberalismo. Seremos um país de jovens com corpos e subjetividades destroçados pela barbárie, muito além do fator demográfico observado em outras sociedades. A exceção e o excesso são parte de um novo ciclo de encarceramento e aniquilamento aberto desde 2016.
Quando formos às ruas, estaremos tocando em mais do que uma nervura ética marcada pela lógica bandida de pequenos egos ou de quadrilhas. Estaremos afirmando nossa recusa ao falso segredo em torno de nosso enigma, aquele que implica a repetição de um crime colonial, que não por acaso vibra com o retorno histórico de uma esquadra do poder neocolonial. Esse poder busca legitimar o que o 8 de janeiro não conseguiu, ao insuflar os quartéis para mais um ciclo de terror de Estado na vida nacional.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




