Lô Borges. O trem para saudades
A despedida de Lô Borges expõe o esquecimento de nossos mestres e o fim de uma era dourada da música brasileira
Muito se escreveu sobre o Clube da Esquina e a importância de um disco que é considerado um dos melhores do Brasil. No top 10, junto com Acabou Chorare, dos Novos Baianos; Chega de Saudade, de João Gilberto; Tropicália; Elis & Tom; Secos & Molhados; Cabeça Dinossauro, dos Titãs; e Roots, do Sepultura, Clube da Esquina ocupa o primeiro lugar. Um importante livro foi organizado pela competente Chris Fuscaldo e por Márcio Borges, chamado De tudo se faz canção – 50 anos do Clube da Esquina. Mas o impacto da passagem de Lô Borges recentemente traz à discussão o apagamento dos grandes nomes da música e o sumiço, aos poucos, de nossas referências musicais. Ninguém consegue dimensionar, neste momento, a grandiosidade da perda que tivemos na cultura.
Clube da Esquina, que levou uma multidão ao local originário para homenagear Lô, agregou uma série de músicos e compositores, como Lô Borges, Wagner Tiso, Fernando Brant, Beto Guedes, Toninho Horta, Tavinho Moura, Nelson Ângelo, Tavito, entre outros. Em um primeiro momento, ouvimos os músicos conectados com a história de Minas. Dá até para sentir a presença do trem azul, o gosto de um pão de queijo, ao mesmo tempo em que se reconstrói um paradigma na identidade mineira. O nível de qualidade da música de Lô Borges ressoa entre músicos contemporâneos e aparece até na ambientação usada na série Station Eleven, da HBO. Essa mesma mineiridade é sustentada por artistas pós-Lô Borges, como Paulinho Pedra Azul, Saulo Laranjeira, Sérgio Pererê, Seu Ribeiro, entre outros. Se pensarmos que as influências foram a bossa nova, o jazz, o rock 'n' roll, ritmos latinos, assim como Jules e Jim, de François Truffaut, e chegamos à mineiridade, isso mostra o nível da qualidade desses compositores.
Zilá Bernd, em seu livro Literatura e Identidade Nacional, analisa a importância da pluralidade e da alteridade na formação da identidade. “A identidade é um conceito que não pode afastar-se do de alteridade: a identidade que nega o outro permanece no mesmo. Excluir o outro leva à visão especular que é redutora: é impossível conceber o ser fora das relações que o ligam ao outro.” Do Clube da Esquina, em termos de essência individual — tirando Milton Nascimento —, há discos muito importantes que me impactaram, como os de Beto Guedes (Amor de Índio, Sol de Primavera e Viagem das Mãos), assim como os de Lô Borges (A Via Láctea e Vento de Maio), tão importantes para qualquer amante de música. O sol na cabeça era uma imagem de iluminação de sua genialidade; afinal, dizia ser um “filho bastardo” que estava no mainstream, mas o mainstream não estava presente nele. Talvez, se Milton não tivesse sido revelado pelo Festival da Record em 1967, Lô Borges não teria o alcance nacional que possui hoje — embora isso nunca tenha importado para ele. Para Lô, a música era o sol na cabeça.
O mineiro que se reconhece diretamente nas músicas de Lô Borges e seus contemporâneos vivia momentos de expansão da cultura pelo Brasil, com as poesias de Carlos Drummond de Andrade e Juscelino Kubitschek, presidente do país na época, que gostava da canção Beco do Mota, de Milton e Fernando Brant — que fala de Minas com metáforas. Afinal, era um período em que a economia açucareira dava lugar à economia mineradora e, por Minas Gerais ter as maiores jazidas, o estado se tornava mais visado. Em um trecho, se ouve: “Pedra, padre, ponte, muro e um som cortando a noite escura colonial vazia pelas sombras da cidade, hino de estranha romaria, lamento água viva.”
Lô Borges não foi apenas um músico. Foi um criador de cores de Minas Gerais. A essência era mais importante. O ego nunca foi importante. Chegou a largar a música para viver a vida hippie. Como se não bastasse sua contribuição em vida, Lô deixou prontos quatro discos inéditos para que, inconscientemente, pudéssemos matar a saudade e para que sua falta não deixasse marca tão pesada no coração. Apesar de ele não querer exaltar sua própria genialidade, temos o dever de fazer inúmeras homenagens, não só pela qualidade musical, mas por ser o verdadeiro artista, aquele que coloca o foco essencial em seu trabalho.
Somos todos Lô Borges. Sou carioca. Sou do mundo, sou Minas Gerais.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
