Me engana que eu gosto
Sobre a bolsonarista mais convicta que já vi
Preciso escrever para tentar me livrar dessa sensação inquietante de impotência diante de uma situação trágica que o tribunal da minha autoestima me cobra êxito em solucionar e que, ainda assim, falhei miseravelmente em fazê-lo.
Eu e minha atual esposa residimos em um flat em razão de não termos crianças para cuidar e termos trabalho em um volume que nos impede de nos ocuparmos com tarefas domésticas – despertamos antes de o sol nascer e adormecemos logo após se por.
Esse sistema de moradia conta com camareiras, o que é uma mão na roda. E a “nossa” é uma mulher inteligente, sagaz, engraçada e alivia o peso do trabalho quando, às onze e meia em ponto, vai abrindo a porta da habitação ao som de um musicado “tô entrandooo”.
As petições da esposa e minhas edições de artigos e roteiros perdem o monopólio da atenção ante a leveza daquela mulher que trabalha duro, subindo e descendo escadas, abaixando-se e levantando-se mil vezes, tudo com um sorriso iluminando o rosto.
Conversa sobre qualquer assunto. Outro dia, pegou-me lendo sobre astrofísica e ouviu interessada a Teoria das Supercordas -- e foi logo perguntando qual era a evidência de que existiam e se algum experimento já fora feito que a comprovasse...
U-aaauuu
Enfim, como nada nesta vida é perfeito, ela é a bolsonarista mais convicta que já vi. E sabe argumentar. E quanto lhe mostrei um vídeo de Bolsonaro dizendo que queria Lula “apodrecesse na cadeia” antes de outro dele criticando quem comemorava sua própria prisão, mandou logo um displicente “Isso é I. A., seo Edu”...
Depois, apesar de se dizer “moradora de favela”, asseverou, apesar de ser evangélica, que a matança de Cláudio Castro no Rio foi “excelente” porque “precisa mesmo acabar com os bandidos”. E quando comecei a explicar que não havia só bandidos, primeiro perguntou por que eu “defendia bandidos” (??!!).
Confesso que me ofendi. Mas, por óbvio, de forma polida informei-a de que não faço isso porque sou um cidadão honesto e nada tenho em comum com quem infringe a lei. E que minha intenção é proteger gente humilde (sem citá-la, que é bastante humilde do ponto de vista socioeconômico) que está sendo vitimada pela violência policial só para aumentar a popularidade de políticos como Cláudio Castro.
Ela diz que não se preocupa porque, segundo ela, “em minha favelinha não tem nada disso”.
Também confronta minhas opiniões sobre Jair Bolsonaro dizendo que o STF tem que se preocupar com “questões constitucionais”. Então pergunto se achava isso quando Lula foi preso, ao que respondeu que Lula foi preso porque, contra ele, “tinha muita prova”.
É claro que não conseguiu explicar que provas eram essas. E quando mostrei a ela vídeo de Jair Bolsonaro confessando, em uma reunião ministerial, que queria dar golpe antes da eleição porque, depois, seria tarde demais; ou quando lhe mostrei que os comandantes do Exército e da Força Aérea acusaram Bolsonaro de golpe, disse que o vídeo era “IA” e que “o PT subornou” os comandantes.
Quando lhe pergunto se diz isso por ser evangélica, diz que não porque “pastor nenhum faz a minha cabeça”. Mas confessa que antes de ser evangélica era “a maior defensora de Lula”.
É óbvio que o ingresso no mundo evangélico (nem sei que igreja frequenta) não apenas mudou sua forma de pensar sobre política, mas fez com que se tornasse imune à lógica e ao bom senso apesar de ser inteligente, sagaz e decente.
Esse é o problema que assola a Nação. Uma parcela descomunal do nosso povo filiou-se à seita do “Me engana que eu gosto” e seus ideólogos e condutores multimilionários. E não saber o que fazer me deprime ao rés do chão – ou abaixo.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

