Medo, maldade ou fetiche
Desde a vitória do Lula, a oposição e os aliados críticos não lhe deram trégua
Francisco Carvalho, poeta cearense, soube traduzir em palavras a rigidez imposta por estruturas opressivas e pela sistemática tentativa de silenciar a contestação. Em seu poema "Burocracia" desenha um cenário onde o poder impõe limites à liberdade, ao pensamento e até mesmo à esperança. A sua escrita revela o peso da vigilância e da manipulação, elementos que se fazem presentes nos embates políticos do Brasil.
Desde a vitória do Lula, a oposição e os aliados críticos não lhe deram trégua. A cada passo, a cada anúncio, uma condenação prévia, como se a aurora tivesse sido abolida. Não há espaço para que se semeiem dúvidas, para que o país encontre sua própria cadência de recuperação. A crítica se antecipa ao feito, a discordância nasce antes do argumento, sufocando qualquer possibilidade de um debate honesto sobre os rumos do Brasil.
A recente crise interna no PSOL pela demissão de David Deccache não passou incólume pelo tribunal da oposição. Trata-se de uma questão doméstica de um partido que não tem tamanho para ter suas discussões internas feitas na praça pública da política. A divisão entre a ala mais radical e a pragmática se tornou um espetáculo explorado como evidência da falência da esquerda, enquanto Haddad é apontado como culpado. A questão de fundo- se deve haver um apoio estratégico a Lula ou uma crítica sem concessões- é empurrada para segundo plano. A única narrativa aceita pelos adversários é a da implosão iminente. Apesar da coação infantil em envolver todo o país em uma posição de defesa do economista, no Brasil real só se fala de outra coisa.
Cada vez mais Fernando Haddad se torna alvo. Uma campanha orquestrada distorce suas políticas, atribui-lhe impostos inexistentes, espalha falsas narrativas que fazem da economia uma arma política. A verdade é irrelevante; o importante é esvaziar as palavras de qualquer possível reminiscência para que fiquem apenas os ecos da difamação.
O aumento da Selic, já acordado e esperado, serviu de pretexto para acusar Gabriel Galípolo de ser “mais do mesmo”, como se fosse possível reverter anos de diretrizes conservadoras com um único gesto. O que se exige dele, na prática, é um cavalo de pau que talvez só fosse possível nos planos virtuais de economistas, agora desempregados.
Enquanto isso, Bolsonaro e sua bancada seguem em sua luta por anistia e redução da inelegibilidade. Suas articulações, sejam por meio da flexibilização da Lei da Ficha Limpa ou da reinterpretação dos atos de 8 de janeiro, são vistas com a complacência dos mesmos que atacam o governo. Para esses a memória deve ser apagada. Querem que esqueçamos o corpo ensanguentado dos acontecimentos e que aceitemos, sem questionar, que a verdade política é uma construção conveniente.
Mesmo em gestos mínimos, como o boné “O Brasil é dos brasileiros”, a esquerda critica encontra motivo para escândalo. Um objeto banal se torna uma ameaça, uma frase se transforma em símbolo de exclusão. A guerra simbólica atinge proporções absurdas, revelando um país onde se fiscaliza tudo do alto dos edifícios, onde cada movimento do governo é uma afronta, independentemente de seu significado.
E assim segue o sufocamento da luta, do progresso e da possibilidade de um país governável. Mas por que fazem isso? Medo, maldade ou fetiche? Talvez todos. Medo de que um governo progressista se consolide, de que políticas sociais mostrem resultados, de que a memória do país não possa ser apagada. Maldade porque o caos interessa a quem deseja voltar ao poder sem enfrentar o julgamento de seus próprios erros. No fim, o que resta ao Brasil é a escolha entre aceitar o ataúde azul ou insistir que a aurora ainda não foi, nem pode ser, abolida.
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Burocracia
Francisco Carvalho
Eles te advertem que a aurora foi abolida
por tempo indeterminado.
Eles te comunicam que o trigo e o vento
vão ser exportados para o arco-íris.
Eles te aconselham a esquecer
o corpo ensangüentado dos acontecimentos.
Eles te ensinam que o orvalho não cai
sobre aqueles que semeiam dúvidas.
Eles te mandam esvaziar as palavras
de toda a possível reminiscência.
Eles te fiscalizam do alto dos edifícios
escanchados nalgum dragão lunar.
Eles te dão um ataúde azul
e te ordenam que é tempo de morrer.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

