Lula reage à cruzada dos EUA e se aproxima dos evangélicos
A presença do bispo Samuel Ferreira no Planalto e a nomeação do evangélico Jorge Messias ao STF sinalizam que Lula tenta disputar o campo da fé para 2026
De congressos religiosos em Balneário Camboriú a cultos transmitidos de Osasco, a nova invasão evangélica dos Estados Unidos pretende moldar mentes, corações, votos e alianças. Por trás das orações, um projeto político transnacional ameaça contaminar o processo democrático brasileiro às vésperas das eleições de 2026. O que parecia um intercâmbio religioso inofensivo transformou-se num movimento calculado de ingerência espiritual e política. Pregadores norte-americanos — ligados à ultradireita cristã de Donald Trump — cruzaram o continente para proclamar no Brasil “profecias” sobre limpeza moral, libertação do país e renascimento espiritual.
Segundo investigação do Intercept Brasil, nomes como Christopher Beleke, Chantell Cooley e Guillermo Maldonado participam de eventos em cidades estratégicas, sempre acompanhados de políticos da extrema-direita brasileira. Em Balneário Camboriú, Beleke anunciou que o Brasil “passará por uma limpeza como a de El Salvador”. Em outro culto, Cooley ajoelhou-se ao lado de Flávio Bolsonaro, transformando o gesto em cena viral de “unção política”.
Essa nova cruzada mistura teologia da prosperidade, guerra espiritual e discurso eleitoral. O evangelho é adaptado ao vocabulário do trumpismo: “salvar a nação”, “restaurar valores” e “expulsar o mal”. Por trás das palavras, esconde-se uma estratégia de influência ideológica e mobilização eleitoral planejada para operar nas bases evangélicas que hoje formam mais de um quarto do eleitorado brasileiro.
Em nome de Deus
Com o desmonte da organização criminosa que tentou dar um golpe de Estado em 2023, as direitas brasileiras atravessam o pior momento desde o impeachment de Dilma Rousseff. A campanha para as eleições presidenciais de 2026 está em pleno andamento, com as pesquisas apontando para a reeleição do presidente Lula. É justamente neste cenário que surge uma nova frente de batalha travada em nome de Deus.
O Intercept Brasil vem revelando em sucessivas reportagens a chegada de um grupo de pregadores evangélicos norte-americanos com a missão ambiciosa de repetir no Brasil a estratégia que ajudou a eleger e reeleger Donald Trump. Esses pregadores se articulam com pastores brasileiros de grande alcance midiático da chamada “nova onda neopentecostal”, interessada em ampliar poder político e influência econômica. A mensagem segue o mesmo roteiro usado nos EUA: uma mistura de fé, nacionalismo e anticomunismo, travestida de espiritualidade.
Nos Estados Unidos, a captura da fé pela política começou nos anos 1980 com Ronald Reagan e a chamada Moral Majority, liderada por Jerry Falwell. Décadas depois, Donald Trump refinou esse modelo, transformando pastores em cabos eleitorais e igrejas em comitês de campanha. Agora, essa teologia política desembarca no Brasil sob a forma de uma “missão espiritual”.
As raízes do império
A aliança entre extremistas religiosos e políticos de direita e extrema-direita é um fenômeno transnacional. Nos Estados Unidos, Donald Trump foi elevado ao status de “instrumento divino” por pastores como Paula White e Franklin Graham. No Brasil, o mesmo mecanismo tenta ser replicado para transformar qualquer um dos indicados pelo bolsonarismo ou da direita liberal em “abençoado por Deus”, uma forma mais intensa do que a adotada nas campanhas que elegeram Jair Bolsonaro, em 2018, e Trump, em 2024.
Quando essas ideias se combinam a uma militância organizada e a uma rede internacional de financiamento, amparadas pelas redes digitais, nasce um projeto político disfarçado de salvação espiritual. “Em nome de Deus e do evangelho de Jesus”, esses profetas do império agem como catalisadores do ressentimento, explorando medos, crises e frustrações sociais para restaurar uma agenda messiânica.
A máquina político-religiosa
As diversas igrejas neopentecostais operam como um aparato político sofisticado e intensificam a mobilização de suas bases para garantir mandatos a candidatos fiéis e alinhados com suas pautas. São várias as denominações, mas o objetivo é o mesmo: misturar crise e profecia, e comparar disputa política à “guerra espiritual”. Nas campanhas eleitorais no Brasil, pastores costumam convocar fiéis a “orar com vigor para derrotar a esquerda e o comunismo ateu”.
A articulação da guerra espiritual, que pregadores estrangeiros querem robustecer no Brasil com vistas às eleições de 2026, encontra terreno fértil nas igrejas já estruturadas nacionalmente, formando um núcleo convergente onde fé e política se fundem num grande projeto eleitoral conservador.
Novo campo de batalha
A disputa de 2026 é uma guerra de narrativas. De um lado, o campo democrático progressista ancorado na reconstrução do país e nos avanços sociais do governo Lula. De outro, a direita e a extrema-direita reorganizam-se em torno de novos messias, tentando manter vivo o catecismo das direitas por meio da fé.
A ameaça torna-se mais grave quando essa invasão religiosa da política se alia de forma orgânica aos partidos conservadores, que, em troca de votos, abrem suas portas para líderes espirituais travestidos de representantes do povo. É por essa brecha que o fundamentalismo penetra o Estado, enchendo o Congresso de extremistas religiosos dispostos a transformar fé em lei e dogma em política pública.
Nas redes sociais, o cenário é ainda mais tóxico. Políticos e pastores da direita amplificam narrativas messiânicas, disfarçando propaganda eleitoral em cruzada moral. O púlpito e a tribuna viraram palco de desinformação; e as redes, uma versão ampliada de ambos — púlpito e tribuna digital. Assim, a aliança entre religião, partidos e algoritmo forma o tripé mais perigoso para a democracia contemporânea: o que converte o fanatismo em projeto de poder e a mentira em instrumento da fé.
Lula começa a reagir
Na quinta-feira, 16 de outubro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebeu no Palácio do Planalto o bispo Samuel Ferreira, da Assembleia de Deus Madureira, considerada a maior denominação evangélica do país. À primeira vista, um encontro institucional. Na prática, uma mudança de rota estratégica. Lula parece ter compreendido que não basta reagir à nova cruzada evangélica fomentada por redes ultraconservadoras dos Estados Unidos: é preciso enfrentá-la com estratégia política.
A reunião não foi um gesto isolado. É o primeiro passo de uma ofensiva preventiva. Uma tentativa de neutralizar a influência estrangeira que avança sobre igrejas brasileiras, financiando redes de desinformação e campanhas moralistas disfarçadas de evangelização.
Bispo Samuel Ferreira e a Conamad
O bispo Samuel Ferreira é presidente executivo da Convenção Nacional das Assembleias de Deus Ministério Madureira (Conamad), maior convenção pentecostal evangélica do país. A instituição reúne milhares de pastores e obreiros, milhões de fiéis e uma ampla rede de templos, escolas, emissoras e missões no Brasil e no exterior. Transformou-se em um dos maiores polos religiosos e midiáticos do país, com forte presença nas redes sociais e transmissões ao vivo de cultos e congressos.
Isso ajuda a explicar por que Lula escolheu o presidente da Conamad, bispo Samuel Ferreira, para o encontro no Palácio do Planalto, ao sinalizar a indicação do evangélico batista Jorge Messias, Advogado-Geral da União, como ministro do STF. É uma ponte simbólica para reconstruir a relação do governo com uma parte essencial do eleitorado brasileiro — o evangélico.
Estratégia ou contra-ataque
Ao abrir as portas do Planalto a Samuel Ferreira, Lula enviou uma mensagem dupla. Aos fiéis, de respeito e inclusão; aos articuladores da cruzada evangélica norte-americana, de resistência e soberania. O gesto é, ao mesmo tempo, político e teológico. Afirma a fé como espaço de pluralidade, não de dominação nem de submissão.
A estratégia de Lula difere da adotada em 2018, quando o campo progressista subestimou a força política das igrejas evangélicas. Agora, o presidente parece compreender que ignorar o universo da fé é entregar de bandeja o controle simbólico do eleitorado popular à direita e extrema-direita. Em vez de ceder, busca disputar o sentido da espiritualidade — reapropriando a mensagem cristã como ética de solidariedade e justiça social.
A política não pode mais ignorar o púlpito
O encontro com o bispo Ferreira e a presença de Jorge Messias — o evangélico indicado por Lula ao STF — sinalizam que o governo pretende neutralizar a ofensiva ideológica dos EUA no campo espiritual por meio de diálogo. O mais importante, no entanto, é o movimento liderado pelo presidente de aproximação do governo com lideranças evangélicas.
Não se trata de cooptação, mas de disputa de narrativa e de reconquistar o discurso da fé libertadora contra a fé que aprisiona, a espiritualidade solidária contra o moralismo de controle. Diante de uma cruzada global que mistura Bíblia, Big Data e poder geopolítico, o presidente parece apostar numa via que inclua o campo evangélico. A reação de Lula é, também, um gesto de soberania e defesa da democracia.
No encontro da quinta-feira 16, no Planalto, o presidente destacou a importância do trabalho pautado no respeito, fraternidade e fé: “Um encontro especial, de emoção e fé, compartilhado com o advogado-geral da União, Jorge Messias, e a ministra de Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann”. E reiterou o crescimento da igreja, destacando seu respeito pela Assembleia de Deus: “O pastor nos relatou o crescimento da igreja e o acolhimento aos fiéis. Pude reiterar a relação de respeito que tenho pela Assembleia de Deus e o relevante trabalho espiritual e social promovido pela igreja”, concluiu Lula em seu perfil no X.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

