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Tiago Basílio Donoso

Mestre em Teoria Literária pela Unicamp e autor do livro no prelo “Terras Nacionais e Terras Estrangeiras”, pela editora Kotter

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“Isso é um absurdo”: como pouco a pouco percebemos que o Brasil está morto

O país não tem escolha: ou salta para o horror, ou recomeça o lento labor de se estabelecer limites. Muitos de nós já aprendemos, e ficaremos aqui, apontando nosso dedo para uma verdade vertiginosa - a de outro mundo, anunciado, com seu sorriso próprio - porém infelizmente ainda absurdo, impossível

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O absurdo se inicia conosco. É parte de nossa relação com o mundo. Os abismos que nos cercam não seriam abismos sem alguém encarando seu limiar. Sem a vertigem, o abismo está descaracterizado, e aqui a velha máxima quase irônica de que um raio sem alguém para vê-lo de fato nunca cai é verdadeira. Assim fica mais fácil entender o paradoxo da nossa responsabilidade, sem ignorar que o absurdo existe, fora de nós, mas apenas porque o apreendemos.

Estes são tempos absurdos. Mas, o que significa dizê-lo? Se remontarmos à origem da palavra, temos aquilo que é tornado surdo, mudo, destoante. Foi associada depois à falta de razão e ao ilógico. Mas, se nos ativermos ao desenrolar recente de seu significado, algo vem à tona.

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As palavras se modificam e têm vida orgânica, como que tomada emprestada de nosso aparelho fônico, de nossas vermelhas cordas vocais. Assim como qualquer vida, envelhece e por vezes morre - capaz, porém, de renascer de repente ainda com o mesmo corpo fonético. Recentemente, falávamos de “absurdo” como um adjetivo espantoso. Fomos, aos poucos, elevando a palavra ao conjunto das palavras positivas. Se disséssemos sobre um filme que era “absurdo”, provavelmente o elogiávamos.

Algo semelhante aconteceu com a palavra “absolutamente”. Poderia, em princípio, se referir tanto à ênfase de algo positivo ou negativo. “Você gosta de arroz? - Absolutamente!”, e não sabíamos a resposta, de tão evidente. O “absoluto” era arrastado de sua totalidade para pertencer momentaneamente ao “sim”, momentaneamente ao “não”, sem nunca abandonar sua força de quase coisa, do tão abstrato que se torna físico, de algo quase maior que a palavra. Passou-se o tempo e o vocábulo a substituir “absoluto” foi, ironicamente, o vocábulo “absurdo”. Algo em si significativo sobre os novos tempos.

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A depender de nossos gestos, a palavra se deslocava do positivo fixo ao negativo fixo. “Alguém fez alguma coisa errada” - absurdo. “Alguém escalou um prédio apenas com as mãos” - absurdo. Creio que houve uma lenta migração etimológica, do sentido negativo de nossos mais velhos ao sentido positivo dos mais jovens. De repente, ansiávamos pelo ilógico, pelo sensacional, pelo destoante.

Acreditamos por um tempo que essa nossa ânsia pelo absurdo era uma ânsia pelo irracional divertido. Pelo absurdo do Programa do Ratinho, do Jackass, o absurdo cômico dos desenhos animados, dos Casos de Família. Esperávamos uma onda de nonsense. Certa ironia, de referenciais perdidos, apostava no absurdo enquanto ridículo. E foi então que fomos pegos de surpresa.

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De uma hora para a outra, o Programa do Ratinho tornou-se poder. Tiririca foi seu prefaciador, nosso voto uma paródia do “creio, porque é absurdo”. Acreditávamos na perfeita equivalência entre absurdo e ridículo, em seu caráter levemente cômico e no fundo inofensivo. E então, dos fundos vertiginosos da palavra, de sua estranha vida orgânica, regressou à superfície o sentido original. O irracional não era divertido - era monstruoso. Como pudemos esquecer esse ensinamento? A falta de sentido deu lugar ao sentido da pura força, do puro poder, da opressão justificada em si mesma - na falta de algo racional ou coletivo que lhe obstasse o caminho. Foi assim que parte significativa do Brasil votou na Rede Vida! (kitsch até no nome, como se depois de dizer “Rede Vida!” se seguisse um kkkkk delirante) e recebeu a destruição que a piada apenas enunciava.

Agora, a violência acompanha a ridícula gargalhada mal encenada. O mesmo momentâneo figurante que se senta no banco de praça de Carlos Alberto da Nóbrega vai ao Rio de Janeiro e sai com uma bagagem de 29 cadáveres, carregados como porcos em lençóis. As piadas sexistas, racistas, brutais, que soavam aos desatentos como absurdo inofensivo - algo sem força, inconsequente porque sem consequência - alcançam o poder e escorrem pelos buracos e frestas hierárquicas, pelas rachaduras das inúmeras secretarias, e ameaçam erodir a argamassa da nossa utopia: sua constituição escrita, essa que faz força sísifica contra a verdadeira constituição escravocrata e brutal do país.

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Não devemos abandonar o absurdo - até porque ele não nos abandonaria com esse gesto. Ele faz parte de nosso terror, de nosso mistério, de nosso humor - sem o absurdo não há sequer conhecimento. Mas é preciso compreendê-lo melhor. Não ignorar seu teor de morte e aquilo em que se transformou. Quando não rimos mais da infâmia - quando por covardia consentíamos com o inaceitável - quando não deixamos passar o que destoa e desafina de nosso princípio utópico, do mundo onde queremos viver, então deslocamos um pouco o absurdo de volta a sua verdadeira função.

Em algum momento durante a destruição política recente o país deu um salto para dentro do abismo. O tão exaltado humor brasileiro - a piada dentro da tragédia - se tornou ele próprio trágico. Perdemos, por exemplo, a vida de um humorista verdadeiro, como nós à mercê de um torturador que graceja. Quando Bolsonaro diz “Já falei que sou imorrível, imbrochável e também incomível”, e todos riem enquanto alguém grita ao fundo “abençoadôoo”, percebemos o que há de terror no nonsense, na falta de sentido - achávamos que era engraçado porque não era nada, e agora sabemos que é em realidade a ameaça constante do Nada, da morte.

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A função do absurdo é a vertigem. O aviso visceral do limite. Podemos utilizar essa vertigem e fazer rir - quando apontamos o limite da linguagem, ou algum limite social. Podemos alterar limites esdrúxulos ao rirmos de alguns tigres de papel que se postam como terríveis, como o faz o Choque de Cultura. Mas não podemos transformar o absurdo em algo em si positivo, porque assim arrebentamos os limites necessários junto aos limites equivocados. Tanto no pré-golpe de 1964, quando a CIA documentadamente aliciou comediantes para desestruturar a democracia, como no Brasil recente, a pergunta idiota de “qual é o limite do humor?” mostra sua verdadeira face, o recurso de fazer o que de outro modo seria inaceitável - como o bullying, a ofensa que só é aceita porque pode ser confundida com brincadeira. Começa-se rindo e depois se está seriamente fascinado pelo Nada, pela pavorosa promessa de poder que está contida em destruir algo.

Agora, estamos à beira do precipício. Quem quiser pular, que pule - mas as intenções de voto da extrema direita declinam lentamente, de modo relutante, como quando por condescendência desfazemos aos poucos e sem naturalidade um sorriso forçado (este um dos motivos pelos quais não entendemos muito bem as estatísticas, já que espelham um movimento em si antinatural). Nós, o povo brasileiro, agora sabemos que é possível vender a alma por um sorriso. Aprendemos que hoje por trás do absurdo esconde-se a crua lei do mais poderoso - e não do mais forte. O país não tem escolha: ou salta para o horror, ou recomeça o lento labor de se estabelecer limites. Muitos de nós já aprendemos, e ficaremos aqui, apontando nosso dedo para uma verdade vertiginosa - a de outro mundo, anunciado, com seu sorriso próprio - porém infelizmente ainda absurdo, impossível.

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