Manifesto por um empreender regenerativo: o sal da Terra
Empreender no século XXI exige mais do que lucro: é hora de redesenhar o mercado com ética, enraizamento e compromisso com a vida coletiva
O que você faz quando percebe que as regras do jogo mudaram, mas ninguém avisou aos jogadores?
Estamos exatamente nesse ponto de ruptura. A economia contemporânea escancara paradoxos estruturais que não cabem mais debaixo do tapete. Medimos sucesso com base no crescimento do PIB, como se ele bastasse — ignorando o colapso ambiental e as múltiplas dimensões do bem-estar coletivo.
Geramos riqueza extraordinária e também desigualdade extrema. Desenvolvemos tecnologias que conectam o mundo inteiro, mas fragmentam comunidades e aceleram um ritmo de vida que deixa pouco espaço para reflexão ou propósito.
Thomas Piketty demonstrou que, quando o retorno do capital supera o crescimento da economia (r > g), “o capitalismo gera automaticamente desigualdades arbitrárias e insustentáveis”. Não é anomalia, é a engrenagem operando como foi projetada: a riqueza herdada cresce mais do que a riqueza do trabalho. David Graeber, por sua vez, revelou em Bullshit Jobs como milhões de pessoas vivem a angústia de empregos sem propósito, que não geram valor real à sociedade. Resultado: sofrimento psicológico em massa, travestido de produtividade.
Não é só uma questão moral. É matemática. É psíquica. E a conta dessa contradição histórica está chegando.
O que os economistas chamam de “externalidades” — esse termo técnico para nomear tragédias humanas e ambientais que o mercado não precifica, deixaram de ser ruídos do sistema. Tornaram-se ameaças existenciais. Como afirma o sociólogo Ulrich Beck em Risk Society, os riscos ambientais não são mais efeitos colaterais da industrialização, são seu principal produto. E o mais alarmante: surgem sem causa direta ou culpado visível, o que torna sua mitigação ainda mais complexa.
Não se trata mais de reformar o velho sistema: é hora de reescrever as regras do jogo.
É nesse espírito que inauguro esta nova cara da minha “velha” coluna no Portal Brasil 247 com uma provocação: e se o empreendedorismo, em vez de parte do problema, fosse parte da solução?
Um capitalismo revisto com alma, limites e direção. Um empreendedorismo que repara o passado e projeta o futuro, que produz com cuidado, que escala sem devastar, que cresce sem se desconectar. Um novo modo de existir economicamente, queira Deus, mais atento ao impacto que geramos, às relações que cultivamos, aos vínculos que sustentam a vida na Terra.
Esse modo de empreender não rejeita a globalização, mas a ressignifica com consciência, numa lógica de glocalização: um novo modo de pensar e agir que articula o global com o local, sem fragmentar, sem homogeneizar. Conectado, sim,mas com raízes. Digital, sim, mas sem desumanização.
Uma economia capaz de operar em escala planetária sem perder a focalização no que é concreto, vital e situado. Um território que não é apenas geográfico, mas afetivo, simbólico e ético.
E que usa a tecnologia não para substituir a vida, mas para reencantar conexões, reconstruir pertencimentos e regenerar propósito.
Não é negar o mercado, é redesenhá-lo para os desafios do século XXI. Expandir suas métricas. Incluir o que ainda não aparece nos balanços: a saúde dos ecossistemas, o bem-estar das pessoas. É capitalismo, sim, mas regenerativo. É lucro, sim , mas distribuído. É inovação, sim, mas enraizada.
Nos próximos dias, estarei no BRICS Business Forum, no Rio de Janeiro e o que mais me interessa nesse grupo — Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul — não é apenas seu peso econômico, mas sua pluralidade de caminhos. São países com contradições profundas e acertos próprios. Juntos, carregam a possibilidade rara de pensar desenvolvimento de forma mais colaborativa, contextualizada, enraizada nas realidades do Sul Global.
E isso me faz perguntar: que tipo de empreendedorismo queremos fomentar?
Modelos que funcionam em territórios como os nossos, com desigualdades históricas, recursos abundantes mas mal distribuídos, populações criativas que raramente tiveram o incentivo necessário para inovar como modo de sobrevivência?
O empreender que precisamos - Vamos direto ao ponto: empreender hoje não pode ser sobre criar o próximo unicórnio. Tem que ser sobre resolver problemas reais, com as pessoas certas, na escala certa, nos territórios certos.
E isso demanda:
- Pensar em redes, não em impérios. A obsessão por crescimento infinito gerou monstros que drenam o que está ao redor. Precisamos de negócios que cresçam fortalecendo o tecido social — não o rasgando.
- Integrar, não isolar. O empreendedor-herói é um mito solitário. Os melhores projetos nascem da colaboração entre saberes tradicionais e inovação, entre universidade e comunidade, entre lucro e propósito.
- Cuidar do território. Nenhum negócio acontece no vácuo. Todo empreendimento acontece em algum lugar, com alguém, usando recursos de algum ecossistema. Regenerar é devolver mais do que se tira.
A tecnologia tem papel central, mas não como protagonista e sim como poderosa e indispensável ferramenta.
Kate Raworth, com sua Economia Donut, nos oferece um compasso poderoso: é preciso atender às necessidades de todos, dentro dos limites do planeta. Isso significa garantir direitos sociais mínimos como saúde, educação e moradia, sem ultrapassar os limites ecológicos que sustentam a vida.
Mariana Mazzucato, por sua vez, mostrou como o Estado pode, e deve, atuar como motor da inovação transformadora. Tecnologias que hoje consideramos revolucionárias como internet, GPS, baterias, medicamentos, nasceram de investimentos públicos ousados.
Regular é pouco. É preciso desenhar novos mercados com coragem e propósito, guiando o progresso não pelo lucro imediato, mas pelo bem coletivo.
São ideias que já inspiraram políticas públicas e práticas inovadoras em várias partes do mundo, de Amsterdã ao BNDES. Mas ainda operam nas margens do sistema. Está na hora de trazê-las para o centro da prática econômica.
A oportunidade brasileira - O Brasil tem potencial real para liderar a transição para uma nova economia. Carregamos uma das maiores biodiversidades do planeta, jovens criativos de todas as idades, saberes tradicionais potentes e uma história viva de resistência coletiva. A cultura de coletividade vibra nas margens: nos mutirões da agricultura familiar, nas cooperativas de costureiras, nos bancos comunitários como o Palmas, nas redes de apoio que surgiram nas favelas durante a pandemia. Ela também se manifesta nas tradições quilombolas, indígenas e afro-brasileiras, onde o bem comum é parte da cosmovisão.
Avançamos em inclusão financeira. O Brasil bancarizou milhões de pessoas com o PIX, com as contas sociais digitais do Auxílio Brasil e com o MEI. Fintechs populares ampliaram o acesso. E iniciativas de microcrédito e moedas sociais mostram caminhos promissores.
Mas o que falta, mais do que capital, é uma mudança de mentalidade. Falta educação para o tipo de empreender que este século exige: um empreender consciente do território, comprometido com a vida em comum, que entende o impacto político e social de cada escolha produtiva.
Esse empreender pode ser social, regenerativo — e também digital. Pode gerar lucro, escalar, usar tecnologia de ponta — desde que não perca o enraizamento e a responsabilidade coletiva. Empreender no Brasil não pode continuar sendo só sobre abrir CNPJ ou “escalar rápido”. Tem que ser sobre resolver o que realmente importa — com ética, com conexão e com propósito.
Por Onde Começar - Não é preciso esperar a revolução. Ela já começou.Começou nos coletivos que usam tecnologia para organizar favelas. Nas cooperativas que conectam pequenos produtores a consumidores conscientes. Nas startups que enfrentam os gargalos do SUS. Nos movimentos que ocupam prédios abandonados para criar espaços de inovação social.
O futuro do trabalho não será definido apenas por algoritmos, automações ou diplomas técnicos, mas pelas escolhas políticas que fazemos, todos os dias, sobre como queremos viver. Trabalhar é mais do que produzir: é habitar o mundo, redistribuir tempo, reconhecer interdependências, gerar sentido. E a política, nesse contexto, não se limita ao Estado ou ao Congresso — ela lateja nas estruturas invisíveis que organizam nossos mercados, nossas tecnologias e nossas subjetividades.
Decidir como trabalhamos, o que valorizamos e a quem servem nossas inovações é um ato profundamente político e, no século XXI, também um gesto de sobrevivência coletiva.
Como canta Beto Guedes:
“Vamos precisar de todo mundoUm mais um é sempre mais que doisPara melhor juntar as nossas forçasÉ só repartir melhor o pãoRecriar o paraíso agoraPara merecer quem vem depois.”
Esse é o espírito que precisamos recuperar. Não para voltar ao passado, mas para redesenhar o futuro, onde trabalho, terra e tecnologia conversam em harmonia.
A nova economia não virá dos conselhos das grandes corporações.
Ela vai emergir das margens — onde sempre nasceram as revoluções que realmente importam.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

