Liberdade de expressão ou flerte com o nazismo? O limite incômodo entre moral e direito
Na Alemanha e no Brasil existe um abismo entre o que a sociedade considera moralmente intolerável e o que o direito penal consegue alcançar
Mais uma vez, a Alemanha se tornou centro das atenções, pouco tempo depois da fala desastrosa do chanceler Friedrich Merz. Desta vez foi Alexander Eichwald quem entrou em cena: ele subiu ao palco da juventude do partido de extrema direita AfD, na cidade de Gießen, e fez um discurso que parecia uma paródia macabra da história alemã: tom de voz exaltado, pronúncia do “R” bem marcada, vocabulário de “camaradas de partido”, defesa da “cultura alemã” contra influências de fora. O vídeo, claro, circulou rapidamente nas redes sociais. Visto do Brasil, a reação instintiva foi outra: por que esse sujeito não saiu dali preso?
A resposta exigia voltar algumas décadas. Depois da Segunda Guerra, a Alemanha escreveu uma nova Constituição que garantiu a liberdade de expressão, mas colocou a dignidade humana no centro. A mensagem foi: não bastava dizer “nunca mais” ao nazismo, era preciso criar leis concretas para impedir que o mesmo tipo de propaganda florescesse de novo. Nos anos 1960, o Código Penal passou a prever um crime específico de incitação ao ódio contra grupos e outro que proibia o uso de símbolos de organizações nazistas, como suásticas e insígnias da SS, em público e para fins de propaganda.
Nos anos 1990, essas normas foram reforçadas: negar ou minimizar o Holocausto passou a ser crime em si, e não apenas uma “opinião repulsiva”. Mais recentemente, em 2022, o Parlamento ampliou o alcance da legislação para incluir a negação de outros genocídios e crimes contra a humanidade, inclusive em contextos digitais. Em termos simples, o recado jurídico ficou claro: exaltar abertamente o nazismo, fazer propaganda direta do regime ou negar o Holocausto não seria tratado como mera manifestação de opinião.
Eichwald se moveu justamente nos espaços que ficaram de fora dessa formulação. No discurso, ele copiou a estética de um comício nazista, mas, pelo que se sabe até agora, não levantou bandeira com suástica, não fez saudação típica, não exaltou explicitamente Hitler, não negou o Holocausto, não chamou abertamente à violência contra judeus, migrantes ou qualquer grupo específico. Politicamente, todos entenderam o jogo. Do ponto de vista jurídico, porém, ele se colocou naquele campo nebuloso da lei penal, em que a fala é abjeta, mas não se encaixa de forma cristalina nos artigos sobre propaganda nazista ou incitação ao ódio previstos na legislação.
Isso não significou que “não aconteceu nada”. Houve desgaste público, críticas fortes da imprensa, afastamento da bancada e início de um processo de expulsão partidária. O que não houve, até porque não é assim que o sistema funciona, muito menos em uma convenção da AfD, foi a cena que muita gente, vista de fora, talvez imaginasse: a polícia interrompendo o evento e levando o orador algemado. A Alemanha, com todos os seus traumas, não transformou o Estado em um fiscal de clima ou de encenação geral de comício. O alvo da lei não é simplesmente “falar como Hitler”, e sim cruzar algumas linhas bem específicas: usar símbolos e gestos nazistas, defender o regime, negar os crimes, convocar ódio violento contra grupos determinados.
Para um público brasileiro, talvez ajude a lembrar do caso Roberto Alvim. Em 2020, o então secretário de Cultura do governo Bolsonaro gravou um vídeo oficial com música de Wagner ao fundo, um cenário teatral e uma frase praticamente copiada de um discurso do ministro da Propaganda de Hitler. A estética nazista não estava escondida, ela saltava aos olhos. A reação foi imediata: Alvim caiu em poucas horas, e Bolsonaro correu para se descolar dessa imagem. Mas, do ponto de vista penal, o episódio terminou em demissão, não em condenação.
No Brasil também não é por falta de lei. A Constituição trata o racismo como crime inafiançável e imprescritível, e a Lei do Racismo prevê pena para quem usa símbolos nazistas para fazer propaganda dessa ideologia. Na prática, porém, o sistema político preferiu tratar o caso como um “escândalo” resolvido com exoneração. O resultado foi parecido com o de Eichwald: uma figura que flertou abertamente com a estética nazista pagou um preço político, mas não se tornou um grande caso exemplar de responsabilização penal.
Há um ponto em comum entre esses episódios. Tanto na Alemanha quanto no Brasil existe um abismo entre o que a sociedade considera moralmente intolerável e o que o direito penal consegue, de fato, alcançar. De um lado, isso evita que se encarcere qualquer pessoa que diga algo repulsivo. De outro, abre um espaço perigoso em que políticos e militantes de extrema direita testam os limites, brincam com símbolos e frases de regimes genocidas e contam com a ideia de que, no final, tudo vai terminar “só” em escândalo e perda de cargo.
Talvez seja justamente isso o mais incômodo. Mesmo com todas as especulações de que Eichwald poderia ser um infiltrado, um satirista ou alguém tentando sabotar a AfD, a explicação mais provável não é a do espião infiltrado, e sim a do extremista “sincero” que se sentiu à vontade para encenar Hitler em pleno 2025. Enquanto casos como o dele e o de Alvim forem tratados apenas como exageros individuais que “passaram do ponto”, sem uma resposta jurídica clara quando a linha é realmente cruzada, a mensagem para quem vem depois é simples: testar o limite compensa.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

