Lula e a BYD, Tim Cook e o TikTok: será a diplomacia o novo limite da expansão corporativa global?
A diplomacia corporativa não substitui a diplomacia estatal, mas a complementa
As multinacionais enfrentam hoje um verdadeiro turbilhão de desafios geopolíticos. Do discurso apaixonado do presidente Lula na fábrica da BYD, passando pela aparição do CEO da Apple, Tim Cook, em uma transmissão ao vivo no TikTok, até a visita de Stephen Schwarzman, da Blackstone, ao chanceler chinês Wang Yi, um ponto comum emerge: as empresas não podem mais operar isoladamente. As fronteiras da competição comercial tradicional estão se dissolvendo, e a diplomacia corporativa tornou-se um fator crucial para determinar o sucesso ou o fracasso global das companhias.
Em um cenário de tensões bilaterais e restrições de mobilidade global, tecnologia, preço e autorizações governamentais já não bastam para assegurar legitimidade operacional. É preciso ir além dos limites do comércio e praticar uma nova forma de “diplomacia pública corporativa”. Essa diplomacia consiste em usar recursos empresariais e sensibilidade cultural — por meio de patrocínios, parcerias comunitárias e engajamento midiático — para gerar boa vontade e moldar percepções positivas nos países anfitriões, protegendo assim a identidade e a legitimidade das empresas em ambientes políticos complexos.
Este artigo analisa, por meio de estudos de caso, como corporações globais podem injetar uma “alma local” em suas operações internacionais.
Lula e a “alma brasileira” da BYD
Em 9 de outubro de 2025, o presidente Lula da Silva esteve na nova fábrica da BYD em Camaçari, na Bahia, celebrando o lançamento do 14º milhão de veículos elétricos da empresa e a abertura de sua maior unidade fora da Ásia. Lula apresentou o evento como uma “restauração da dignidade de Camaçari”, após a saída caótica da Ford. Seu discurso repercutiu nas redes sociais do Brasil à China, transformando um gigante chinês em símbolo de sucesso estrangeiro com rosto brasileiro.
Meses antes, a BYD enfrentava denúncias de más condições de trabalho no canteiro de obras, gerando investigação das autoridades trabalhistas e atrasos no projeto. Nesse contexto adverso, Lula utilizou uma estratégia de “inculturação” — antiga tática jesuíta de adaptação cultural — para reconectar a empresa ao imaginário e aos valores brasileiros.
Primeiro, ele associou o sucesso da BYD à dignidade do trabalhador: “Sem os trabalhadores, nada disso seria possível”, declarou. Depois, deu à história da empresa um tom espiritual, relacionando sua própria infância pobre à trajetória de Wang Chuanfu, fundador da BYD, e citando o provérbio “Deus escreve certo por linhas tortas”, sugerindo que a saída da Ford foi providencial. Por fim, transformou a narrativa industrial: a substituição da Ford pela BYD passou a simbolizar soberania, empregos e orgulho nacional.
A fala de Lula também teve dimensão política: às vésperas das eleições de 2026, o presidente reforçou sua política industrial e o valor do trabalho, ganhando capital político. Para a BYD, o evento representou um marco na “localização cultural” das empresas chinesas. Sob a narrativa de Lula, a BYD deixou de ser “mais uma empresa estrangeira” e tornou-se “a fábrica do povo brasileiro”.
O impacto foi imediato: viralização nas redes, mudança de opinião pública e reconfiguração simbólica de um escândalo em um caso de renascimento industrial.
Tim Cook e o TikTok: diplomacia corporativa no ecossistema chinês
Enquanto as empresas chinesas mantêm postura discreta, os gigantes ocidentais mostram-se cada vez mais abertos à integração cultural. Nesta semana, a aparição de Tim Cook em uma live no Douyin (versão chinesa do TikTok) se tornou assunto global. O CEO da Apple promoveu pessoalmente o novo iPhone 17 e o iPhone Air, atraindo mais de 100 mil espectadores simultâneos.
A transmissão ocorreu paralelamente ao lançamento do novo modelo e à autorização do uso de eSIM pelas operadoras chinesas, sinalizando um momento estratégico para a marca. Mais do que marketing, o gesto reforçou a inserção da Apple no cotidiano digital chinês — um movimento que Cook tem cultivado há anos com visitas a feiras culturais, interação com criadores locais e parcerias com universidades, como o novo fundo ambiental na Universidade de Tsinghua.
Essas ações formam o núcleo da diplomacia corporativa moderna: construir pontes culturais e institucionais, gerar boa vontade e consolidar legitimidade social. O “soft power empresarial” de Cook transforma o consumo em conexão emocional — e essa relação, mais do que qualquer tratado, suaviza tensões entre Estados Unidos e China.
Sony: quando o “sonho americano” virou narrativa japonesa
Nenhum exemplo ilustra melhor a diplomacia corporativa do que a trajetória da Sony nos Estados Unidos. Desde o rádio portátil TR-63, em 1957, até o PlayStation, em 1995, a empresa japonesa transformou produtos em narrativas culturais. Ao controlar tanto hardware quanto conteúdo — com as aquisições da CBS Records e da Columbia Pictures — a Sony conquistou influência sobre o que milhões de americanos viam e ouviam.Apesar das críticas à “compra da cultura americana por capital estrangeiro”, líderes como Akio Morita e Norio Ohga responderam com franqueza e sensibilidade, apresentando as fusões como intercâmbio cultural.
A Sony, assim, converteu-se em símbolo de modernidade e cooperação.De rádios a filmes, de games a músicas, a empresa japonesa integrou sua identidade à vida cotidiana dos Estados Unidos — uma demonstração de diplomacia silenciosa, porém poderosa, capaz de moldar valores e estética por meio do consumo.
De multinacionais a diplomatas: o futuro da globalização
Quando uma empresa estrangeira constrói fábricas, paga impostos e emprega trabalhadores locais, ela se torna um elo tangível de cooperação internacional. Essas corporações funcionam como interfaces físicas da diplomacia contemporânea, traduzindo diferenças culturais e ajustando práticas de gestão à realidade local.Hoje, a legitimidade é o ativo mais valioso. Apenas empresas que criam laços genuínos — contratando localmente, cultivando diversidade, participando de debates públicos — conseguem estabilidade em tempos de tensão geopolítica.
A diplomacia corporativa não substitui a diplomacia estatal, mas a complementa. Ela se dá em fábricas, escritórios e plataformas digitais, onde o diálogo cotidiano entre culturas, trabalhadores e consumidores constrói um mundo multipolar interligado, mais cooperativo e menos fragmentado.
Este artigo foi originalmente publicado pelo Beijing Club for International Dialogue
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




