“Intervalos bíblicos” na educação pública – quando a laicidade escorre pelos dedos
Não se trata de intolerância religiosa, mas sim de uma defesa, esta sim intransigente, dos princípios republicanos
A foto que o leitor/a leitora do presente artigo vê acima foi tirada do meu celular na quinta feira, 8 de maio, em um dos corredores do Centro de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal de Pernambuco, espaço no qual, há mais de duas décadas, venho dialogando com meus alunos/minhas alunas sobre direitos humanos nas disciplinas por mim ministradas.
Em tais aulas, procuro refletir junto aos/às discentes sobre a importância civilizacional representada pela separação estabelecida na obra de Nicolau Maquiavel entre política e religião, Estado e Igreja – uma separação que levaria os pais do pensamento liberal, a começar por John Locke, a lançar as bases da liberdade religiosa e da laicidade do Estado, na modernidade.
Já se vão quase 5 séculos da publicação póstuma de O Príncipe de Maquiavel (1532) e mais de 335 anos do início da circulação do Segundo Tratado do Governo Civil e da Carta sobre a Tolerância de Locke (1689), e encontramo-nos no Brasil em meio a uma ofensiva de forças religiosas obscurantistas que vêm cercando os espaços de poder por meio de aproximações sucessivas.
No que diz respeito à educação pública, desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, perambulam propostas de adoção do ensino religioso nas escolas, que chegaram ao ponto da aprovação de uma lei, no Rio de Janeiro do governador Anthony Garotinho, que regulamentava o ensino religioso de caráter confessional (Lei Estadual nº 3459/2000).
Já se passaram 25 anos desta lei e, ao contrário do que afirma o ditado popular, as águas passadas continuam a fazer mover os moinhos do crescimento da “confessionalização” da vida social e política brasileira, não obstante a resistência de setores da sociedade civil e política nacional que insistem em defender o caráter laico do nosso Estado.
Pois bem, a chegada dos assim chamados “intervalos bíblicos” aos corredores de uma universidade pública federal (depois do “ensaio” em curso nas escolas públicas de nível fundamental e médio) acende o alerta para um perigoso movimento de ataque àquilo que, por razões óbvias, se encontra nos seus fundamentos estruturantes: o compromisso com a razão científica.
Ora, os fundamentalismos religiosos em geral e o fundamentalismo neopentecostal em particular têm dado uma gigantesca cota de contribuição aos negacionismos de toda ordem e à construção de barreiras à conquista de direitos dos setores subalternizados da sociedade, especialmente das mulheres e da comunidade lgbt.
Admitir tal prática dentro dos muros das universidades públicas (e das escolas públicas no seu conjunto) implica fechar os olhos em relação ao fato de que, por um lado, temos um compromisso com a laicidade, com a cientificidade, com a democracia e com o pluralismo, e, que, por outro lado, os locais de exercício da fé religiosa já são muitos e, todos eles, de caráter privado.
Não se trata de intolerância religiosa, mas sim de uma defesa, esta sim intransigente, dos princípios republicanos que devem reger os espaços públicos, com destaque para os locais de ensino, aprendizagem e pesquisa.
Não nos iludamos. O ovo da serpente já teve a sua casca quebrada. A hora é de empurrá-la de volta para o seu ninho.
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