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Elizabeth Carvalho

Jornalista, escritora e documentarista, mestre em Economia Política Internacional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e correspondente de 2012 a 2022 da Globonews em Berlim e Paris

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Lições de combate ao veneno da violência social

Homem segura bandeira brasileira durante bloqueio na BR-251 em Planaltina 31/10/2022 (Foto: REUTERS/Diego Vara)

Muitos amigos com quem partilho a angústia diante do Brasil que emergiu dos anos Bolsonaro me asseguram que o pior vai passar.  Gestos tresloucados como o do “patriota" suicida do caminhão, de homens e mulheres que regridem à infância brincando de “marcha soldado” na porta de quartéis de verdade, que se enrolam na bandeira verde amarela para fechar estradas e histericamente gritam “o Brasil jamais será vermelho”, vociferando contra “comunistas” imaginários que “querem rasgar a constituição”, tudo isso será varrido pelos bons ventos que já começam a soprar no processo de transição e vão conduzir ao mar a nau do presidente Lula, a partir de 1 de janeiro de 2023.

Dizem que vai passar o ódio espantoso vomitado nas redes sociais por jovens brancos ricos, que frequentam as supostamente melhores escolas privadas do país, contra pessoas de classe inferior à deles. Que as manifestações nazistas no sul do Brasil vão desaparecer; que a violência bolsonarista contra o povo nordestino que votou maciçamente no nosso presidente eleito nunca terá força para cindir a nação. Dizem que um Brasil tolerante e cordial vai dar a volta por cima do racismo, da misoginia, da discórdia e da compulsão de morte estimulados sob o pesadelo Bolsonaro.  Voltaremos a ter paz para reconstruir o que foi destruído em nosso retrocesso civilizatório.

Não tenho esse otimismo. O país que emerge dos anos Bolsonaro é mais que um país dividido: é um país doente, de pulso fraco, com seu tecido social severamente esgarçado. Certamente o Brasil do terceiro mandato de Lula terá, entre seus múltiplos desafios, a necessidade de produzir em regime de urgência um antídoto poderoso e eficaz contra o veneno da cultura da violência fascista,  injetado em doses cavalares no dia a dia dos brasileiros ao longo dos quatro últimos anos. Em outras palavras, os efeitos de uma política de Estado voltada para a devastação de valores de uma sociedade precisa de uma política de Estado ainda mais forte e permanente para a sua recuperação.

O projeto de educação popular desenvolvido na França a partir do pós-guerra tem muito a dizer aos brasileiros sobre essa batalha política. Vale conhecer um pouco da sua história: ele nasceu das ruínas de outros quatro anos igualmente velozes e terríveis vividos pelos franceses entre 1940 e 1944, durante o regime de Vichy, o governo autoritário e entreguista que colaborou diretamente com a ocupação alemã no país. O antídoto contra o veneno de Vichy foi a educação popular, um escudo poderoso para evitar que o fascismo proliferasse outra vez, rapidamente transformada num alicerce permanente e estável da catedral de valores fraternos, igualitários e de liberdade sobre os quais ainda se constroem as políticas públicas na França.

Elas se chamam “Casas de Jovens e de Cultura”, e existem em cada cidade, cada comuna do país. São  espaços públicos de cultura abertos à confraternização e e ao conhecimento, onde há música, cinema, festa, teatro, exposição, e onde se pratica a educação popular como exercício  permanente de convivência e cidadania para além dos quadros da aprendizagem tradicional. As Casas dos Jovens formaram uma rede de coesão social que conta atualmente mais de 900 associações, agrupadas em federações regionais que integram o guarda-chuva de proteção da formação cidadã oficial.  A educação popular tornou-se uma prioridade política na França.

Quando começaram a ser implantadas, ao final de 1944, uma grande parcela da sociedade francesa havia sido desfigurada por quatro anos de um fascismo nacional que não apenas favoreceu o esforço de guerra do invasor, fornecendo a ele um braço armado suplementar de milícias que torturaram e mataram os que combatiam na Resistencia; em quatro anos, o regime de Vichy entregou aos campos de concentração alemães nada menos que 76 mil judeus, franceses e estrangeiros, dos quais aproximadamente 11 mil crianças. Somente 2.566 tiveram a chance de sobreviver ao final da guerra.

Em 2022, numa conjuntura de avanço perigoso da extrema-direita na Europa, não deixa de ser reconfortante reconhecer que esta mesma política de Estado segue gerando estratégias inteligentes e vigorosas de formação de opinião, como a campanha nacional que levou o nome de NÃO AO ODIO. Nascida na esteira dos atentados terroristas de 2016 que enlutaram a França, ela foi capaz de conter um islamofobismo desenfreado que espreitou a França nos anos subsequentes e nas diversas formas de preconceito misógino e racista contra as quais o país trava um combate sem tréguas.   Representa na verdade um esforço coletivo - das "Casas de Jovens e da Cultura", do ministério da Educação e da Juventude, do conselho interministerial de luta contra o racismo, o anti-semitismo e o preconceito contra os LGBTq - para induzir a todos conhecer, compreender e conscientemente agir contra o ódio irracional que fabrica bestas humanas.

Há algo de essencial a aprender com as instituições francesas em matéria de estratégias que conduzem a um avanço civilizatório. Ao longo da campanha presidencial, o presidente Lula por várias vezes manifestou sua intenção de lançar comitês no país inteiro com o objetivo acertado de descentralizar a cultura de mão única que sempre prevaleceu no país. Se enriquecidos pelo debate do significado de políticas públicas voltadas para a educação popular ,será possível elevar o padrão do patriotismo verde e amarelo para um nível mais saudável de compreensão dos valores da cidadania, diálogo democrático e construção de uma sociedade melhor. 

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.