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Marcia Tiburi

Professora de Filosofia, escritora, artista visual

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Intrusas na política patriarcal. Uma análise do fator Manuela Dávila

"O caso de Manuela Dávila merece atenção. Sempre foi uma figura incômoda para homens que não tinham uma milésima parte de sua competência", diz Marcia Tiburi

Manuela D’Ávila e Dilma Rousseff. (Foto: Reprodução/PCdoB)
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Há algum tempo ouvi um homem de esquerda dizer que Manuela Dávila não deveria ter falado em “violência política de gênero” no debate no qual era agredida e humilhada por seus adversários durante a disputa pela prefeitura de Porto Alegre em 2020. 

Estamos em 2023 e ela que seria uma candidata natural a qualquer cargo político, não se candidatou em 2022 para cargo nenhum. É preciso refletir sobre o que está em jogo na ausência de uma mulher tão representativa e importante para a política brasileira. 

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Na ocasião da campanha de 2020, Manuela foi o maior alvo de difamação e ofensas. Nos últimos dias da campanha, os opositores faziam desfilar um carro de som que dizia que se Manuela fosse eleita, a população de Porto Alegre passaria a comer cachorro. Falavam também que Porto Alegre viraria ‘uma Venezuela’. Clichês e absurdos como esses não são brincadeira, eles têm um efeito psicopolítico imenso sobre quem perdeu a capacidade de raciocinar e sentir. 

Homens político-partidários e seus apoiadores vêm subindo o tom, já habitualmente agressivo, contra as mulheres na política há anos. Todo o ódio - seja contra Manuela, e devemos citar Dilma Rousseff e tantas outras que ousam fazer política - torna a vida dessas mulheres, e de todas as que elas inspiram, um inferno que precisa ser superado.

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Por isso, importa entender por que, apesar de toda essa violência, alguém alega que ela não deveria ter denunciado a violência política de gênero que sofria? O que está em jogo nesse argumento?

Perguntado sobre as razões de sua fala, o homem disse, com o que parecia ser a melhor das intenções, que admirava Manuela Dávila e desejava que ela fosse eleita, contudo que considerava a estratégia de denúncia das mulheres na política algo muito ruim. Visivelmente incomodado, ele afirmou que, em vez de denunciar as violências que sofriam, as mulheres deveriam “partir para cima” como os homens sempre fizeram. A exposição da sinceridade parou por ali, mas deixou a sensação de que os homens partilham um mundo próprio no qual existe um acordo prévio pelo qual quem denuncia cai fora do jogo. A denúncia das mulheres incomoda aos homens de todos os espectros políticos, cujas armas contra as mulheres são, a propósito, sempre semelhantes. Há quem diga que extrema-esquerda e extrema-direita se unem contra as mulheres, mas é um fato que o patriarcado está sempre unido onde houver poder, inclusive na disputa patriarcal excludente da esquerda, da direita e suas circunvizinhanças. 

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De fato, apenas muito recentemente mulheres passaram a ser um fator importante no jogo político. Sabemos que a política em todos os tempos do patriarcado é coisa de homens, feita por homens e para os homens. Portanto, quando uma mulher entra na política, ela é vista como uma intrusa, ou seja, como alguém que chegou aonde não devia ter chegado. Caso essa intrusa consiga ir adiante, ela deverá adequar-se às regras, constantemente violentas, que os homens jogam entre eles. Tais regras serão sempre mais vis quando jogadas contra mulheres e corpos que possam ameaçar a ordem nesses cenários em que todo tipo de violência - física, simbólica, material decorativa - compõe o que Manuela chamou de ‘violência política de gênero’. 

O caso de Manuela Dávila merece toda a nossa atenção, como um dia mereceu o de Dilma Rousseff, até o momento aposentada da política depois de um golpe gigantesco por parte de uma aliança patriarcal e capitalista que não suportou o lugar conquistado por uma mulher chegou e nem o que ela se propunha a fazer a partir dali. Manuela sempre foi uma figura incômoda para homens que não tinham uma milésima parte de sua expressão, de sua competência, de sua inteligência, de sua liberdade, e até mesmo de seu charme e beleza. 

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De fato, já desconstruímos o mito da beleza, mas é fato também que uma mulher desejada como Manuela, desperta inveja em todos aqueles que a desejando, não a possuem ou, por outro lado, gostariam de ocupar o seu lugar. O patriarcado é uma ideologia – e uma economia-política misógina – que calcula sobre o que as mulheres podem ou não fazer e, necessariamente, miram as mulheres com olhos grandes e invejosos que veem nelas o destino da servidão doméstica e sexual ou o descarte. Marielle Franco despertava algo similar. Era a sua presença e altivez, sua liberdade, sua beleza e negritude que incomodavam. Por isso, foi assassinada por quem sabia muito bem aonde ela estava, o que estava fazendo e onde seria capaz de chegar. Anielle Franco, sua irmã, ocupa hoje o cargo de ministra da Igualdade Racial, um dos tantos cargos que Marielle poderia também ocupar se não tivesse sido assassinada por milicianos que, em tudo, são a mais definitiva expressão do patriarcado fascista e racista. 

O fato de que Manuela Dávila não tenha concorrido a nenhum cargo em 2022 é um sinal de alerta para o que está sendo feito das mulheres na política. Talvez ela tenha motivos pessoais que devem, evidentemente, ser respeitados, contudo, do ponto de vista do movimento feminista que luta por mais mulheres na política, ela é uma personagem importante demais para ficar de fora. Que ela não tenha assumido cargos no primeiro escalão do governo, pode ter motivos que desconhecemos, mas é um fato que a conspurcação e o vilipendio sofrido por ela assusta a todos. O governo atual será capaz de bancar Manuela? No cálculo político, as mulheres são rifadas facilmente. Quando muito serão úteis nas cotas devidas ou serão simplesmente descartadas e terão que aguentar sozinhas o peso que carregam. 

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O caso de Manuela nos informa que uma mulher pode ser retirada da política diante da violência que sofre. A intrusa pode ser removida por táticas de violência. Assim como vários canalhas se regozijaram em coro diante do Golpe contra Dilma Rousseff, diante do assassinato de Marielle Franco, outros tantos se sentem menos ameaçados por que, ao não disputar espaço nos cargos de decisão, Manuela não os ameaça. A ameaça, como se viu, tornou-se uma tecnologia política no machismo. Bolsonaro e fascistas assemelhados cresceram com essa tática. Ela não será abandonada tão cedo. 

A política dos homens é uma lição diária da covardia inerente ao patriarcado que explora e submete mulheres dentro e fora de casa para se manter como um sistema de privilégios. Se todas as mulheres já sofreram algum tipo de violência nesse contexto, seja racial, seja sexual, seja verbal, seja judicial, simbólica, física ou material, as mulheres que fazem política sofrem as múltiplas violências lançadas sobre seus corpos aos quais se acrescentam as violências propriamente políticas, que atingem a imagem das vítimas e todos os fatores relacionados à presença delas na esfera pública. 

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A denúncia de Manuela foi considerada um erro por um homem aparentemente bem intencionado, mas que faz parte do machismo estrutural que prefere ver mulheres fazendo violência política do que alterando o sentido da política. 

O que mulheres como Manuela Dávila fazem hoje ao denunciar a ‘violência política de gênero’ é questionar uma regra da política patriarcal em vez de aceitar o convite à violência. A denúncia incomoda não apenas porque por meio dela se expõe a violência contra as mulheres como parte do jogo político, mas por que ela vem mostrar que as mulheres não querem participar do jogo dos algozes, que elas querem a verdade. 

O que as mulheres querem em termos de poder é outra política. 

Essa ‘outra política’ só poderá existir a partir da aliança das mulheres rumo a outro projeto de país e de mundo. E se queremos outro país e um mundo mais justo e digno devemos lutar por ele juntas sem esquecer nenhuma companheira, seja Manuela Dávila, sejam todas as outras que têm histórias semelhantes enquanto vítimas da violência política de gênero. 

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