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Vitor Paiva

Escritor, jornalista e músico. Redator e jornalista do site Hypeness, colaborou com publicações como Jornal do Brasil, Revista Bundas, O Pasquim 21 e mais

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Infeliz da nação que não celebra seus heróis

Com todo respeito e admiração à obra do genial dramaturgo alemão, algo sempre me incomodou na célebre frase de Bertolt Brecht imortalizada na peça “A Vida de Galileu”, que sacramenta como infeliz a nação que precisa de heróis

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Com todo respeito e admiração à obra do genial dramaturgo alemão, algo sempre me incomodou na célebre frase de Bertolt Brecht imortalizada na peça “A Vida de Galileu”, que sacramenta como infeliz a nação que precisa de heróis. Reproduzida fora de contexto aos borbotões pelos bares e artigos como este que vos fala, há algo na afirmação, entre o excesso de rigor e um idealismo que paradoxalmente a torna afirmação ingênua, que sempre me expeliu de sua evidente contundência. É claro que no mundo ideal Brecht está certo, mas trata-se de pragmatismo tão inclemente, de realismo tão resoluto, que ela por fim parece se tornar ilusão. Quando a realidade enlouquece, a razão se torna pouco – e infeliz da nação que não celebra os heróis que possui: os heróis de que, feliz ou infeliz, tanto precisa. 

Na vida real os heróis se dão para além de necessidades previamente calculadas – no calor de urgências súbitas, e se afirmamos que não precisamos deles é possível que a voz dessa nação em verdade esteja um tanto amordaçada e silenciada. Vale, pois, questionamento essencial: o que é essa tal nação a que nos referimos com tranquilidade? Em que Brasil pensamos quando falamos? Tenho no próprio Brecht, tão alemão, um herói de estimação – um herói da minha nação, de um Brasil maior do que certas bandeiras sobre as quais atualmente o país definha. O Haiti é aqui. O Haiti não é aqui. 

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E, afinal, o que é ser herói? Se na mais pedestre e juvenil definição o herói é aquele que salva a vida de inocentes, então todo artista popular é um pouco um herói: nas profundezas de nossas individualidades ou nos abismos que enfrentamos enquanto povo, a arte é capaz de nos iluminar uma saída e nos lembrar, em especial no caso do Brasil, da grandeza que a nação sim possui – e aqui chegamos nas reluzentes capas e espadas que protagonizam esse fluxo modesto que, entre lágrimas, tenta dar conta da sombria realidade: a partida do ator Flávio Migliaccio e do poeta Aldir Blanc. 

Migliaccio era um grande ator – um artista brasileiro em cena, levando o que de melhor podemos esperar do nosso país para o palco, para as telas, para a TV por décadas a fio. Mas, imenso, ainda assim não somente: era também um exímio cômico – um comediante precioso, mestre em área que tanto exige quanto oferece inteligência. O (melhor) humor não é somente veículo de sabedoria, mas também de denúncia da opressão, do horror, do trágico, da desigualdade – através da mais visceral e franca gargalhada. Migliaccio era nisso referência, e descansa certo de seu importante quinhão em qualquer felicidade ou inteligência nacional que ainda nos reste.

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Já os versos de Aldir são o mais próximo que tivemos de uma “Grândola Vila Morena”, canção do brilhante compositor português Zeca Afonso, utilizada como senha para a Revolução dos Cravos entre os soldados revoltosos, tomados de liberdade. “O Bêbado e o Equilibrista” (seria esse o mais belo título de uma canção em todos os tempos?) nos contou mais sobre a ditadura e o destino do Brasil enquanto nação do que qualquer jornal, qualquer sociologia, qualquer comentário político de então. A luz de seus versos foi e ainda é capaz de reverter (como também foi a luz dos gestos e das gargalhadas provocadas por Migliaccio) a impressão quase permanente de que o verdadeiro e mais profundo projeto de Brasil é só feito de fascismo, racismo e horror: não, não é – não um país capaz de parir um Migliaccio e um Aldir. 

E também um Tantinho da Mangueira, um Rubem Fonseca, um Garcia-Roza, um Ricardo Brennand, um Daniel Azulay, um Moraes Moreira. São todos grandes, todos brasileiros, que faleceram recentemente, merecedores de um lugar cativo em nossa memória nacional – e, tragicamente, suas mortes foram gritantemente ignorados pela atual Secretaria de Cultura. Tal silêncio soa alto – como sinistras melodias da incessante sinfonia da ignorância que a atual administração parece somente saber executar. 

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Todos esses artistas seguem como heróis, reluzindo contra o horror, operando, um milagre na vida real - que segue em fúria mas, por eles, também segue em beleza: sem vida estão somente os que compactuam com esse horror. “Aquele que não conhece a verdade é simplesmente um ignorante, mas aquele que conhece e diz que é mentira, este é um criminoso”, também escreveu Brecht. Nossos heróis vivem. 

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