Lucía Topolansky: a mulher ao lado de Pepe Mujica
Lucía Topolansky: companheira, mas nunca coadjuvante
A história de Lucía Topolansky não começa nem termina com Pepe Mujica. Seu nome carrega décadas de luta, resistência e compromisso com o povo uruguaio.
Ex-guerrilheira, ex-senadora e a primeira mulher a ocupar a vice-presidência do Uruguai, Lucía sempre esteve no centro das transformações políticas do país. No entanto, fora do Uruguai, seu nome raramente recebe o reconhecimento merecido. O que significa ser a companheira de um dos políticos mais icônicos da América Latina? Para Lucía, não foi sobre estar à sombra de Mujica, mas sim caminhar ao lado dele, compartilhando a mesma visão de mundo, os mesmos sacrifícios e a mesma luta por justiça social. Neste 8 de março, o foco está nela: a mulher, a militante, a líder.
Dos porões da ditadura ao coração da política uruguaia
Lucía Topolansky nasceu em 1944, em Montevidéu, em um Uruguai que, nos anos 60, mergulhava em uma crescente instabilidade política e social. Foi nesse contexto que ela aderiu ao Movimento de Libertação Nacional-Tupamaros (MLN-T), um dos mais conhecidos grupos guerrilheiros da América Latina, que combatia a desigualdade e o autoritarismo crescente no país. Ao lado de Mujica e de tantos outros militantes, Lucía participou ativamente da luta contra a repressão estatal, que já era intensa antes mesmo do golpe militar de 1973. Lucía foi presa em 1972, um ano antes do golpe, quando a repressão contra os Tupamaros já estava em seu auge. Assim como Mujica e outros companheiros de luta, foi submetida a um regime brutal dentro das prisões uruguaias. Durante quase 13 anos, enfrentou torturas físicas e psicológicas, isolamento extremo e condições sub-humanas.
No Uruguai, os presos políticos eram tratados como “reféns” da ditadura. Não muito diferente do,que aconteceu no Brasil. Isso significava que sua vida estava constantemente ameaçada: caso o MLN-T tentasse qualquer reorganização ou ação armada, o governo militar poderia executar os prisioneiros como represália. Lucía passou grande parte desse tempo isolada, sem contato com o mundo exterior. Assim como outras mulheres presas pelo regime, sofreu com violências específicas. As torturas incluíam espancamentos, choques elétricos, privação de sono e abuso sexual – estratégias usadas para quebrar psicologicamente as prisioneiras. Para resistir, as mulheres desenvolviam métodos de sobrevivência: trocavam mensagens codificadas, batiam nas paredes para se comunicarem e até aprendiam idiomas ou decoravam textos para manter a sanidade mental.
A força de Lucía Topolansky e sua convicção inabalável na luta política podem ser vistas no documentário “Tupamaros” (1997), de Rainer Hoffmann e Heidi Specogna. Nele, sua presença se destaca não apenas como uma ex-guerrilheira, mas como uma líder que manteve viva a chama da resistência, mesmo nos anos mais brutais da repressão. O documentário evidencia a relevância de Lucía e de outras militantes na luta revolucionária uruguaia, incluindo sua irmã gêmea, María Elia Topolansky.
Lucía não apenas aparece como uma ex-guerrilheira, mas como uma militante convicta, cuja fala e postura demonstram a força de sua luta. Suas palavras ressoam com firmeza, deixando claro que sua participação na resistência não foi secundária, mas de extrema relevância para a construção de um movimento que desafiou a ditadura. A obra transmite sua postura firme, sua clareza política e o comprometimento com os ideais que a levaram à prisão.
Lucía só foi libertada em 1985, com a anistia concedida após a redemocratização do Uruguai. Ao sair da prisão, não se afastou da política. Pelo contrário: ajudou a reorganizar o MLN-T dentro da Frente Ampla e iniciou sua trajetória eleitoral, tornando-se uma das figuras centrais da política uruguaia.
Companheira, mas nunca coadjuvante
Pepe Mujica e Lucía Topolansky são um dos casais mais conhecidos da política mundial. No entanto, diferente do modelo tradicional em que a figura feminina é relegada ao papel de apoio, Lucía sempre teve sua própria voz. A relação dos dois não foi construída sobre hierarquias, mas sobre companheirismo político e ideológico.
Após sua libertação em 1985, Lucía Topolansky dedicou-se à reconstrução política dos ex-Tupamaros dentro da democracia uruguaia, ajudando a fundar o Movimento de Participação Popular (MPP), um dos principais setores da Frente Ampla. Durante os anos 1980 e 1990, manteve-se ativa na militância de base, atuando em trabalhos comunitários e na consolidação do MPP como uma força política relevante. Apenas em 2000 foi eleita deputada, iniciando sua trajetória parlamentar, que a levaria posteriormente ao Senado.
Quando Mujica assumiu a presidência em 2010, Lucía continuou sua atuação independente como senadora. Enquanto ele comandava o Executivo, ela seguia como uma das parlamentares mais influentes do Uruguai, sendo decisiva na aprovação de leis como a legalização da maconha, o casamento igualitário e a ampliação dos direitos sociais. O casal se tornou símbolo de uma política diferente, sem ostentação, sem luxo, vivendo na mesma chácara modesta nos arredores de Montevidéu, recusando privilégios e mantendo um estilo de vida coerente com seu discurso.
Mas Lucía nunca se limitou a seguir Mujica. Em 2017, tornou-se a primeira mulher a ocupar a vice-presidência do Uruguai, substituindo Raúl Sendic. Sua ascensão ao cargo foi uma prova de sua influência e reconhecimento político dentro da Frente Ampla e do cenário nacional.
Lucía Topolansky e Dilma Rousseff: histórias que se cruzam
A história de Lucía Topolansky encontra ecos na trajetória de Dilma Rousseff. Separadas por fronteiras nacionais, mas unidas pela mesma convicção política e pela experiência da repressão, ambas enfrentaram regimes autoritários, participaram da luta armada, foram presas e torturadas. Sobreviveram à violência de Estado e, em vez de se afastarem da política após a redemocratização de seus países, seguiram em frente, ocupando os mais altos postos do poder.
Dilma Rousseff chegou à presidência do Brasil em 2011, tornando-se a primeira mulher a comandar o país. Seu governo foi marcado por avanços sociais, mas também por uma conjuntura política hostil, que culminou em seu impeachment cinco anos depois. Embora tenham seguido caminhos distintos, ambas se consolidaram como figuras essenciais na luta por democracia em seus países. Lucía Topolansky consolidou-se como uma das figuras centrais da Frente Ampla, foi uma das senadoras mais votadas do Uruguai e, em 2017, tornou-se a primeira mulher a ocupar a vice-presidência do país.
Apesar das diferenças em suas trajetórias, ambas enfrentaram um obstáculo comum: o machismo estrutural da política latino-americana. Dilma sofreu ataques constantes, que iam além das críticas a seu governo e atingiam sua condição de mulher no poder. Foi hostilizada, retratada como emocionalmente instável, incapaz de liderar, e alvo de uma campanha que minou sua autoridade política. Já Lucía, embora tenha mantido uma trajetória de sucesso no parlamento, muitas vezes teve sua atuação minimizada, sendo vista pelo público internacional mais como a “mulher de Mujica” do que como a líder política que sempre foi.
Se Dilma enfrentou um processo de impeachment articulado por uma elite política e econômica que jamais aceitou sua presença no Planalto, Lucía encontrou outra forma de resistência: provar que sua carreira não era apenas um reflexo da popularidade de Mujica. Diferente de Dilma, ela nunca ocupou o cargo máximo do Executivo, mas sua influência nos bastidores da política uruguaia foi essencial para consolidar as reformas progressistas que tornaram o Uruguai um modelo de avanços sociais.
O que as une, acima de tudo, é a resiliência. Ambas emergiram dos anos de chumbo sem abrir mão de seus ideais. Ambas provaram que mulheres podem ocupar espaços de poder sem que isso signifique abrir mão de sua essência. E ambas deixaram um legado que ultrapassa seus mandatos e cargos políticos, inspirando novas gerações a continuarem a luta por justiça, democracia e igualdade. Se há uma lição que as trajetórias de Lucía e Dilma nos deixam, é que política é resistência. E resistência não se faz sozinha.
O legado de uma mulher que nunca precisou de holofotes
Lucía Topolansky nunca buscou protagonismo, mas ele a encontrou. Sua trajetória é um lembrete de que a política é, antes de tudo, uma luta de classes, travada não apenas no poder, mas também nas ruas, nos parlamentos e nos movimentos sociais. Hoje, aos 80 anos, Lucía continua sendo uma referência para as novas gerações da esquerda latino-americana. Seu nome pode não estar sempre nos discursos inflamados ou nos grandes documentários políticos, mas sua marca na história do Uruguai é indelével. Neste Dia Internacional da Mulher, sua história merece ser lembrada como a de uma das mulheres mais fortes da política e da esquerda mundial, cuja luta e compromisso com as classes populares transformaram o Uruguai e seguem inspirando o futuro.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

