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Silvio Almeida

Ex-ministro dos Direitos Humanos

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Más notícias: Wakanda não existe

O racismo não se importa com sua carteirinha de militante

Más notícias: Wakanda não existe (Foto: Divulgação)

Queria não ter que dar esta notícia que pode abalar muita gente, mas alguém tem que fazê-lo e não sou de fugir da raia. Então, vamos lá:

Wakanda não existe

Não participa da ONU. Não é membro da Zona de Livre Comércio Continental Africana. Não compõe a União Africana, não tem PIB, IDH, moeda própria, nem sequer um aeroporto onde a gente possa pousar discretamente para uma reunião com o rei T’Challa.

Sim, é uma tristeza. Não haverá vibranium para salvar nossos povos da dependência econômica, nem um trono a partir do qual possamos governar a partir da fusão perfeita entre sabedoria ancestral e ciência de ponta. Os portais para a cidade escondida debaixo da cachoeira não se abrirão quando batermos nossas lanças no chão.

É ficção. Bonita, poderosa, simbólica — mas, ainda assim, ficção. E o problema não é ela não existir; o problema é agirmos como se existisse. Pior: é dar crédito aos que pensam ser porteiros de Wakanda. Pessoas autoritárias — e porque não dizer, ridículas — dispostas a controlar quem pode ou não atravessar os portões deste reino imaginário ou dizer quem pertence ou não ao movimento negro, como se a identidade fosse o mesmo que ir a uma balada cujo acesso se desse por face control do segurança de plantão.

Wakanda e o Pantera Negra, seu Rei, foram criados em 1966 por dois homens brancos e judeus, nascidos em Nova York, no Brooklyn — Jack Kirby e Stan Lee. No auge da luta pelos direitos civis, os dois artistas imaginaram um país africano que nunca fora colonizado. Uma civilização onde o conhecimento ancestral caminha de mãos dadas com tecnologia sofisticadíssima; onde o trono não é ocupado por invasores, mas por heróis da nação; e onde o metal vibranium é uma riqueza natural que pertence apenas ao povo de Wakanda.

Por isso mesmo, antes de mais nada, é preciso registrar meu agradecimento e minhas mais sinceras homenagens a Stan Lee e Jack Kirby. Wakanda é uma criação da cultura pop que tocou o coração de milhões de pessoas, especialmente meninos e meninas negros e negras. É o símbolo de um sonho ancestral de que o desenvolvimento, a soberania e a beleza não nos foram arrancados para sempre pela violência da colonização.

Enquanto isso, os países africanos reais — sim, eles existem — estão ocupados com seus dilemas. A Nigéria discute como reduzir sua dependência do petróleo. O Senegal investe pesado em educação e infraestrutura. O Quênia lidera o desenvolvimento de soluções digitais no continente. Gana debate reestruturação da dívida externa. A Etiópia constrói alianças no BRICS. A África pensa o futuro, sem erva coração e nem traje de vibranium.

Do mesmo modo, aqui no Brasil, o extermínio da juventude negra avança. A militarização da vida cotidiana segue firme. A desigualdade racial se torna um monumento à falta de projeto de país. A precarização do trabalho se aprofunda. E, no entanto, há quem esteja mais interessado em regular a entrada em Wakanda do que em disputar o orçamento público.

É como se estivéssemos numa casa pegando fogo, mas preocupados em saber quem pode ou não sentar no sofá.

Mas eu preciso esclarecer uma coisa importante, e que pode parecer paradoxal: o mundo não é nenhuma fantasia, mas não se muda o mundo sem fantasiar.

Como o homem negro, socialista e republicano que sou, digo sem hesitar: como meu ídolo maior, Luiz Gama, quero um mundo sem reis e rainhas, mas no plano da politica do imaginário reivindico a nação de Wakanda porque acredito que todo ser humano tenha o direito à fantasia.

Porque se os europeus podem ter seus cavaleiros, seus reinos medievais, seus feudos encantados, seus elfos brancos, seus anéis de poder e seus dragões…

Se os nórdicos podem ter o Anel dos Nibelungos, os deuses vikings, Thor e Valhalla…

Se podem se reconhecer em O Senhor dos Anéis, Game of Thrones, Duna e o que mais a imaginação permitir…

Por que nós, pessoas negras, não podemos também ter as nossas próprias fantasias? Nossos heróis imaginários? Nossos mitos?

Por que não podemos sonhar com heróis que se pareçam conosco, com seus reinos encantados, suas personalidades complexas — mesmo que tudo seja fictício?

E olha, já aviso aos fiscais do gosto e desejo alheios:

Eu adoro O Senhor dos Anéis, de Tolkien.

Adoro O Anel dos Nibelungos.

Adoro Game of Thrones (e Wild Cards), de George RR Martin.

Sou completamente apaixonado por Duna e a saga de Paul Atreides — e vou continuar lendo, vendo filmes e séries e me emocionando sem ter vergonha. Não estou nem aí.

Eu reivindico o direito à fantasia. Minha filha e todos os demais filhos e filhas do mundo têm direito de viver, nem que por alguns momentos, em um território imaginário.

Portanto, o que eu estou dizendo sobre Wakanda nem de longe é isolamento ou algum tipo pernicioso e poético de identitarismo.

É exatamente o contrário: é uma reivindicação de humanidade, e eu estou conversando com quem me lê agora no campo da política. Sem fantasia, sem imaginação, sem sonho não existe política e muito menos a de que precisamos: uma política de libertação.

Quero que sejam contadas as histórias do meu povo, sim — minhas raízes, minhas cosmologias, meus mitos.

Mas também quero — e tenho o direito de — conhecer e até me reconhecer nas histórias de outros povos, que são parte da história da humanidade.

Meu ponto de partida é a minha condição de homem negro da diáspora, latino-americano e brasileiro.

É a partir daí que eu olho o mundo.

Mas o que eu reivindico é o direito de tocar o que há de mais universal: a imaginação humana, a beleza da literatura, a potência simbólica da arte.

E aqui faço uma pausa para dizer: sim, há quem não goste do termo “latino-americano”, por considerá-lo um nome dado pelo colonizador.

Mas eu também só sou negro porque um dia alguém — sob a lógica do colonialismo — decidiu me classificar a partir de uma alteridade radical me chamando de “negro”.

Minha identidade nasce da violência, mas também da luta contra toda a desgraça que cercou meu povo.

Por isso, eu me aproprio do ser negro e latino-americano.

Sou filho da diáspora africana, sou negro. Sou brasileiro. Sou um homem negro e brasileiro. E sou latino-americano.

Negro, brasileiro, latino-americano.

Faço disso não uma cruz ou uma fixação identitária.

Tenho orgulho do que sou e do que ainda posso me tornar.

Reivindicar essa pertença é, também, um ato de reafirmação de minha condição (e não natureza) humana.

Quero me perder nas páginas silenciosas dos samurais de Yukio Mishima, com toda a sua contradição entre honra e abismo.

Quero escutar os ecos dos antigos mitos chineses, como os contados por Lu Xun, onde a resistência pulsa na linguagem, mesmo quando o mundo parece ceder.

Quero beber da sabedoria dos contos indígenas, dos relatos ancestrais que falam com as árvores, com os rios, com o céu — e que constroem, sem pressa, uma outra ideia de tempo e de verdade.

Quero atravessar as Mil e Uma Noites, onde Sherazade, com sua astúcia e imaginação, salva vidas contando histórias.

Mas é meu direito ler Platão e Aristóteles. Quero me curvar à beleza da tragédia grega, à precisão de Homero, à ousadia de Eurípedes.

Quero reencontrar Shakespeare, com seus reis trágicos e seus bufões mais lúcidos do que os nobres.

Quero me demorar nas memórias de Proust e nas tramas linguísticas de James Joyce.

Quero andar pelos corredores escuros da alma humana com Dostoiévski, e encontrar luz nos labirintos morais de Goethe e Thomas Mann.

Quero me perder (e me achar) nos espelhos de Jorge Luis Borges e ser confundido com todos os outros que me antecederam.

Quero chorar no realismo mágico de Gabriel García Márquez, onde o amor atravessa cem anos de solidão.

Quero me deixar tocar pelas páginas de Juan Rulfo, onde cada palavra é vento seco na alma latino-americana.

Quero olhar o mundo com olhos americanos e anticoloniais: de Baldwin a Morrison, de Angelou a Ellison — e com eles reinventar a América de baixo para cima.

Quero ler Octavia Butler, a rainha negra da ficção científica, com seu Kindred, nos ensinando que o tempo não é linear, e que nossa história pode ser dobrada para dizer verdades que desafiam qualquer temporalidade.

E, é claro, quero mergulhar na grandeza da literatura brasileira: nas ironias devastadoras de Machado de Assis, na reinvenção linguística e mítica de Guimarães Rosa, na fundação romântica de José de Alencar, na força árida e lírica de Raquel de Queiroz, no silêncio inquieto e filosófico de Clarice Lispector — e em tantas outras vozes que fizeram da língua portuguesa uma forma singular de pensar o mundo.

Quero tudo isso — porque sou negro. E ser negro não me limita: me posiciona. Sou o resultado da mediação entre o horror da colonização e a teimosia da vida. Uma vida que insiste em continuar, mesmo quando todas as condições para a sua continuidade parecem interditadas.

A cultura humana é meu direito, até porque parte dela só foi produzida porque meus ancestrais sangraram. Não quero ser reduzido ao gueto de uma identidade que me foi imposta de fora para dentro — quero o universal, e quero alcançá-lo a partir da minha história.

É por isso que, aqui, afirmo não um lema qualquer, mas uma consciência radical: gosto da proposta afrofuturista, porque o passado e o futuro são simultâneos. A perspectiva afrofuturista não é vestir roupa lurex e misturar sintetizador com atabaque. É pensar o tempo como espiral, dobra, tamborim, não como linha reta. Não se trata de esquecer o que fomos para sermos outra coisa. Trata-se de resgatar o que nos foi arrancado, imaginar o que ainda não nos deixaram ser — e, ao mesmo tempo, viver tudo isso agora.

É por isso que eu posso, sim, me reconhecer nos grandes mitos da humanidade — inclusive na história de dois homens judeus que, nos anos 60, criaram o Pantera Negra e o reino de Wakanda, na edição de número 52 de Quarteto Fantástico.

Afinal, toda grande literatura é uma travessia — e a travessia também é uma forma de saudar nossos ancestrais e em seu nome fazer justiça. Eu leio porque meu avô paterno era analfabeto e não podia ler. Cada linha que leio, cada palavra que escrevo é em nome do meu avô - o Sylvio - que só sabia assinar o próprio nome.

Porque a fantasia, seja africana, asiática, ameríndia, árabe ou europeia, não é fuga da realidade.

É, antes, uma forma de viver com a câmera ligada para o início — mas os olhos firmes no futuro.

Fantasiar, afinal, é insistir que o mundo ainda pode ser outro.

E ninguém mais do que o povo negro sabe o valor dessa insistência.

Mas voltemos ao início: nosso direito à fantasia não significa que devamos procurar Wakanda no GPS. Nem que devamos usar esse exercício de imaginação como critério de exclusão.

É que, de uns tempos pra cá, Wakanda começou a ser levada a sério. Sério demais. E do jeito errado.

Não como provocação afrofuturista, mas como uma espécie de protocolo de imigração. E aí, claro, surgem as perguntas:

— Você é negro, mas de onde?

— Você passou por onde?

— Qual foi seu percurso de dor?

— Tem diploma de sofrimento assinado por algum orixá?

Pois aviso: quando o debate racial se desvia da política vira a mais ordinária triagem identitária, que só serve para constranger e humilhar.

E aí o racismo sorri.

Nesse sentido, Achille Mbembe também é preciso ao evocar Fanon: “Raça é também o nome que se deve dar ao ressentimento amargo, ao irrepreensível desejo de vingança [...], à raiva daqueles que, condenados à sujeição, veem-se com frequência obrigados a sofrer uma infinidade de injúrias, todos os tipos de estupros e humilhações, e incontáveis feridas.”

E o ressentimento é péssimo conselheiro.

Nesse sentido, há movimentos recentes que tentam se dissociar da categoria “negro", tal como tem sido utilizada para direcionar políticas públicas de promoção da igualdade. A justificativa é a de que, na aplicação das políticas de cota, as comissões de heteroidentificação têm cometido injustiças contra pessoas “não suficientemente negras” segundo critérios fenotípicos, e que o movimento negro não as tem apoiado.

A crítica procede, pois erros têm sido cometidos. Também tem faltado ao movimento negro um debate rigoroso – e igualmente afetuoso – sobre o tema.

Dito isso, abandonar a atual forma de classificação racial que, há décadas, orienta uma das mais importantes políticas públicas da história do Brasil equivaleria a – como se diz popularmente – jogar a água suja da bacia junto com o bebê.

A resposta para distorções pontuais não é a destruição da política pública — é o seu aprimoramento. As bancas de heteroidentificação podem e devem ser aperfeiçoadas. Para isso, faz-se necessária a adoção de critérios técnicos, transparência, presunção de boa-fé e direito ao contraditório. Uma das propostas mais sensatas é esta: que a dúvida beneficie o candidato, nunca o prejudique.

A política de cotas deve ser motivo de orgulho, não de medo. O vestibular ou o concurso público não podem ser um novo campo de angústia para quem já vive o peso de ser negro no Brasil. Não se pode temer ser negro “de menos” em um país que sempre nos fez pagar o preço de sermos negros “demais”.

A raça é um construto ideológico, uma assombração que se abate sobre o mundo.

Exatamente por isso, diante da brutalidade do racismo, foi necessário ressignificar a raça e transformá-la em instrumento de reparação.

Com efeito, a raça, tal como aparece nas políticas públicas, não é afirmação de diferença natural, mas dispositivo metodológico que permite o enfrentamento da desigualdade.

A identidade negra é política, não biologia. É construção, não essência. É resultado de um processo histórico de luta contra o colonialismo, o capitalismo, a escravidão e todas as formas de dominação. Como ensinou Fanon, ser negro não é ter uma cor, é assumir uma posição no mundo. Como lembrou Lélia Gonzalez, é forjar-se na contradição — ser amefricano, brasileiro, ladino, mestiço, insubmisso. Ser negro é agir, não desfilar.

Não precisamos de patrulha, mas de estratégia. Não de tribunais da pureza, mas de alianças transformadoras. A luta antirracista é luta de massa, não é podcast de nicho com vocabulário cifrado.

Então, se você está preocupado com os portões de Wakanda, eu entendo.

Mas talvez esteja olhando pro lado errado.

Porque o racismo não se importa com sua carteirinha de militante.

Ele não pede RG. Ele destrói vidas — com ou sem aprovação do Conselho de Guardiões de Wakanda.

E se é pra sonhar, que seja com um mundo mais justo, mais livre, mais solidário. Um mundo decente e cheio de possibilidades.

Porque, no fim das contas, e me perdoe dizer mais uma vez: Wakanda não existe.

Mas a África existe.

A América Latina existe

O Brasil existe.

O racismo existe.

E a luta também.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.