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Camila Ribeiro

Formada em História pela Universidade Federal da Bahia

8 artigos

blog

Julian Assange é jornalista

O que está no banco dos réus e acaba de ser criminalizado é o próprio jornalismo: o direito do público saber o que o poder faz contra o próprio povo

(Foto: Reuters | Reprodução)
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“Quando alguém diz ‘Assange não é jornalista’, eles não estão dizendo o que Assange é. Eles estão mostrando o que são.” Caitlin Johnstone

A alegação leviana e de má-fé tão propagada na mídia corporativa de que Julian Assange não é jornalista equivale a uma empreitada vergonhosa em que o jornalismo da Rede Globo e assemelhados se jogou em 2018. Quando o desembargador Rogério Favreto observou a lei brasileira e concedeu habeas corpus para o ex-presidente Lula, os jornalistas da imprensa corporativa brasileira trataram de desmoralizar sua decisão perfeitamente legal. E, para tanto, os jornalistas globais utilizaram o termo “plantonista” – um mero adjetivo que designa uma situação momentânea típica da burocracia estatal – para desqualificar o desembargador, um funcionário público formado em direito, aprovado e devidamente qualificado do judiciário brasileiro e que era superior hierárquico ao juiz Moro.

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Este é o nível do discurso dito jornalístico praticado por mídias corporativas no Brasil e em todo ocidente, “jornalismo” que não está a serviço da democracia, mas a serviço da eliminação do dissenso, através da idiotização do público consumidor passivo de propaganda disfarçada de jornalismo.

Uma vez aceito o precedente de jogar Assange numa masmorra americana, num país em que a liberdade de imprensa é firmada na constituição como fundamento da democracia, o exemplo estará posto. Na verdade, já está posto, mas piorará e muito, caso Assange seja extraditado. Basta observar os exemplos no Brasil de perseguição contra Luís Nassif, Eduardo Guimarães do Blog da Cidadania, Glenn Greenwald, contra os grupos 247 e DCM. Todos esses citados são tratados há mais de 10 anos pela imprensa corporativa como “blogueiros sujos”, mesmo que nesse grupo estejam jornalistas formados em universidades e com longas carreiras anteriores em jornais tradicionais.

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No dia em que foi publicada decisão de não extradição de Assange para os EUA, os textos de reportagens da Rede Globo ecoaram a própria linha de acusação americana: a) referem-se a Assange como “hacker” ou fundador do site (o nome ‘WikiLeaks’ quase parece palavrão expelido da boca de Bonner); b) as suas ações de jornalista são tratadas pelos verbos “roubar”, “espionar”, “conspirar”; c) a sua situação de asilado político por quase 7 anos na embaixada do Equador em Londres é citada como “Assange se escondeu” e “estava refugiado” e não como “asilado político”; d) seu sequestro em 2019 pela polícia londrina é citado como “foi preso ao deixar o prédio” e não como violação de território estrangeiro e de asilo diplomático; e) as revelações de crimes de guerra e contra a humanidade praticados pelas forças militares americanas e a espionagem da diplomacia americana pelo mundo são tratadas como “informações confidenciais”; f) a narrativa dos jornais Globais não observa que boa parte da documentação revelada sequer era confidencial; g) e, pior, também não observa que mesmo a confidencialidade não está acima do interesse público garantido pela própria constituição americana; h) fato esse que foi um dos pontos que tornou possível a não punição de Daniel Ellsberg, ex-funcionário do governo americano e denunciante dos “Papéis do Pentágono” de 1971; i) Ellsberg teve todas acusações contra si rejeitadas após ficar comprovado que o governo americano espionou até suas conversas com seu analista; j) coisa que não ocorreu no caso de Assange: ele teve até suas conversas com sua equipe de advogados grampeada por ordem dos órgãos de espionagem americanos; k) caso de espionagem esse que está sendo julgado na Espanha, mas isso também não é comentado pela mídia corporativa, ainda menos na Globo.

O julgamento de extradição ainda passará por apelação, Assange não está fora de perigo. A opinião pública é sempre peça chave para decidir o resultado de um julgamento essencialmente político, portanto, a forma como a imagem de Assange é apresentada ao grande público poderá decidir se ele receberá tratamento como jornalista ou inimigo público, ou como pessoa indigna de crédito para ser fonte confiável de jornalismo. A Rede Globo, por exemplo, replicando a linha editorial vinda de grupos de mídia estrangeiros, ecoou também em imagens a linha de raciocínio que a sentença da juíza Baraitser transpareceu: a de que Assange seria mentalmente incapaz e, portanto, seus atos (de jornalista) deveriam ser relevados por razão de insanidade.

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É o que pode ser entendido pelo público ao ser servido repetidamente com a imagem de um Julian Assange desgrenhado, com longa barba e resistindo à prisão-sequestro quando foi retirado à força e ilegalmente pela polícia londrina de seu asilo político em abril de 2019. Esta imagem capturada pela agência de notícias RUPTLY (única a registrar a prisão ilegal de Assange, depois de 7 anos de assédio de imprensa corporativa cercando a embaixada do Equador) passou a ser a mais repetida nos noticiários para o público consumidor de notícias via imprensa corporativa, como se essa fosse a última imagem obtida de Assange.

Há imagens registradas logo após à prisão que mostram Assange de cabelo cortado e barba aparada, bem composto, altivo e combativo. Essas são bem menos utilizadas na mídia, apesar do fato de elas existirem.

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Outras fotografias obtidas de forma anônima em audiência de julgamento de extradição de Assange entre setembro-outubro de 2020 não aparecem na mídia corporativa, embora sejam facilmente encontradas na internet. Essas imagens, capturadas após 1,5 ano de prisão, mostram Assange entre 15-20 quilogramas mais magro, e aparentando extremo envelhecimento para um homem de 49 anos, além de uma expressão de esgotamento emocional.

A razão para estas imagens pós sequestro/prisão ilegal/cárcere privado continuado não serem utilizadas pela mídia corporativa talvez seja porque elas revelam o que a mídia corporativa não pode admitir, mas um relator da ONU para crimes de tortura tem denunciado há quase 2 anos: Julian Assange é vítima de tortura psicológica, e essa tortura tem efeitos não apenas psíquicos como também se expressam fisicamente. Nils Melzer, o relator da ONU, vem denunciando que os agentes de tortura psicológica contra Julian Assange são a própria mídia corporativa, os sistemas judiciários britânico e sueco e a diplomacia britânica, sueca e americana, além do Departamento de Estado Americano. Amigos próximos de Assange deram testemunho público, facilmente encontrado na internet, que a deterioração física e psíquica dele decorre da perseguição sofrida e que, após a detenção em prisão de segurança máxima em Londres, essa deterioração piorou, e muito, e não é resultado de outra coisa senão tortura.

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Craig Murray, ex-embaixador britânico, historiador, escritor e ativista de direitos humanos, deu seu relato sobre as condições físico-psíquicas de Julian Assange ainda em outubro de 2019, quando Assange estava em prisão de segurança máxima havia 6 meses e pôs a responsabilidade inteiramente no sistema judiciário britânico:

“Antes de passar para a flagrante falta de um processo justo, a primeira coisa que devo observar é a condição de Julian. Fiquei profundamente chocado com a quantidade de peso que meu amigo perdeu, com a velocidade com que seu cabelo diminuiu e com o aparecimento de um envelhecimento prematuro e muito acelerado. Ele apresenta um mancar pronunciado que eu nunca vi antes. Desde sua prisão, ele perdeu mais de 15 kg de peso. Mas sua aparência física não era tão chocante quanto sua deterioração mental. Quando solicitado a fornecer seu nome e data de nascimento, ele lutou visivelmente por vários segundos para lembrar de ambos. (...) foi uma verdadeira luta para ele articular as palavras e concentrar sua linha de pensamento. Até ontem, sempre fui discretamente cético em relação aos que alegaram que o tratamento de Julian equivalia a tortura - até mesmo em relação a Nils Melzer, o Relator Especial da ONU sobre Tortura (...) posso dizer que ontem mudou totalmente minha opinião e Julian exibiu exatamente os sintomas de uma vítima de tortura trazida piscando para a luz, particularmente em termos de desorientação, confusão e a verdadeira luta para afirmar o livre arbítrio em meio à névoa do desamparo aprendido. (...) Todos naquele tribunal viram ontem que um dos maiores jornalistas e dissidentes mais importantes de nossos tempos está sendo torturado até a morte pelo Estado, diante de nossos olhos. Ver meu amigo, o homem mais articulado, o pensador mais rápido que já conheci, reduzido àquela ruína cambaleante e incoerente, era insuportável. Ainda assim, os agentes do estado, particularmente a insensível magistrada Vanessa Baraitser, não estavam apenas preparados, mas ansiosos para fazer parte desse esporte sangrento. Na verdade, ela disse a ele que, se ele fosse incapaz de seguir os procedimentos, seus advogados poderiam explicar o que havia acontecido com ele mais tarde. A questão de por que um homem que, pelas próprias acusações contra ele, era reconhecido como altamente inteligente e competente, havia sido reduzido pelo Estado a alguém incapaz de seguir os procedimentos judiciais, não deu a ela um milissegundo de preocupação.”

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Esse relato acima se refere a uma audiência pública e é encontrado facilmente no blog de Craig Murray. Não há razão para qualquer veículo de grande mídia ignorar o relato desse ex-embaixador, assim como não há razão para a grande mídia ignorar as denúncias feitas pelo Relator Especial da ONU sobre Tortura de que Assange é vítima de tortura, até porque essas denúncias fazem parte do processo, mas essas denúncias têm sido bastante ignoradas na grande mídia.

A imprensa corporativa, no Brasil liderada pelo Grupo Globo, não pode mostrar as mais recentes imagens de Julian Assange porque essas são imagens de corpo de delito de um crime que tem participação da própria imprensa corporativa.

Depois de desumanizar Assange com calúnias e humilhações por 10 anos, e silêncio cúmplice de sequestro e cárcere ilegal que se prolonga por quase 2 anos, essa imprensa não pode mostrar o resultado físico desse abuso cometido por ela mesma.

É necessário fingir que Julian Assange não passou 10 anos em detenção ilegal de várias formas e a cada ano que passou ele teve sua capacidade de movimentação e comunicação reduzida, ao mesmo tempo em que ele sofria difamação reproduzida incessantemente pela grande mídia; é preciso a grande mídia fingir que o processo contra ele não despreza todos seus direitos humanos; fingir que esse mesmo processo jamais ocorreria sem a cumplicidade da própria imprensa corporativa. É preciso também utilizar imagens sem a devida contextualização para apresentar Assange como um “louco anedótico”, e não explicar que Assange teve seu asilo político desrespeitado pelo próprio corpo diplomático do Equador em Londres (após o governo do traidor Lenin Moreno receber promessa dos EUA de 4 bilhões de dólares em empréstimo do FMI), foi hostilizado, isolado até mesmo de familiares e advogados, teve a internet cortada (sua última forma de se conectar com o mundo), teve negado tratamento médico por anos e até alimentação negada no último período dentro da embaixada, que dirá então acesso a um serviço de barbeiro nos últimos meses na embaixada. Para finalizar o processo de estigmatização de Julian Assange, para assim desqualificar seu trabalho jornalístico e seu projeto de vida WikiLeaks, é preciso culpar o próprio Assange por seu infortúnio: não contextualizar o declínio de sua mente como resultado de tortura psicológica de 10 anos e com maior intensidade nos últimos 20 meses. É preciso culpar a natureza de sua genética, e assim desqualificar seu trabalho como alguma coisa típica de pessoa desequilibrada, sem razão, indigna de confiança e digna de pena.

As imagens e textos produzidos na mídia corporativa, e a Globo é apenas um grande exemplo nacional, reproduzem o texto da sentença de extradição, o discurso do império, que não é apenas americano, é anglo-saxão. O discurso do império que pratica massacres, tortura e sequestra mundo afora declara que: “Assange é suicida, mentalmente doente, suas ações são e sempre foram de pessoa sem razão. A extradição não ocorrerá tão somente porque o judiciário britânico, embora seja severo, é compassivo. Assange não será extraditado não porque não seja culpado de todas as acusações, mas porque é mentalmente incapaz e sempre foi.”

Como bem colocou o jornalista Jonathan Cook: “A última década foi sobre desacreditar, desgraçar e demonizar Assange. Essa decisão (de não extradição) deve ser vista como uma continuação desse processo. Baraitser negou a extradição apenas com base na saúde mental de Assange e seu autismo, e o fato de que ele representa um risco de suicídio. Em outras palavras, os argumentos de princípio para libertar Assange foram rejeitados de forma decisiva. Se ele recuperar sua liberdade, será apenas porque foi caracterizado como mentalmente deficiente. Isso será usado para desacreditar não apenas Assange, mas a causa pela qual ele lutou, a organização WikiLeaks que ele ajudou a fundar e todas as dissidências mais amplas das narrativas do poder estabelecido. Essa ideia se estabelecerá no discurso público popular, a menos que desafiemos essa apresentação a cada passo.”

O jornalismo não é uma profissão como medicina e advocacia, é uma atividade. O que define um jornalista é seu compromisso e competência em praticar o ofício. Tem muita gente bem paga em jornal corporativo que não é jornalista, é um relações públicas do poder estabelecido, mesmo tendo diploma. O contrário também é verdadeiro: pessoas sem diploma, mas competentes.

Basta observar o exemplo de Julian Assange. A formação dele é em matemática, física e filosofia. Ele criou um método de praticar jornalismo que valoriza a determinação da falseabilidade dos dados pelo próprio público: os documentos estão expostos para todo mundo checar (depois de editados em pontos sensíveis por questão de segurança). Essa decisão de deixar que o público cheque os dados brutos, que fundamentam as notícias, destrói o monopólio da imprensa sobre os dados e permite que cada pessoa possa por si mesma fazer um juízo sobre a documentação. O editor e o articulista convencionais, que são pagos para dar versões da realidade que convenham aos seus interesses ou aos de seus patrões, passam a temer perder os empregos. Temos certos jornalistas "profissionais", alguns que trabalharam diretamente com Assange, que desonram a profissão. Basta ler The Guardian, Daily Mail, para perceber a que nível desceram esses profissionais para desqualificar Assange como jornalista e como ser humano.

O trabalho produzido no WikiLeaks fala por si mesmo, recebeu muitos prêmios tanto por jornalismo quanto por ongs de direitos humanos em 14 anos de atividade e permanecerá sendo reconhecido, a despeito da perseguição jurídica que sofre.

Para finalizar a questão de Julian Assange ser ou não jornalista: tanto Assange é jornalista, quanto é reconhecido formalmente, Assange é membro da Federação Internacional de Jornalistas, como ele também foi internacionalmente premiado diversas vezes desde 2007 até agora por seu trabalho no WikiLeaks, trabalho esse que está sendo criminalizado agora.

A criminalização de Julian Assange, e por extensão do próprio jornalismo de verdade – a atividade que tem por razão de existir incomodar os poderosos apontando seus erros e crimes para que estes sejam expostos e responsabilizados – não ocorreria sem a cumplicidade de uma falsa imprensa corporativa e que é majoritária em boa parte dos países, como no Brasil.

A libertação de Julian Assange não se resume a impedir sua extradição para os Estados Unidos e garantir sua libertação física, mas exige a defesa de Julian Assange como jornalista e do WikiLeaks como organização de mídia jornalística, e passa por resgatar a imagem pública de Assange da condição desumanizada e deslegitimada que lhe foi imposta, assim como defender outros jornalistas que estão passando pelo mesmo processo de perseguição.

O que está no banco dos réus e acaba de ser criminalizado é o próprio jornalismo: o direito do público saber o que o poder faz contra o próprio povo.

Defender o jornalismo passa também por desmascarar aqueles que praticam o falso jornalismo, não financiar esse falso jornalismo e financiar o verdadeiro jornalismo.

A própria luta de libertação de Assange passa pelo desmascaramento de jornais que participaram ativamente da desmoralização de Assange. No Reino Unido há uma campanha popular “Dump The Guardian” (Jogue fora o jornal The Guardian). É uma campanha que tem tido sucesso a ponto do The Guardian ter sido forçado a sair do silêncio que se impôs desde a prisão de Assange para nas últimas semanas publicar editorial defendendo que ele não fosse extraditado.

Aqui no Brasil há muitos jornais e canais de tv para serem jogados fora, mas isso só não é o bastante, é preciso combater essa imprensa de todas as formas possíveis para arrancar dela a hegemonia do discurso político.

Discutir o jornalismo e o falso jornalismo é uma forma de defender a democracia e assim salvá-la ou reconstruí-la.

Links de textos, vídeos, etc...

- Vídeo que mostra o momento em que Julian Assange foi arrancado da embaixada do Equador em Londres pela polícia em 2019:

https://www.youtube.com/watch?v=stTMt1tLT4g

- Vídeo que mostra a reação dos parlamentares britânicos diante da prisão de Julian Assange:

Theresa May, a primeira ministra britânica na época, comenta prisão de Assange: “Ninguém está acima da lei.” Outra ministra britânica, Thatcher garantiu que Pinochet, ditador chileno, ficasse acima de lei.

https://www.youtube.com/watch?v=tblG99XW4Dc

- Vídeo de grupo cômico que mostra o que seria um Comercial Honesto dos governos envolvidos em perseguir Julian Assange:

https://www.youtube.com/watch?v=1efOs0BsE0g&feature=emb_logo

- Página de busca do site da Globo com vários vídeos comentando a decisão de extradição. A Globo ecoa discurso imperialista e desqualifica Assange como jornalista:

https://g1.globo.com/busca/?q=Assange

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