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Domenico Corcione

Ex-professor universitário. Ex-assessor direto de Dom Helder Câmara. Longa experiência e publicações em educação popular. Consultor em desenvolvimento social/institucional, junto a OSCs e Órgãos Governamentais, em âmbito nacional

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José "Pepe" Mujica: humanismo, ética e espiritualidade laica

O que está realmente em jogo não é disputar certezas, mas compartilhar perguntas e vivências, pois perguntas abertas e vivências solidárias são revolucionárias

José "Pepe" Mujica (Foto: REUTERS/Martin Varela)

Recentemente o mundo perdeu José “Pepe” Mujica, um dos mais admirados líderes latino-americanos. Mujica foi mais que presidente do Uruguai (2010-2015). É conhecido não apenas por sua trajetória política, mas pela coerência entre palavra e prática, simplicidade de vida e defesa incondicional da dignidade humana. Ex-guerrilheiro tupamaro, Mujica passou quase quinze anos preso em condições duríssimas durante a ditadura uruguaia, período em que enfrentou isolamento extremo e provações físicas e psíquicas que marcaram profundamente sua visão de mundo. Ao deixar a prisão e - mais tarde - ao assumir a presidência do Uruguai (2010–2015), tornou-se referência mundial por sua postura ética, estilo de vida austero e suas ideias sobre liberdade, justiça social e convivência plural.

Mujica nunca escondeu sua condição de ateu. No entanto, jamais foi um cético niilista ou indiferente ao sentido da existência. Pelo contrário, o que ele propôs, em incontáveis discursos e entrevistas, foi a necessidade de as pessoas se conectarem com aquilo que realmente importa: o cuidado com a vida, a solidariedade entre os seres humanos, a harmonia com a natureza e a capacidade de sonhar e lutar por sociedades justas. Para Mujica, a ética precede qualquer doutrina e a espiritualidade não precisa de templos ou intermediários. Ela se constrói na prática cotidiana do respeito, da ternura e da simplicidade.

Algumas suas frases tornaram-se célebres, justamente por traduzirem essa espiritualidade laica: “A única coisa que você leva da vida é a vida que você leva”; ou, ainda, “Quando lutamos pela igualdade, não é para sermos todos iguais, mas para que todos tenham o direito de ser felizes à sua maneira.” Mujica cultivava a consciência da interdependência, o respeito pela diversidade e a reverência pela existência em sua forma mais despojada, distante de aparatos religiosos, mas profundamente ética e humanista.

Conhecido por morar numa pequena chácara nos arredores de Montevidéu, dispensar luxos e doar a maior parte de seu salário presidencial, Mujica ficou mundialmente conhecido como “o presidente mais pobre do mundo”, mas ele recusava este título, dizendo preferir ser chamado de “o mais livre”.

Ateu declarado e agnóstico quanto a certezas definitivas, Mujica nunca se afastou das questões de sentido, ética e espiritualidade. Para ele, o essencial não estava em religiões, mas no cultivo de valores humanos como solidariedade, liberdade, convivência respeitosa e cuidado com a natureza. Em entrevistas e discursos afirmava que o ser humano não nasceu para ser consumidor compulsivo ou servo de sistemas econômicos predatórios, mas para viver de forma simples e significativa.

“Pobres não são os que têm pouco, mas os que querem infinitamente mais, e nunca estão satisfeitos.” (José Mujica, Discurso na Rio+20, 2012)

Defensor da ecologia integral e da convivência plural, Mujica praticava o que se pode chamar de espiritualidade laica, uma ética existencial voltada à busca de sentido, à reverência pela vida e à construção coletiva de um mundo habitável para todos, sem a necessidade de recorrer a doutrinas religiosas. Para ele, o mistério da existência deveria ser respeitado, assim como a liberdade de consciência deveria ser garantida.

Afinal, seus valores dialogam diretamente com tradições humanistas, libertárias e ecológicas, e com a ideia de que é possível e urgente cultivar uma ética da solidariedade, do cuidado e da simplicidade voluntária. Mujica mostrava que o fato de não acreditar em deuses ou em dogmas não significa viver sem princípios, mas sim construir, no chão da existência, referências éticas baseadas na dignidade humana e no respeito à vida.

Em quê acreditam os ateus? - O discurso e o exemplo de vida de Mujica recolocam essa inquietante pergunta. É comum ouvir que ateus “não acreditam em nada”. Isso, porém, revela um equívoco conceitual. Ateísmo não significa ausência de valores ou indiferença à existência; expressa apenas a recusa de explicações sobrenaturais para a origem e o sentido da vida. Muitos ateus, como Mujica, defendem convicções éticas e políticas firmes, movidos pelo compromisso com a dignidade humana, a liberdade de pensamento e a justiça social.

A história registra inúmeros ateus humanistas — pensadores, artistas, líderes e militantes, que acreditaram profundamente no valor da vida humana, na ciência, na cultura e na ética baseada na convivência solidária. Como bem disse o escritor português José Saramago, outro ateu declarado: “Se podes olhar, vê; se podes ver, repara.” Essa ética da atenção e do cuidado atravessa diferentes tradições e pode perfeitamente compor o que hoje se chama de espiritualidade laica.

Espiritualidade laica, ética e ecológica - Quando se fala em espiritualidade, muitos a associam automaticamente a religiões ou crenças institucionalizadas. Mas há outra forma de espiritualidade — laica, ética e ecológica — vivida sem recorrer a deuses ou dogmas, baseada na busca de sentido, na convivência fraterna, na admiração pela vida e na consciência de interdependência. Essa espiritualidade se manifesta na consciência ecológica, na solidariedade social, na valorização da arte, da ciência, da filosofia e da pluralidade cultural, além do reconhecimento do mistério e da beleza da existência.

Estamos em tempos de carência de sentido e de referências acessíveis fora das estruturas religiosas tradicionais. Muitas pessoas se sentem espiritualmente órfãs, sem conseguir se identificar com dogmas, mas sem encontrar caminhos alternativos para elaborar seu sentido de vida fora deles. Isso pode gerar solidão e até a falsa impressão de que fora da religião não há espiritualidade possível. Mujica, com simplicidade ética e prática solidária, mostrou que é possível viver de forma profundamente espiritual sem recorrer a rituais ou divindades, mas ficando ancorado na ética do cuidado, na reverência pela vida e na fraternidade.

Essa espiritualidade laica, cada vez mais necessária, pode beber de diversas fontes filosóficas e culturais — ocidentais, indígenas, orientais. São fontes de inspiração que podem retroalimentar a verdadeira busca de espiritualidade; vale aqui citar pelo menos algumas, como um primeiro passo para se construir uma espécie de roteiro instigante que favoreça essa busca. Albert Camus, no “Mito de Sísifo (Record, 2016) destaca que “a grandeza do ser humano está em decidir como dar sentido à vida, mesmo diante do absurdo”. Michel Onfray aponta – no Tratado de Ateologia (Record, 2007) que “podemos fundar uma espiritualidade do prazer, da arte e da harmonia com a natureza, sem precisar recorrer a deuses”. Daisetz T. Suzuki, em sua obra “O Zen e a Cultura Japonesa” (Cultrix, 2007) reconhece que “a verdadeira espiritualidade é viver atento, em harmonia com a natureza e o outro”. Fritjof Capra, no “O Tao da Física (Cultrix, 2010) conclui que “tudo está interligado em uma rede cósmica de relações dinâmicas”.

Como propõe Ailton Krenak, “é hora de sonharmos outros mundos possíveis, onde caibam todos os seres”. Ou como ensina Leonardo Boff, “o destino da Terra e da humanidade é comum; ou cuidamos juntos ou pereceremos juntos.” Ela se constrói a partir da ética da solidariedade, da consciência ecológica, da busca de sentido comunitário e da valorização do conhecimento e da beleza.

A busca por um espaço de humanidade - Seria bom imaginar, só por um momento, a possibilidade de uma troca, num mesmo espaço, entre quem vive sua espiritualidade numa crença institucionalizada, quem se sente órfão dela e está ainda em busca e quem já trilha por uma espiritualidade laica, humanista e ecológica.

Essa convivência plural - num espaço seguro e respeitoso – pode se transformar em uma potência transformadora. Dessa forma, mais do que um conceito abstrato, essa espiritualidade é uma prática cotidiana de respeito, convivência plural e compromisso com a vida. E, como defendia Mujica, “não se trata de disputar certezas, mas de compartilhar perguntas e vivências”, pois perguntas abertas e vivências solidárias são, de fato, revolucionárias. 

Afinal, um dos grandes desafios é ajudar a criar um espaço de humanidade comum, de reconhecimento mútuo e, quem sabe, de apoio recíproco.

Referência bibliográfica

Segue uma referência bibliográfica – que orientou as reflexões acima - para todos aqueles que buscam compartilhar perguntas e vivências:

  • Leonardo Boff. Espiritualidade: um caminho de transformação. Vozes, 2000.
  • Ailton Krenak. Ideias para Adiar o Fim do Mundo. Companhia das Letras, 2019.
  • Leandro Karnal. O Dilema do Porco-Espinho. Papirus, 2018.
  • Albert Camus. O Mito de Sísifo. Record, 2022 (edição mais recente, em português).
  • Fritjof Capra. O Ponto de Mutação. Cultrix, 2021.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.