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Carolina Barboza Lima

Advogada tributarista, Árbitra pelo Chartered Institute of Arbitrators, Professora Universitária, Diretora do Instituto dos Advogados Brasileiros, Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos e Transformação Social (GPDHTS) da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

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Lula na ONU: A agenda tributária global como pilar da (in)justiça econômica

A leitura do discurso de Lula na ONU revela que as soluções para os dilemas do século XXI não residem apenas em acordos políticos ou inovações tecnológicas

O presidente Lula dá entrevista coletiva na ONU - 24/09/2025 (Foto: REUTERS/Bing Guan)

Após a abertura da Assembleia Geral da ONU, as palavras proferidas pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva ecoam com particular relevância. Nossa tarefa, agora, é decifrar o subtexto e a tessitura de seu discurso sob a ótica da política tributária contemporânea. Em sua essência, a alocução presidencial tece um panorama de desafios globais prementes: a chaga da desigualdade, a inexorável crise climática, o clamor pela paz e a indispensável reforma da governança internacional. Contudo, é precisamente dentro dessa vasta moldura que emergem pontos de profunda pertinência ao Direito Tributário, ainda que o termo "tributo" nem sempre seja verbalizado. Afinal, essas questões estão intrinsecamente enraizadas em discussões sobre justiça econômica, mecanismos de financiamento para o desenvolvimento global e a reestruturação da arquitetura financeira internacional.

Combate à Desigualdade e à Concentração de Riqueza: O Imperativo Fiscal

O cerne da mensagem do Presidente Lula reside na urgência inadiável de combater a escalada da desigualdade social e econômica, tanto em âmbito nacional quanto global. Este é um eixo crucial que se entrelaça visceralmente com as políticas e o Direito Tributário. Reiteradamente em sua oratória, o presidente retoma a pauta da tributação dos super-ricos e da mitigação dos paraísos fiscais como pilares para a construção de um mundo mais equânime.

Embora o discurso possa não empregar a expressão literal "imposto sobre grandes fortunas", a ênfase recai inequivocamente sobre a necessidade de que "os mais ricos paguem a sua parte". A veemente crítica à evasão fiscal e ao uso de paraísos fiscais para blindar fortunas ilícitas ou legalmente questionáveis é notória. A visão é clara: resgatar bilhões de dólares que, de outro modo, poderiam ser direcionados ao financiamento do combate à pobreza e à materialização de investimentos sociais urgentes. Tal abordagem não apenas sugere, mas clama pela implementação de mecanismos de tributação progressiva e por uma cooperação internacional robusta, capaz de coibir práticas ilícitas e de elisão fiscal predatória.

"Democracias sólidas vão além do ritual eleitoral.

Seu vigor pressupõe a redução das desigualdades e a garantia dos direitos mais elementares: a alimentação, a segurança, o trabalho, a moradia, a educação e a saúde.

A democracia falha quando as mulheres ganham menos que os homens ou morrem pelas mãos de parceiros e familiares.

Ela perde quando fecha suas portas e culpa migrantes pelas mazelas do mundo.

A pobreza é tão inimiga da democracia quanto o extremismo.

Esse é o objetivo da Aliança Global que lançamos no G20, que já conta com o apoio de 103 países.

A comunidade internacional precisar rever as suas prioridades:

(...)

- Definir padrões mínimos de tributação global, para que os super-ricos paguem mais impostos que os trabalhadores.”

Financiamento para o Desenvolvimento Sustentável e Ação Climática: Ainda na tribuna da ONU, o Presidente Lula elevou a questão do financiamento como um pilar inarredável para enfrentar a crise climática e impulsionar o desenvolvimento sustentável nas nações em desenvolvimento. Esta pauta, central para a geopolítica atual, traz consigo implicações diretas e profundas para a busca por novas e inovadoras fontes de recursos.O discurso presidencial, nesse sentido, não se limitou a um apelo genérico; ele clamou enfaticamente por "novas fontes de financiamento" e por um irrestrito cumprimento dos compromissos financeiros já assumidos pelas nações mais desenvolvidas. Tal demanda, em sua essência, abre um fértil campo para discussões sobre a implementação de impostos globais ou taxas incidentes sobre atividades específicas. Aqui, vislumbramos a potencialidade de debates sobre a criação de impostos sobre transações financeiras internacionais, a tributação de emissões de carbono – ainda que não nomeados explicitamente no discurso – ou, de forma mais ampla, uma recalibração das contribuições financeiras exigidas das economias mais opulentas.A premissa subjacente a essa visão é a da responsabilidade compartilhada, porém diferenciada, um princípio que ressoa profundamente no Direito Ambiental Internacional e que, invariavelmente, se traduz em encargos financeiros desproporcionais para aqueles que mais contribuíram para o problema e que detêm maior capacidade de solucioná-lo. É um convite à reflexão sobre como o arcabouço tributário pode ser mobilizado para edificar um futuro mais sustentável e equitativo.

“Fomentar o desenvolvimento sustentável é o objetivo do Fundo Florestas Tropicais para Sempre, que o Brasil pretende lançar para remunerar os países que mantêm suas florestas em pé.

É chegado o momento de passar da fase de negociação para a etapa de implementação.

O mundo deve muito ao regime criado pela Convenção do Clima.

Mas é necessário trazer o combate à mudança do clima para o coração da ONU, para que ela tenha a atenção que merece.”

Reforma da Arquitetura Financeira Global e Dívida Externa: O questionamento incisivo sobre a adequação da atual arquitetura financeira global e o peso asfixiante da dívida externa representa um capítulo à parte, cuja ressonância tributária é profunda, ainda que sua natureza não seja diretamente fiscal. Tais temas exercem um impacto estrutural sobre a capacidade inerente dos Estados de arrecadar recursos e, consequentemente, de investir no bem-estar de suas populações.Ao abordar a "asfixia" financeira imposta pela dívida externa e ao clamar pela sua "reestruturação", o líder brasileiro toca diretamente na medula da capacidade fiscal dos países. A lógica é irrefutável: a diminuição dos recursos vultosos anualmente direcionados ao serviço da dívida não significa apenas um alívio orçamentário, mas a crucial abertura de "espaço fiscal". Este espaço é a precondição para que os governos possam destinar investimentos públicos robustos em áreas vitais como saúde, educação e infraestrutura – setores primordiais financiados, em última instância, pela arrecadação tributária.

A reforma proposta por Lula transcende a mera renegociação de passivos; ela almeja um cenário global em que os países possam exercer sua soberania fiscal, utilizando sua própria arrecadação tributária de forma mais autônoma, estratégica e eficaz. O objetivo final é claro: maximizar o uso dos recursos internos para promover o desenvolvimento endógeno e o bem-estar coletivo, reconfigurando as bases de um sistema que, por vezes, opera contra os interesses das nações mais vulneráveis.

“A pobreza é tão inimiga da democracia quanto o extremismo.

Por isso, foi com orgulho que recebemos da FAO a confirmação de que o Brasil voltou a sair do Mapa da Fome neste ano de 2025.

Mas no mundo, ainda há 670 milhões de pessoas famintas. Cerca de 2,3 bilhões enfrentam insegurança alimentar.

A única guerra de que todos podem sair vencedores é a que travamos contra a fome e a pobreza.

Esse é o objetivo da Aliança Global que lançamos no G20, que já conta com o apoio de 103 países.

A comunidade internacional precisar rever as suas prioridades:

  • Reduzir os gastos com guerras e aumentar a ajuda ao desenvolvimento;
  • Aliviar o serviço da dívida externa dos países mais pobres, sobretudo os africanos;”

Considerações Finais. Em síntese, o pronunciamento do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva na Organização das Nações Unidas transcende a retórica diplomática. Ao advogar veementemente por uma ordem global mais justa e equitativa, seu discurso lança luz sobre a distribuição de encargos e benefícios econômicos como um imperativo moral e prático. A busca incessante por um financiamento robusto para os desafios globais mais prementes – da emergência climática à erradicação da desigualdade – invariavelmente converge para um debate crucial sobre o papel do Direito Tributário. 

Nessa interseção, emergem discussões fundamentais, como a tributação progressiva, que postula que aqueles com maior capacidade econômica devem, proporcionalmente, contribuir mais para o bem-estar coletivo. Igualmente premente é a cooperação fiscal internacional, indispensável para a harmonização e colaboração entre nações, visando coibir a elisão e a evasão fiscal que sangram os orçamentos públicos, especialmente em contextos transnacionais que se valem de paraísos fiscais e da estrutura de multinacionais. Por fim, a audaciosa perspectiva de novos instrumentos fiscais globais se manifesta na possibilidade de conceber tributos ou mecanismos de contribuição em nível internacional, desenhados especificamente para financiar bens públicos globais e responder a desafios que transcendem fronteiras.

A leitura jurídico-tributária do discurso de Lula na ONU revela, portanto, que as soluções para os dilemas do século XXI não residem apenas em acordos políticos ou inovações tecnológicas. Elas estão, em grande medida, intrinsecamente ligadas à coragem de reimaginar e reformar o sistema fiscal global, transformando-o em uma ferramenta poderosa a serviço da equidade, da sustentabilidade e da paz duradoura.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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