Maria Inês Barbosa: não se pode calar a voz de uma mulher negra vitoriosa
Até que ponto nós que colocamos a democracia em tão alto conta, temos sido capazes de ouvir as Marias Inês que estão dizendo e fazendo coisas imprescindíveis
Brasil, chegou a vez de ouvir mais uma Maria cuja voz tentaram calar. Para falar do ocorrido sem reduzir nossa protagonista à violência vivida, a referência ao memorável samba da Mangueira me parece a forma mais afetuosa de conduzir a discussão para o pensamento-ação de Maria Inês da Silva Barbosa.
Ela que é professora universitária, doutora em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo – USP, ativista referência nas lutas pelo fortalecimento do Sistema Único de Saúde - SUS e por políticas públicas para a superação do racismo no Brasil, a exemplo da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Sua trajetória individual tem profunda dimensão coletiva.
Ocorre que esses e outros talentos e virtudes não foram suficientes para protegê-la do grave episódio de violação de integridade que sofreu nesta quarta-feira, 30.7. Tendo sido convidada a contribuir com os debates da 15ª Conferência Municipal de Saúde de Cuiabá, Mato Grosso, a especialista teve sua fala interrompida pelo prefeito da cidade, logo no início, sob o argumento de que não aceitaria que ela utilizasse vocábulos de linguagem neutra, uma vez que isso não estaria “em conformidade com as nossas regras”.
“Nossas regras” de quem? As reações do público presente sugerem que a medida desse “nós” era bem menor do que o prefeito quis fazer crer. A desaprovação foi além do grupo de especialistas que ocupava o auditório do evento. Ganhou as redes sociais e outros veículos de comunicação, fazendo com que o ocorrido alcançasse repercussão nacional. Maria Inês Barbosa, felizmente, além de não se curvar ao agressor, recebeu acolhimento de militantes, amizades de longa data e pessoas que ela nunca conhecerá.
Mas voltando à cena e analisando o perfil subjetivo do prefeito cujo nome não me interessa promover, uma ponderação merece destaque. Teria sido mesmo apenas o uso de um “todes” o fundamento para que ele se sentisse tão impelido para promover aquela performance de autoridade absoluta, seguro de que seus caprichos teriam força de lei capital?
Maria Inês Barbosa é uma mulher negra retinta, altiva, inteligente e encantadora. Os fachos brancos em seus belos dreads, comumente arrumados em penteados elegantes, podem servir para quem queira calcular sua idade em meio à curiosidade diante da vitalidade que expressa. Mas se vista através das lentes do racismo e do sexismo, sua existência certamente não estaria associada a esses adjetivos.
O sujeito que a agrediu, certamente, faz uso desses óculos. Sua atitude revela uma personalidade impermeável à relevância da trajetória da intelectual que havia sido convencida a proferir a conferência magna “Consolidar o SUS: Com a Força do Povo, Participação Social e Políticas Públicas”. Também pouco se dimensiona o fato de que recentemente saímos do mês do orgulho LGBTQIA+ e estamos finalizando o mês da mulher afro-latino-americana e caribenha, que no Brasil fez o 25 de julho se tornar data cívica em celebração à Tereza de Benguela, legendária liderança do Quilombo do Piolho, localizado no atual estado de Mato Grosso, no século 18.
Ainda que se visse obrigado a permanecer na presença de Maria Inês Barbosa, ele não possui repertório para suportar o que viria depois de uma saudação que começou assim:
“Saúdo àquelas e aqueles inviabilizadas(os)(es), vozes emudecidas sem cuja existência não existiríamos: presentes; limpam, cozinham, servem, sofrem, riem, choram, estão nos becos e vielas, de balas perdidas que encontram corpos negros, estão nas periferias, nos centros, nas aldeias, na vida urbana, rural, nas palafitas, mulheres violadas, subjugadas, aviltadas, em distintas identidades de gênero, pelo jugo do patriarcado, migrantes, àquelas(es) que sequer imaginam que delas(es) falamos, presentes... Somos Negras, Negros, Negres, Indígenas, Ciganas(os)(es), Brancas(os), Branques, LBTGQIAPN+, Pessoas com deficiência; enfim a plenitude da diversidade de existências, em contextos políticos, econômicos, culturais, que valorizam ou negam a vida.”
Há muitas décadas, Maria Inês tem falado sobre o “projeto político emancipatório necessário para a consolidação do direito à saúde” neste país fundado em violências que se mantém como pilares. A ela que acompanha os vários ataques à saúde importa que se promova a “reconquista das diretrizes e princípios do SUS em um novo eixo contraditório de articulações: saúde como processo de acumulação e reprodução do capital; saúde e desenvolvimento científico e tecnológico; saúde e democratização do seu acesso como direito”.
Em momentos como este, em que um agressor escancara práticas da chamada necropolítica, temos a tendência de dizer que não comungamos de sua truculência e ódio. Nesse sentido, deixo aqui uma provocação para que sejamos capazes de irmos além dessa aversão ingênua: Até que ponto nós que colocamos a democracia em tão alto conta, temos sido capazes de ouvir as Marias Inês que estão dizendo e fazendo coisas imprescindíveis para o bem de todas, todes e todos?
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

