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      Urariano Mota

      Autor de “Soledad no Recife”, recriação dos últimos dias de Soledad Barrett, mulher do Cabo Anselmo, entregue pelo traidor à ditadura. Escreveu ainda “O filho renegado de Deus”, Prêmio Guavira de Literatura 2014, e “A mais longa duração da juventude”, romance da geração rebelde do Brasil

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      Literatura e ideologia

      Notem o absurdo: todo escritor é livre para escrever o que quiser, desde que não elogie nem use as bandeiras em que acredita

      Notem o absurdo: todo escritor é livre para escrever o que quiser, desde que não elogie nem use as bandeiras em que acredita (Foto: Urariano Mota)

      Esta semana, fui atraído para a leitura de um texto a partir do título. Lá em cima se escrevia: “Arte, literatura e ideologia”, de Juliana de Albuquerque. Pensei: “o que virá disso?”. Confesso que a esperança de ler um pensamento substancioso se misturava ao pessimismo do que poderia vir. Mas depois da leitura, apesar de haver perdido todas as esperanças, o resultado foi estimulante.  Me falei: o que mesmo eu poderia responder ao texto de Juliana de Albuquerque, doutora pela University College Cork? Confesso que não sei até agora nem por onde comece. Então façamos como o popular nordestino diz: vamos começar pelo começo.

      Isto. O artigo publicado na Folha de São Paulo de 23/04/2018  https://www1.folha.uol.com.br/colunas/juliana-de-albuquerque/2018/04/arte-literatura-e-ideologia.shtml começa assim:

      “Em um dos seus textos para o jornal inglês The Independent, o escritor britânico Howard Jacobson —autor de ‘A Questão Finkler’— lançou o questionamento de serem arte e literatura capazes de nos tornar mais humanos. Segundo ele, a leitura de textos como ‘Middlemarch’, romance da escritora inglesa George Eliot (1819-1880), seria capaz de facilitar a humanização dos seus leitores, não apenas pelos temas abordados no livro —uma narrativa sobre a vida cotidiana e o drama de diversas personagens numa cidade do interior da Inglaterra—, mas pela interação exigida entre o leitor e o texto. 

      O raciocínio por trás da afirmação é o de que o simples acesso à arte não é suficiente para nos tornar gente. Pois, mais importante do que o contato com a arte em profusão seria o tipo de relação desenvolvida com determinadas obras. Algumas vezes a paciência cultivada ao ler uma obra de linguagem mais sofisticada ou arcaica, outras vezes a atenção dispensada ao buscar o sentido do contexto e do drama das personagens é o que despertaria a necessidade de olhar para o mundo e para os outros indivíduos com tolerância”.

      Logo observo que não resta claro no primeiro parágrafo do artigo se Howard Jacobson contestou, pôs em dúvida (“lançou o questionamento”) ou afirmou (“Middlemarch” seria capaz de facilitar) que a literatura nos humaniza. Caminhemos então pela estrada mais segura da dúvida, porque no segundo parágrafo se escreve “O raciocínio por trás da afirmação é o de que o simples acesso à arte não é suficiente para nos tornar gente. Pois, mais importante do que o contato com a arte em profusão seria o tipo de relação desenvolvida com determinadas obras”. De fato, o simples acesso à obra de arte não é condição única de humanização. Um bom livro é “apenas” uma ferramenta da construção do mundo. Há outras, que falam mais de perto à nossa construção humana, das relações domésticas às sociais e ao tempo histórico que nos é imposto viver. No entanto, em meio a tantas circunstâncias do azar e da sorte, o que seria de nós na tempestade sem a bússola de um ótimo livro?

      Mas o começo do texto foi só hors-d’oeuvre, acepipe, um petisco antes do prato principal que vem agora:    

      “... Há-se, também, de pensar sobre como é divulgada online a nossa herança cultural, muitas vezes a fazer da arte refém do posicionamento político, como se o cânone literário e artístico fosse mera plataforma para a exposição de afinidades ideológicas...

      Na semana passada um amigo compartilhou a seguinte denúncia: ‘Quem pensa por slogans, não pensa: reproduz o mesmo. Quem cria poesia a partir de chavões ideológicos e palavras de ordem, não cria, os reproduz. A pura militância é endogâmica e endológica. Paradoxalmente conservadora’ ”

      Endológico, essa nova neologia à parte, vejamos isto:  “fazer da arte refém do posicionamento político, como se o cânone literário e artístico fosse mera plataforma para a exposição de afinidades ideológicas”. Ainda que cercada de boas intenções, essa é a velhíssima crítica dos que desejam a literatura aquém e além da política. Compreendemos o significado histórico imediato da restrição, mas não podemos vê-la como uma condenação universal do “posicionamento político” de um escritor.  A velha crítica leva em conta o que se chamou de “realismo socialista”, e se tem razão quanto à avaliação dos erros da limitada e pobre estética que se pregava à época, falta-lhe critério quando confunde alhos com bugalhos. Por exemplo, atribuem a Máximo Górki o endosso da visão de Zdanov para a literatura no tempo de Stalin. O que não é verdade.  Como bem escreveu José Carlos Ruy, em artigo publicado no Vermelho http://vermelho.org.br/noticia/305820-1 :

      “O ‘realismo socialista’ tornou-se referência oficial - à revelia de Gorki – no I Congresso de Escritores Soviéticos (1934), sob a batuta de Alexei Zdanov, que se tornou desde então num verdadeiro autocrata da cultura soviética. Naquele congresso, Zdanov fez um discurso, baseado num escrito de Gorki, e usado amplamente como base para a edificação da doutrina estética oficial do realismo socialista”.  

      A esta altura, o exemplo de Graciliano Ramos é necessário. Ele, talvez o maior escritor brasileiro do século XX, um romancista político, um militante comunista até o fim da vida, jamais represou na escrita a revolta (ideológica!) contra o capitalismo. Mas possuía um asco irreprimível diante do realismo socialista, conforme se vê na biografia escrita por Dênis de Moraes, que citei aqui no Vermelho http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=197435&id_secao=11 :

      “– Nenhum livro do realismo socialista lhe agradou? – perguntou o jornalista a Graciliano Ramos.

      – Até o último que li, nenhum. Eu acho aquele negócio de tal ordem que não aceitei ler mais nada.

      – Qual a principal objeção que o senhor faz?

      – Esse troço não é literatura. A gente vai lendo aos trancos e barrancos as coisas que vêm da União Soviética, muito bem. De repente, o narrador diz: ‘O camarada Stálin…’ Ora porra! Isto no meio de um romance?!

      Tomei horror.

      – Não seria possível purificar o estilo do realismo socialista?

      – Não tem sentido. A literatura é revolucionária em essência, e não pelo estilo do panfleto.

      Não é de se admirar, portanto, que não tolerasse as fórmulas emanadas de Moscou. Ao tomar conhecimento do informe de Zdanov sobre literatura e arte, esculhambaria:

      – Informe? Eu gosto muito da palavra, porque informe é mesmo uma coisa informe.”

      Penso que defender a imprescindível liberdade da literatura, assim como de toda liberdade de pensamento, não é o mesmo que ver na militância socialista um muro levantado contra a criação. No artigo de Juliana de Albuquerque é citada a frase “Quem cria poesia a partir de chavões ideológicos e palavras de ordem, não cria, os reproduz”. Sério? Será mesmo assim? Então o que dizer da glosa de motes, presente em toda poesia de improviso nordestina, cuja excelência se vê até na lírica de Camões?  Então o “Lula Livre”, o “Fora, Temer”, o “Lula é Inocente”,  não poderiam nem podem gerar lindos contos, crônicas e poemas, porque trazem um vício do pecado original? Verdade? Notem o absurdo: todo escritor é livre para escrever o que quiser, desde que não elogie nem use as bandeiras em que acredita. É claro, se ele não tiver bandeiras de esquerda, tanto melhor, será o gênio da hora. Muito bem, viva o escritor anódino, sem mácula. O contrário do poeta ideal de Manuel Bandeira:

      “Poeta sórdido:
      Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida.
      Vai um sujeito,
      Saí um sujeito de casa com a roupa de brim branco muito bem engomada, e na primeira esquina passa um caminhão, salpica-lhe o paletó ou a calça de uma nódoa de lama:
      É a vida

      O poema deve ser como a nódoa no brim:
      Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero”.

      Acredito que a exigência da poética sem palavras da militância socialista se inscreve no jogo dos liberais à moda Trump. Eles clamam uma liberdade de “escola sem partido” para melhor expulsão do pensamento livre de Darwin e assemelhados. Ora, só orando sob a liberdade da interdição religiosa: libertar uma humanidade com exceções é a própria negação do que se afirma. Liberdade para quem? Para a manutenção do statu quo. Daí o paradoxo, onde se afirma: “a pura militância é endogâmica e endológica. Paradoxalmente conservadora”. Militância progressista conservadora... Sabem aquela do ladrão que corre à frente da turba e grita “pega o ladrão”? Então entenderam.  Por um critério tão rígido, que não respeita o universal “nada do que é humano me é estranho”,  perde-se a imaginação do quanto palavras de ordem podem ser sínteses transformáveis nos mais belos versos. Como no poema de Paul Éluard, a poesia magnífica que virou panfleto em 1943, que se lançava de avião sobre as cidades ocupadas por nazistas:

      “Liberdade

      Nos meus cadernos de escola
      Nesta carteira nas árvores
      Nas areias e na neve
      Escrevo teu nome

      Em toda página lida
      Em toda página branca
      Pedra sangue papel cinza
      Escrevo teu nome

      Nas imagens redouradas
      Na armadura dos guerreiros
      E na coroa dos reis
      Escrevo teu nome

      Nas jungles e no deserto
      Nos ninhos e nas giestas
      No céu da minha infância
      Escrevo teu nome

      Nas maravilhas das noites
      No pão branco da alvorada
      Nas estações enlaçadas
      Escrevo teu nome

      Nos meus farrapos de azul
      No tanque sol que mofou
      No lago lua vivendo
      Escrevo teu nome

      Nas campinas do horizonte
      Nas asas dos passarinhos
      E no moinho das sombras
      Escrevo teu nome

      Em cada sopro de aurora
      Na água do mar nos navios
      Na serrania demente
      Escrevo teu nome

      Até na espuma das nuvens
      No suor das tempestades
      Na chuva insípida e espessa
      Escrevo teu nome

      Nas formas resplandecentes
      Nos sinos das sete cores
      E na física verdade
      Escrevo teu nome

      Nas veredas acordadas
      E nos caminhos abertos
      Nas praças que regurgitam
      Escrevo teu nome

      Na lâmpada que se acende
      Na lâmpada que se apaga
      Em minhas casas reunidas
      Escrevo teu nome

      No fruto partido em dois
      de meu espelho e meu quarto
      Na cama concha vazia
      Escrevo teu nome

      Em meu cão guloso e meigo
      Em suas orelhas fitas
      Em sua pata canhestra
      Escrevo teu nome

      No trampolim desta porta
      Nos objetos familiares
      Na língua do fogo puro
      Escrevo teu nome

      Em toda carne possuída
      Na fronte de meus amigos
      Em cada mão que se estende
      Escrevo teu nome

      Na vidraça das surpresas
      Nos lábios que estão atentos
      Bem acima do silêncio
      Escrevo teu nome

      Em meus refúgios destruídos
      Em meus faróis desabados
      Nas paredes do meu tédio
      Escrevo teu nome

      Na ausência sem mais desejos
      Na solidão despojada
      E nas escadas da morte
      Escrevo teu nome

      Na saúde recobrada
      No perigo dissipado
      Na esperança sem memórias
      Escrevo teu nome

      E ao poder de uma palavra
      Recomeço minha vida
      Nasci pra te conhecer
      E te chamar

      Liberdade”

      Eu teria poucas linhas mais a escrever sobre Literatura e Ideologia. Mas chegado a esse ponto da poesia de Éluard, fico sem palavras. O simples copiar a grandeza paralisa a gente. Então me recolho a pensar na minha insignificância.

      * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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