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Jacques Gruman

Engenheiro químico, foi diretor e presidente do Sinficato dos Químicos e Engenheiros Químicos/RJ. Diretor e presidente da ASA - Associação Scholem Aleichem de Cultura e Recreação, tradicional entidade judaica progressista do Rio de Janeiro.

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Medo

No Brasil e em outros países da América Latina que sofreram ditaduras nos anos 60 a 80, divergir podia significar prisão, demissão, exílio ou morte

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Olha o muro, olha a ponte, olhe o dia de ontem chegando/Que medo você tem de nós, olha aí... (Paulo Cesar Pinheiro)

É antigo o axioma “jornal velho só serve para embrulhar peixe”. Pode-se expandi-lo para notícia velha, que, num mundo cada vez mais efêmero, acaba sendo quase qualquer notícia com mais de algumas horas. As redes são viciadas em novidades. Dizem mesmo que as crônicas, material ligeiro por natureza, caducam sem passar pela adolescência.

Vou enfrentar este destino cruel e conversar sobre um tema que andou nas bocas semana passada, uma eternidade: os 57 anos do golpe civil-militar de março de 1964. A ordem do dia do ministro da Defesa manteve o mesmo tom de sempre, chamando de “movimento” o que não passou de uma articulação golpista entre caserna, burguesia, setores da classe média e quase toda a mídia. Com apoio nada discreto do imperialismo americano.

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Não pretendo ensinar Padre-nosso ao vigário, os que me leem são bem informados sobre o ecossistema político-social que gerou 21 anos de ditadura. Minha intenção é abordar o sentimento que nos embalou na longa noite ditatorial: o medo. Sentimento deslocado hoje para vírus e destemperos criminosos.

No Brasil e em outros países da América Latina que sofreram ditaduras nos anos 60 a 80, divergir podia significar prisão, demissão, exílio ou morte. Ter em casa o livro A capital, do Eça de Queirós, era jogar com a sorte. Algum meganha truculento podia confundi-lo com O capital, do Marx, e a cana era dura. Por precaução, muita gente jogou fora livros “subversivos”.

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O clima era pesado, às vezes mesclado com o que hoje parece nonsense. E era. Em fevereiro de 1965, um burocrata de Brasília proibiu a venda de vodca “para combater o comunismo”. No mesmo ano, um time da Alemanha Oriental veio disputar alguns jogos por aqui. O Itamarati, numa antecipação de Ernesto Araújo, distribuiu nota avisando que os alemães só poderiam jogar se as partidas não tivessem “cunho político”. E o que era esse tal de “cunho político”? Tocar o hino nacional antes de cada jogo. Na estreia da peça clássica Electra, no teatro Municipal de São Paulo, agentes do DOPS vieram com um mandato de prisão para Sófocles, autor da peça, falecido em 406 a.C. Em Porto Alegre, mais ou menos na mesma época, os milicos tentaram prender Georges Feydeau, em Porto Alegre. Não conseguiram. O dramaturgo francês tinha morrido em Paris, em 1921.

Saindo do terreno folclórico, sentíamos na censura, nos ambientes de trabalho, na repressão às poucas manifestações de protesto, o medo do imponderável. Um amigo de longa data, estudante brilhante, passou em primeiro lugar no concurso para o BNDES. Foi enquadrado na “lista negra da subversão” e sua contratação vetada. Nas reuniões de pauta do jornal Movimento, que sofria censura prévia e teve uma de suas sedes vandalizada, a gente resistia, mas era evidente a apreensão por eventuais ações violentas dos cães de guarda da repressão. Calouro na Ilha do Fundão, cansei de enfrentar blizes do Exército na porta do bandejão. Os soldados, vocês podem imaginar, não se comportavam como damas. Quem não tinha documento, ia direto para o camburão. Buraco negro no auge do autoritarismo.

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Um bom exemplo sobre o que acontecia nas empresas veio à luz num relatório recente. A Volkswagen colaborou, de maneira ativa e sistemática, com o terrorismo de Estado. Espionou os próprios funcionários a fim de descobrir suas opiniões políticas, e documentou a espionagem por escrito. Essa documentação era enviada ao DOPS.

Nunca esqueço o rosto de uma moça que me pediu a página de um jornal. Eu estava num ônibus, lendo as notícias locais. Com o rabo do olho, percebi que ela, ao meu lado, se interessou por uma chamada que falava de presos políticos (ou seria de sequestrados pela ditadura?). Meio hesitante, como quem comete um ato temerário, me perguntou se podia lhe dar aquela folha. Não titubeei. Dei-lhe o jornal inteiro. Em silêncio, compreendemos a importância da cumplicidade singela. Tínhamos medo, mas naquele ônibus longínquo soubemos o que fazer.

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Victor Jara tem uma música em que proclama “el derecho de vivir en paz”. Acho que, olhando em retrospecto, aqueles tempos nos ensinam que alguma paz só será alcançada quando tivermos o direito de viver sem medo.

Abraço. E coragem.

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Jacques

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