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Pedro Cláudio Cunca Bocayuva

Professor do PPDH do NEPP-DH/UFRJ

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Lula e a diplomacia em tempos de guerra

Lula pode aproveitar a autonomia relativa do lugar de ator na chave mítico-política para avançar na direção de um bloco que atravessa fronteiras

Lula (Foto: Ricardo Stuckert / PR)

Neste momento de crise de hegemonia e catástrofe no sistema internacional, a diplomacia tem algum papel? Países desprovidos de poder nuclear têm algo a propor na mediação que gere algum tipo de cessar-fogo, com tantas guerras difusas e processos de genocídio, limpeza étnica? O poder de formação da vontade coletiva no terreno nacional foi fortemente enfraquecido, mas “desglobalização”, com um período de crise orgânica, reacende a questão mítico-política da liderança, da direção intelectual e moral projetada desde os espaços nacionais, irradiada pela mitigação cibernética.

Neste momento, o tema da “liderança”, da direção intelectual e moral está em jogo, na batalha dos afetos, como vemos com os fenômenos mórbidos no terreno da psicologia de massas, que se manifestam no retorno de figuras cínicas que performam a ideia de "homens fortes".

Xenofobia, neofascismo e performance se expressam na falta de limites, na desmedida da razão cínica, do brutalismo e do uso de dispositivos e máquinas policiais-militares na imposição dos regimes de exceção, com a expansão da “vida nua”. A pequena política avança combinando o narcisismo das pequenas diferenças com a mobilização de multidões. A presença de bufões alimenta a pulsão de crueldade da horda em nome do “nacionalismo”. Os regimes de medo e a máquina do populismo penal misturam as imagens de Alcatraz, biometria, cerco e aniquilamento, ataque com drones e execuções sumárias. Por toda parte, a fuga adiante, o saque, a competição sem lei se combinam com a financeirização, o consumismo na sociedade do espetáculo.

No plano internacional, a razão cínica convive com a lógica do uso da força e a administração pelo medo. Hobbes e Maquiavel são referências necessárias no momento em que precisamos seguir as pegadas da leitura clássica de Edward H. Carr sobre o poder e a moral na ordem internacional. Como entender a produção do inimigo que leva as potências e poderes em crise na direção da autofagia? Existe algum realismo na busca da paz e de uma solução de cosmopolitismo que trabalhe por ações de contenção e que reorganize espaços de negociação, regulados por novas relações de força, num certo multilateralismo de alcance limitado? Existe tempo para agir no horizonte de reforma do Conselho de Segurança como uma bandeira capaz de derrotar o trumpismo e as lógicas dos novos senhores do Apocalipse?

Figuras de lideranças com estilo diverso e agendas pacíficas podem ocupar o espaço no meio do tiroteio, quando as máquinas das rivalidades, os complexos industriais-militares e as máquinas bélicas já entraram em cena? A guerra começou, e será que existe um papel histórico para uma nova retórica da paz que realize o que Lenin e Wilson não conseguiram, isto é, barrar o banho de sangue? Será possível não repetir as tragédias como a das duas guerras (que persistiu até que a questão das nacionalidades gerou certa organização do mapa do poder, pelo desenvolvimentismo e pela bipolaridade)?

Qual o lugar dos "have not power" no manejo e mobilização de segmentos da opinião pública internacional capazes de recriar esferas de ação que evitem o desdobrar da catástrofe bélica? Será que a diplomacia brasileira em Moscou e em Pequim, nestes dias, pode manejar o imaginário para produzir componentes simbólicos positivos que ajudem a reduzir danos? No Brasil, o PT venceu as eleições como força redutora de danos e gestor moderador da catástrofe neoliberal. Em que medida este mito necessário de luta pela paz pode se encarnar no Lula, o que pode ter efeito na cena internacional a partir da autonomia relativa do papel dos estadistas como expressão de uma certa ficção do que é o Brasil e sua missão de contrapelo?

Paradoxalmente, nosso submetimento a uma agenda de transição sob a égide do capital mundializado, na direção da manutenção do "neoliberalismo não garante mais uma proteção social" parcial, nosso pragmatismo e a ideologia que alimenta a imagem de mestiçagem geram alguma empatia na opinião pública internacional, que segue a força das pegadas da luta contra a fome. Será que Lula encarna um personagem que tem analogia com o "mundo de Francisco", podendo chamar para si a função de dar visibilidade a uma agenda de contenção das forças de destruição?

Relendo o Caderno 13 de Gramsci das Notas sobre Maquiavel e o belo livro do Embaixador Lauro Escorel, Introdução ao pensamento de Maquiavel, pude refletir sobre o retorno da questão do “mito” do Condottiero ideal, projetado para o exercício da política no plano internacional. Já que a grande política como arte e pensamento é decisiva para a solução da crise orgânica. Reafirmar o desafio da política sem sucumbir à razão cínica exige levar em conta as lições de Maquiavel e de Hobbes sobre o lugar do temor, do medo, do pânico — Max destacando a questão da produção da segurança na formação do Estado.

Vale ler o ponto na reflexão de Lauro Escorel sobre a política externa, junto com a releitura do Caderno do Cárcere 13, de Antonio Gramsci, que teve nova tradução pela IGS: “por força do... imperativo de segurança e o medo da destruição mútua...”. Como esboçar a agenda de construção de lógicas que abram espaço para a grande política, reconhecendo as figuras da grande disputa em encontros de cúpula e outros momentos? No meio desta cena marcada por personagens grotescos e bufões de uma ópera macabra, repetem a “simpatia pelo diabo”; muitas figuras sem máscara performam na dimensão de ações através de banhos de sangue.

A destruição violenta “soreliana” não vai em direção construtiva, não se cruza com a eticidade “crociana” em chave hegemônica. Nesta cena de discípulos de Olavo de Carvalho, a filosofia vira ignorância e grosseria com sarcasmo. Mas, neste momento, Gramsci pode trazer para a cena uma pedagogia da hegemonia. Posto que, através dos gestos e restos da figura do moderno príncipe, através de governantes e partidos que tentem agir no contrapelo, se pode retomar a ideia da grande política, mesmo quando a modernidade afundou a soberania nos resíduos da putrefação de um novo ciclo de declínio.

A pergunta que cabe no teatro dos absurdos da cena atual é: Lula pode desempenhar um papel de ator nesta cena como um Mandela, Lenin ou Gandhi, questionando a razão cínica da guerra e do moinho satânico que chamam mercado, jogando na via alternativa do realismo da saúde e da vida, da humanidade e do planeta? Certamente é muito para uma liderança que tem como suporte um país tão dividido, onde uma catarse imaginária é mais que necessária.

O Príncipe, de Maquiavel, apontava para o mito necessário de um Condottiero na criação do Estado Nacional Italiano; o Moderno Príncipe, de Gramsci, apostava na função dirigente e construtiva de um Partido de tipo inteiramente novo, como dirigente intelectual e construtor da vontade coletiva, para a superação do fascismo pela via da democracia e do Estado ampliado para o socialismo num pós-humano. Já como em Octavio Ianni, o novíssimo Príncipe cibernético ou eletrônico tem que se encarnar nos personagens existentes, como uma tentativa de gerar o mito educativo mobilizador, aquele que lida com o que ainda resta de resíduo da humanidade para o devir pós-humano.

A questão da política da vida, na chave da segurança alimentar, da questão ambiental e do armistício mundial, exige uma virada simbólica que vá além do recorte soberano nacional. Os novos acrônimos da cooperação internacional, como os BRICS, desde o Sul Global, acionam duas forças: de um lado o capitalismo chinês e de outro os fóruns sociais mundiais. Lula é um personagem dividido entre estas duas faces que questionam a força predatória de atores funestos do fim da Pax Americana.

Reler Maquiavel na chave do poder e da guerra e na reflexão sobre a catástrofe na ordem do dia, com o tema das performances políticas capazes de repensar o desafio das metamorfoses da soberania sem a regressão aos modos totalitários. A vida está por um fio na véspera da reunião de Moscou, onde temos oportunidade para gerar ações nos termos das lições de Maquiavel, que colocou nas nossas mãos a combinação entre arte e ciência na relação com o poder da vontade, dando base realista para uma utopia.

Hobbes acentuou o medo como princípio ordenador para gerar a megamáquina soberana, Gramsci indicou a fragilidade e destrutividade dos caminhos da estadolatria. A deriva totalitária perdeu por um tempo, mas retornou no capitaloceno. Todo gesto de insubmissão dos atores sociais e de personagens da cena pública pode contribuir para desacelerar a destruição e barrar o ímpeto da barbárie.

Neste sentido, Lula pode aproveitar a autonomia relativa do lugar de ator na chave mítico-política para avançar na direção de um bloco que atravessa fronteiras, usando a força dos que conseguem se opor ou fogem do caráter devastador da guerra e dos ventos totalitários.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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