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Rogério Puerta

Engenheiro agrônomo, atuou por doze anos na Amazônia brasileira em projetos socioambientais. Atuou em assentamentos da reforma agrária no Distrito Federal por dez anos e atualmente vive em São Paulo imerso em paixões inadiáveis: música e literatura. Escreveu diversos livros

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Incômodo: a perda de tempo...

Poderia ser você, que acha que nunca vai fazer besteira na vida, ou que se fizer nunca vai ser preso. Torça para ser bem branco

(Foto: Salvador Dalí)
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Atrapalha, rouba o seu sossego sentir que perdeu um tempo enorme de vida. Poderia ter curtido vivenciar o crescimento de filhos, marcar em beiral de porta da casa as linhas de altura do guri a cada seis meses. Poderia já falar o idioma que sempre quis. Já concluir o cômodo acima da laje, que vai trazer mais conforto e espaço. Tanta coisa.

A pandemia roubou o tempo de muita gente, parece que houve condenação a dois anos de pena, regime semiaberto, condenação que impedia você de usar o tempo da melhor forma possível, em plenitude. Agora a busca por recuperar o prejuízo. Dois anos, entre os 16 e 18, ou entre os 65 e 67, representam uma enormidade. Tempo que se dilata, nos prega peças e confunde. Tão bom houvesse máquina do tempo, um ajuste, um apertar de comandos e acionar manivelas, e pronto.

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Há. Para o futuro, até o momento impossível para o passado. Comprovável, matemático. Embarque em dispositivo que se desloque na Terra em velocidades próximas a da luz. Dentro desta cápsula o tempo passará mais lento, você lá dentro contou semanas e ao desacelerar e desembarcar passaram-se meses.

Recuperar tempo, prejuízo, refazer fibra muscular, mais antigamente aos nórdicos acumular no corpo a gordura para enfrentar o rigoroso inverno.

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Povo sedento, faminto. Poesia que não damos o devido valor. "A gente não quer só comida, quer comida, diversão e arte. A gente quer prazer pra aliviar a dor". Uns Titãs já nos disseram. O povo cairá pra cima da vida tal qual abelha ao mel. Carnaval, futebol, show de música, balada na noite, o que for, o que vier.

Mara é uma ex-presidiária. Diz ela: "Mancha que me acompanhará, me prejudica, puxam meu nada consta e aparece lá, ainda que seja por crime de menor potencial ofensivo. Dois anos e meio na Colmeia, perto de Brasília, fiquei o último ano em semiaberto. Paguei a pena, saí de lá pior, muito pior, a cabeça zoada, um princípio de diabetes precoce, marmita de lá que era só arroz e macarrão".

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"Vinte e quatro anos, perdi o que dizem serem os anos mais intensos, ainda para uma mulher, perdi desde os quase 22 anos, eu no auge da disposição. Digo perdi mesmo, pois não levo nada de bom da prisão".

"Fiquei obsessiva, penso dia e noite em recuperar, descontar, me enlouquece pensar que joguei no lixo quase três anos, minha obsessão, todo o foco é em recuperar o tempo perdido. Não fiz filhos, foi por pouco, abortei certa vez, não havia outra opção, decisão difícil, então sem filho minha atenção total é em recuperar o tempo".

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"Sempre morei com a mãe, não tinha grana pra aluguel, eu, preta, jovem, nunca tive oportunidade de trabalho ou estudo. Minha mãe está bem, melhor até que eu, então não demanda atenção. Em casa, no meu tempo ausente, veio um primo distante, terceiro grau. Minha tia chegou um dia e avisou que ele viria. Não gosto dele. Chiquinho é mais velho que eu, 30 e poucos, mas parece ter 40. Olheiras fundas, olhar amarelado e caído, sempre jeito de fraco, alcoólatra, já esteve pior, minha mãe disse. Não gosto dele. Ele que venha com saliências comigo que lhe esmurro a cara".

"Tenho raiva, ódio mesmo, por este tempo perdido, às vezes me faz enlouquecer e eu começo a querer brigar com filhinho de papai mimado na rua, mas me contenho, voltar à cadeia jamais, prefiro morrer. Meu crime não foi agressão. A casa de minha mãe é pequena, o primo distante dorme com meu irmão, eu no quarto com mãe e irmã, um banheiro só, quando cruzo com o primo evito o olhar, prefiro até almoçar no domingo fora do que ter de sentar na frente dele, mas minha mãe preza muito o almoço de domingo, então fico por respeito a ela".

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"Por mim eu ia morar sozinha, alugar um quarto pequeno, que não dê trabalho. Aqui em casa tenho que cuidar, lavar banheiro, cozinhar, ajudar os irmãos quando eles consertam algo na alvenaria. Semana passada foi o telhado, casa de periferia só de bloco sempre dá trabalho. Por mim eu ia morar em lugar que dê menos trabalho. Cada conserto que tem de fazer, este tempo que passo ajudando, acho que é mais tempo perdido, quero usar cada minuto, cada hora para fazer algo de mais útil. Botei na cabeça que a única forma de deixar um pouco de ser preta de periferia é tentar estudar pra ser respeitada. Porque só respeitam preto quando é estudado, que nem aquele sujeito no tribunal superior de nem sei o quê".

"Passar um tempo na cadeia marca pra sempre, dizem. Mudou-me muito. Antes, no meu trabalho, eu vira-e-mexe brincava com cliente, dizia quando eles não queriam assinar algum recibo: 'Parece que é fugido da Justiça'. Nunca mais falo isso. Lá dentro da cadeia soube o quanto as mulheres passam a ter receio de assinar o que quer que seja, muitas disseram que quando estavam pedidas, procuradas, tinham de inventar assinaturas e nomes falsos".

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"Também não brinco mais quando chamo alguém, gritando até, e a pessoa diz não escutar. Isto ocorre muito aqui na periferia, se chama da porta, gritando alto, e nada. Aí eu falava, 'como pode não escutar?'. Só que na prisão a gente aprende que muita gente toma coisa pra dormir, aí fica uma gelatina, difícil de acordar, mesmo com barulheira. Pra dormir não usavam muito na cadeia, tomavam pra ficar doidona mesmo. Lá é quase impossível alguém não acordar quando se chama, porque é tudo fechado, ecoa, e aí se alguém grita dentro da cela só falta tremer o cérebro da dorminhoca".

"Lá se toma muito remédio controlado e muito álcool, pra sair um pouco da rotina e acalmar. Depois que eu saí não lembro de quase nenhuma noite quando consegui dormir direito sem remédio pesado. As noites são terríveis, acho que nunca vou me adaptar, há gente que diz que nunca mais conseguirá dormir direito depois de alguns meses nas noites na prisão, onde dizem que se dorme com um olho aberto e outro fechado, sempre meio alerta".

Esta é Mara. Mara poderia ser você, que acha que nunca vai fazer besteira na vida, ou que se fizer nunca vai ser preso, nunca reagirá com sangue quente a uma provocação à esposa, nunca cairá na malha fina do Imposto de Renda, nunca atrasará pagamento de pensão. Torça para ser bem branco, lhe cobrarão cestas básicas. Se você for preto e mal-encarado lhe botam logo no xilindró porque algo por detrás na ficha haverá. O que dizem.

Pensar positivo é uma autodefesa, sobrevivência, imperativo cerebral. Pensemos. Mesmo em terras arrasadas se constrói. Assim ocorreu mundo afora, revoluções, em sentido de mudança brusca. Mudemos. Os obreiros e arquitetos de um mundo pós-pandemia estão a nossa frente, no dia a dia. Talvez nossa geração já esteja estragada, contaminada, o coração intoxicado, bílis afoita. Que seja então esta galerinha que mal se lembrará de 2020, herdarão um mundo com ainda mais cicatrizes, mas não guardarão rancor, nem muita dor. Que a galerinha de dez anos de idade, algo assim, tenha atenção redobrada, triplicada, mais livro físico, mais atividade lúdica, excursão aos museus, às feiras de determinadas profissões.

Será possível? Ou a força das mídias digitais é tão implacável que sequer ainda nos demos conta mensurar?

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