Memélia Moreira e o romance "O que mantém um homem vivo"
Para os leitores do Brasil, Memélia é, além de grande jornalista, indispensável escritora
Memélia Moreira tem seu nome gravado em uma brava geração de jornalistas e escritores de combate. De um ponto de vista biológico e político, ela é filha e sobrinha de jornalistas e políticos maranhenses, personagens da história do Brasil, os Neiva Moreira, pai e tio. E mais o seu irmão, Antonio de Neiva Moreira Neto, ex-preso político na ditadura. Traços genéticos à parte, importa mais destacar que Memélia Moreira está inscrita na causa indígena, em textos fundamentais que publicou quando correspondente da Folha de São Paulo e depois. Para mim, para os leitores do Brasil, Memélia é, além de grande jornalista, indispensável escritora. Se dúvida houver, leiam a inteligência fecunda de Memélia no texto que divulgo a seguir. Ela escreve sobre o meu próximo romance “O que mantém um homem vivo”. Com vocês, a voz da brilhante Memélia Moreira.
DOIS TABUS, UM MITO, MUITAS CULPAS
Memélia Moreira
Àqueles acostumados à linguagem dos emojis e emoções transmitidas com polegares, recomendo que leiam o novo livro de Urariano Mota com interrupções a cada parágrafo, para não apenas assimilarem as palavras, mas principalmente para uma reflexão. Porque “O QUE MANTÉM O HOMEM VIVO” não é uma leitura légère, como dizem os franceses. É uma leitura que disseca a profundeza de sentimentos, comportamentos e preconceitos que banalizamos. Um livro que disseca tabus, sentimentos de culpa carregados por nós que fomos e somos da resistência brasileira.
Sim, “O que mantém um homem vivo” conta histórias da resistência sem os pieguismos que nos rodeiam. Resistência contra uma ditadura cruel, selvagem que torturou, matou até hoje nos perturba porque não entregaram os mortos que fizeram desaparecer.
Àqueles que nos rejeitam e que apontam o dedo acusatório contra nós porque amamos a revolução e fizemos a resistência contra a desumanidade dos ditadores, quero lhes dizer que jamais suportariam uma sessão prolongada no pau de arara, um dos mais comuns instrumentos de tortura ou os espancamentos brutais infligidos àqueles que foram presos e estavam sob a guarda do Estado.
Os exemplos das covardias da direita se repetem. Basta ler os jornais para ver que a simples perspectiva de ser preso leva o ex-presidente Jair Bolsonaro, a se hospitalizar com crises de soluços e vômitos. Logo ele que passou quatro anos nos ameaçando com uma nova ditadura e chegou mesmo a conspirar e organizar um golpe de Estado.
Estou convivendo com o livro, que já está na editora, dia e noite, incluindo madrugadas, há 55 dias. Ele me acompanhou numa inesquecível viagem de trem da Flórida à Geórgia, sul dos EUA, me acompanhou também no fim de semana num resort da Disney World onde deixei de ir aos parques para viver com o livro as vidas de pessoas que amargaram um dos momentos mais sombrios da História do Brasil. Chorei em muitos momentos, ri muito em outros. Porque apesar de tudo, os mesmos personagens sabiam rir, sabiam viver além das angústias e sofrimentos que toda a resistência impõe. E me apaixonei pelo “Gordo”, um dos personagens mais vibrantes e tristes de todos os personagens, Ele existiu e eu gostaria de tê-lo conhecido. Cheguei a sonhar com ele. No sonho, ele e o autor estavam sentados na mesa de um bar. Eu à distância, não ousava me aproximar porque sabia que a conversa entre eles era “conversas de homem”. Um dia ainda escrevo sobre o que chamo de “conversas de homem”.
Se eu ainda estivesse trabalhando na Livraria “Presença”, do comunista português Victor Alegria, teria dificuldades de pôr “O que mantém um homem vivo” nas estantes com a classificação tradicional dos livros. Seria em “Romance”, quem sabe “História”. Não, talvez “Filosofia”. Ou melhor, “Psicanálise”. Por ter espírito de subverter, eu distribuiria os exemplares em cada uma das classificações. Porque o livro é Romance, é História, é “Filosofia” e é “Psicanálise”. Uma liberdade que só a Literatura, a mais nobre das artes, nos permite. Urariano Mota escreve:
“Na maioria das pessoas que não viveram a ditadura, existe a ilusão de que ela se limitou às feridas visíveis dos corpos. Sem dúvida, essas marcas são as mais claras. No entanto, há outras talvez mais graves, que acompanham os sobreviventes como uma herança. E, pior, como uma herança cuja origem não se fala, como se fosse uma consequência vergonhosa, um câncer que não se deve chamar pelo nome. Como uma crença no demônio, como uma maldição….”.O primeiro parágrafo do livro já me apontou para as angústias que seriam vividas durante a leitura. Mas não esperava que ele me levasse à releitura de Freud, de Chomsky com seu “Secrets of the Words”, a Contardo Caligares com ‘O Sentido da Vida”, à compra do livro, “Em Busca de Sentido” do psicólogo Viktor Frankl, judeu- austríaco que sobreviveu ao campo de concentração de Auschwitz. PERSONAGENS
São muitos os personagens. Escolhi escrever sobre aqueles que mais me marcaram. Entre eles há dois que são o avesso um do outro. Eles não têm nome. Só uma letra inicial. Um carrega em si toda a grandiosidade do ser humano. Ele se chama “H”, letra inicial da palavra “humanidade”. O outro optou, pela torpeza, pela vilania. Foi sua única maneira de responder ao mundo de misérias que viveu. Cheguei a desprezá-lo profundamente. E até pedi ao autor que suprimisse alguns parágrafos porque acreditei, quando li pela primeira vez que um ser tão abjeto não merecia tanto espaço. Foi só na terceira leitura que encontrei sua grandeza e importância. Ele é apresentado pela letra B.
Os personagens parecem ter sido escolhidos a dedo pelo autor. Mas não. Eles eram seus amigos. Encontravam-se no mesmo bar, caminhavam pelas mesmas ruas, enfrentavam as mesmas dificuldades financeiras, se encantavam com as mesmas mulheres e, juntos, sonhavam com a revolução.
Entre os personagens escolhi alguns para falar do livro. Começo por H.
De família classe média alta, H, de “Humanidade”, era também um intelectual, poliglota e bonito. Mas Urariano Mota deixa claro que H, cuja generosidade era a caraterística principal, jamais usou esses atributos para se impor. Jamais se dirigiu às mulheres com desrespeito ou vulgaridades usando a famosa característica do macho nordestino - que para mim é um mito - para seduzir. Em outras palavras, H. concedia um tratamento gentil tanto a nós quanto aos companheiros homens, Foi preso e barbaramente espancado. Levou pauladas na cabeça. Vítima do “Mal de Parkinson”, teve a generosidade de manter seus compromissos com os amigos. Para poupá-los de alguma tristeza por vê-lo naquela situação, chegou ao bar onde religiosamente se encontravam, amparado pelo filho porque seus movimentos já estavam comprometidos. De H, preferi não transcrever os trechos do livro porque ele merece ser entendido no todo.
B.
Penso que a escolha dessa consoante é apropriada. B é um bruto, um ser desprezível. Humilhava os fracos no momento em que precisavam de solidariedade. E toda sua energia se encontrava no pênis. E se orgulhava de suas conquistas femininas, principalmente de mulheres que poderiam lhe conceder o conforto que sua miséria lhe negara. E assim se casou com mulher rica, depois encontrou uma outra bem mais velha, mas de vida estabilizada.
Considerava-se um intelectual, enquanto praticava roubo intelectual para ganhar prêmios e prestígio.
Sua brutalidade chocava os amigos, principalmente quando seduziu uma mendiga, dando-lhe uns trocados em troca de sexo. E ainda justificou dizendo que foi um gesto “humanitário”. Ela engravidou e ele sequer se interessou se ela fez aborto ou ano, dizendo “e eu lá ia criar filho de mendiga”.
E é nesse momento do livro que Urariano lembra Zola no seu romance “L’Assomoir”. A mendiga me fez lembrar uma personagem feminina, que diante da fome, desse mestre francês, com o corpo e as roupas em frangalhos, ele tenta se prostituir, quando já não lhe sobravam forças para continuar a viver.
O personagem não suportou a máscara de maldade que carregava como se fosse um troféu e enlouqueceu. Foi na loucura que ele encontrou a lucidez dos profetas e saiu anunciando a selvageria das prisões e torturas que ainda eram desconhecidas nos primeiros anos de ditadura.
Embora esse personagem tenha me causado um absoluto desconforto e descrença, é a partir dele que Urariano Mota entra no campo da Psicanálise e da Filosofia. E eu, que cheguei a pedir ao autor que cortasse parágrafos sobre B, conclui que, sem ele, o autor não teria alcançado os níveis mais altos do pensamento humano.
M., de MULHER
Ela é fascinante. E é com essa mulher que Urariano nos remete ao romance “Soledad no Recife” sobre Soledad Barret, a revolucionária latino-americana nascida no Paraguai, que morreu no Recife numa chacina, na qual o feto que carregava em sua barriga ficou aos seus pés morto, tão ensanguentado quanto a mãe. O filho que carregava era do infame Cabo Anselmo, agente da repressão infiltrado na resistência, responsável pelo assassinato de muitos companheiros. Num dos momentos em que fala de Soledad, Urariano diz que pele leveza de suas roupas podiam-se ver suas “coxas em fúria”.
Agora, com M. ele também fala das coxas que M usava para esconder as cicatrizes das pernas queimadas por ácido sulfúrico, usado pelos estudantes de direita da Universidade Mackenzie, onde se concentrava a nata da direita de São Paulo, contra estudantes da esquerda da faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, no episódio conhecido pelo título de ‘Batalha da Maria Antonia”.
Deixo aqui as palavras do autor:
“M iluminou o Recife em 1971 como um meteoro. Mas numa luz que não podia ser vista pela repressão. M, inteligente, se apresentava ‘fantasiada’ de hippie. Cabelos assanhados, saia curta, bolsa pequena, ela aparecia de preferência à noite. Como se fosse uma ladra, perigosa assaltante das casas de família. Como se fosse uma ratazana, diríamos depois. Mas não pelas delicadas e lindas feições, mas pelos atos noturnos, ágeis, ocultos do inimigo. Aliás, de ratos ela possuía o maior temor. Militante socialista, ela se imaginava em tortura com ratos sobre o corpo. Mais de um companheiro de luta comentou: - Se a repressão sabe disso…”Mais adiante, palavras que revelam seu ardor revolucionário, M fala:
“- O que são as dificuldades para a vitória do socialismo, companheiro?
- O que são nossas dificuldades frente ao heroísmo do vietcongue?...”. O GORDO
O personagem mais iluminado do livro se chamava Antonio Luís da Silva Filho, 115 quilos distribuídos no seu 1.70 de altura. Gordo era homossexual, viveu na favela e cozinhava bem. Ao contrário de B, que se vingou da vida miserável que levava, Gordo levava alegria aonde quer que fosse.
Um dia ele convidou os amigos para almoçar. Ia fazer bobó de camarão. Os amigos foram chegando, abriram cervejas, conversavam e nada do Gordo aparecer. Sua mãe disse então que ele estava na cozinha. Um dos amigos foi então admirar suas artes culinárias e lá estava o Gordo lendo a receita.
O amigo não deixou barato e cobrou, “lendo receita, Gordo?”.
Sem titubear, o Gordo respondeu, “é, mas o autor é marxista”.
Com o Gordo, Urariano quebra dois tabus. O primeiro, ao registrar a pobreza do amigo socialista. O Gordo morava em favela, mas a direita, até hoje, bate, espalha o mito de que a resistência foi feita por jovens da classe média alta. Chegam ao cúmulo de cunhar o aposto “esquerda caviar”.
Com o Gordo e todos os demais personagens, à exceção de H. aqueles quase adolescentes eram filhos da pobreza e até da miséria. Ao ponto de, muitas vezes, não terem dinheiro sequer para pagar uma passagem de ônibus. Sem se referir a esse mito infame, o autor apenas descreve as condições de vida dos vários personagens.
O outro tabu foi quebrado quando fala da homossexualidade do Gordo, um assunto que a esquerda jamais discutiu abertamente. Conversas dissimuladas, em sussurros, muitas vezes acompanhadas por sorrisos irônicos. Escreve Urariano Mota:
“Devo falar do que sempre evitamos: a sua homossexualidade. É vergonhoso para todos nós, até hoje, que evitemos falar sobre a homossexualidade. Persiste ainda a sombra de mancha, devo dizer de modo mais sincero, persiste uma acusação de pecado. Mais grave: persiste a acusação de uma desonra do amigo. Que tempos malditos sobrevivem! Retiramos do amigo um componente essencial da sua pessoa. Seria como se ele, para ser amado, tivesse de amputar de si aquele amor que não ousava dizer o seu nome. No entanto, o Gordo era um homem total, ia escrever burramente, ‘com suas virtudes e defeitos’. Caralho, ele era um homem total, pleno de amor e carinho por todas as pessoas do mundo. Para ele, não havia fronteiras entre homem e mulher, entre negro e branco, pois já, em si, residiam todas essas marcas e nuances. Penso num sacrilégio, mas penso no amigo obeso com sua bunda gorda exposta, bunda branca porque não se mostrava ao sol, para algum jovem amante. A sua bunda era o próprio ser não exposto à luz do sol. Isso me lembra que o Gordo era um homem da noite. Não digo noturno, porque não era feito como um homem somente entre as trevas. Ele era da noite, e bêbado. Ele já compreendera que só deveria soltar as amarras embriagado, bêbado, bêbado, bêbado, quando longe estivesse da Inquisição dos amigos. ‘Por que me perseguem?’. Ao que hoje respondo: ‘porque tua lembrança me persegue, Gordo?’. Falar de ti é falar de um crime de costumes, legal, bacana, crime bacana que cometemos contra a tua pessoa. As tuas quedas de carinho momentâneas, as tuas efusões de carinho quando beijavas a nossa testa, o nosso rosto, nos envergonhavam. Mas, constrangidos, aceitávamos. Então, cabisbaixos, nos fazia bem o teu afeto. Naqueles beijos havia um universo que não nos fazia bem, pois havia o muro da barbárie do afeto que reza ‘homem só beija mulher’. E nós éramos homens! E você, amigo, que morreu sem salvação?”.
Fecho a lista dos personagens com um dos mais brilhantes jornalistas da minha geração, Marco Albertim. Seus textos eram peças de Literatura sem perder a função principal do Jornalismo, que é de informar. Ainda me lembro de algumas de suas matérias no jornal “Movimento”, um dos primeiros jornais alternativos, de boa qualidade e que dinamitou as muralhas do castelo da censura imposta pela ditadura, cujas feridas nos machucam até hoje.
Já no final do livro, um diálogo entre Urariano, que também é jornalista, e Marco Albertim mostra a imensidão de nossas angústias, a tensão permanente de que pudemos falhar. A pergunta foi feita por Albertim:
“Você acredita na Revolução?”
Foi o momento mais difícil da leitura, porque já passei por essa e tantas outras dúvidas que envolvem nossas crenças na transformação social. Hoje, tão perto e tão longe daqueles momentos sombrios, eu me dou o direito de responder. Sim, eu acredito na revolução. Ela não aconteceu como imaginávamos, romantizada pelos barbudos de Cuba, ou pelos heroicos vietminh, os vietcongs que lutaram contra dois impérios e venceram. A revolução, a transformação social, acontece todos os dias e em vários pontos do planeta. Aconteceu recentemente em Burkina Faso com um militar que está mudando o país e expurgando os resquícios do Colonialismo francês. Aconteceu no Uruguai quando José Mujica, aquele presidente-guerrilheiro fez uma revolução de costumes ao liberar o uso da maconha e a governar nas beiradas do Socialismo. Aconteceu no Brasil quando nossa corte suprema reconheceu o direito dos casamentos homossexuais, e então pensei que o Gordo, além da alegria, poderia ter sido feliz, se não tivesse morrido tão cedo.
São quatro horas da manhã de um outono mais frio do que o costume nesta Amazônia Gringa onde vivo. E quero lhes dizer que esse livro merece bem mais que uma leitura. Ele deve ser debatido em seminários, lido por todas as gerações de A à Z. Porque ele desperta curiosidade sobre uma das mais difíceis perguntas feitas pelo ser humano. O que mantém um homem vivo?
E eu te respondo, Urariano. O que nos mantém vivos é o sonho, a resistência contra os obstáculos que impedem a dignidade, a honra e a felicidade merecidas pelo ser humano.
P.S. Quanto às culpas, deixo para vocês descobrirem no transcorrer da leitura do novo romance de Urariano Mota.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

